quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Descobrindo o Américo

 

 

Precoce talento intelectual multimídia, o brasileiro Pedro Américo (1843 – 1905) estudou na Europa sob o patrocínio de seu poderoso mecenas, ninguém menos do que o Imperador Dom Pedro II. Difícil falar de Pintura Acadêmica Brasileira e não falar de Pedro Américo. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!

 


Acima, A Carioca. Realmente, toda a impecável técnica de PA. O dedo do pé mal toca a água, num gesto sutil, discreto, trazendo ondas de perturbação, como na ambição artística de causar impacto e comoção, com grandes transgressores catárticos, expondo sua alma ao Mundo.  O lago é a placidez, a vida, a quietude, numa pessoa que encontrou quietude em seu dia a dia, produzindo calmamente, sabendo que Roma não foi construída num dia só. Podemos ouvir aqui o delicioso som de água pura fluindo, sendo Tao esta fonte que nunca seca, sempre provendo, sempre criando e imaginando. A carioca tem os cabelos negros como a asa da graúna, e penteia-se, aprumando-se, como se soubesse que está sendo observada pelo pintor, no ritual de aprumação, de mulheres que levam mais de hora para se arrumar para algum evento social importante, sendo que, para a mulher, a diversão já começa na hora de se arrumar, como uma Evita Perón, a qual, reza a lenda, levava cerca de quarenta minutos para ficar pronta ao acordar, com um cabeleireiro que a assistia na Casa Rosada. A nudez aqui, como tudo em PA, é sutil, refutando toda e qualquer vulgaridade, como na revista Playboy brasileira, no erótico que não é banal ou vulgar. O manto negro é a dor da cólica menstrual, uma dor que os homens mal imaginam, na minha memória do Ensino Médio, com minhas colegas chorando de dor, tendo que tomar doses cavalares de Atroveran – como eu já disse no blog: como é duro ser mulher! O vermelho é o interior uterino, no tapete vermelho das celebridades, numa cor luxuosa e chamativa, com o público, as pessoas comuns, “babando” com os trajes extravagantes de divas, numa aparição pública que faz com que esqueçamos de que somos todos seres humanos, filhos do mesmo Rei. O vermelho é o prostíbulo “Casa da Luz Vermelha”, como em disse certa vez um amigo – no puteiro, como perdão do termo chulo, tudo remete a Sexo. O vermelho é o sangue de irmãos derramado na Guerra, esses horríveis eventos em que Tao é totalmente deixado de lado, num momento brutal em que nos esquecemos que o esforço diplomático em nome da Paz é o que importa – como pode haver Paz se cobiço o terreno de meu vizinho? Aqui, vemos um erótico momento de intimidade e reclusão, como se fôssemos voyeurs invadindo as casas alheias, no interesse erótico de se observar aquilo que não vem a público, como no prazer científico de construir grandes telescópios que nos mostram confins remotos do Universo Observável – a Criação é tão vasta que se torna infinita, mais uma prova do poder de Tao, no presente que nos é dado, que é a Vida Eterna – existe presente maior do que o fato de que jamais findaremos? Aqui, temos uma paisagem digna de quadro renascentista, num estilo artístico que mais tarde seria deliciosamente transgredido pela Arte Moderna, abrindo o leque de opções e libertando a Arte da função retratista. Aqui é o momento de um banho, com o perfume pairando no ar, na sensação revigorante de um bom banho ao fim de um dia de labor e atividade, no modo como há toda uma ritualidade por trás de um inocente banho. A carioca aqui não parece olhar exatamente para o pintor, mas para um fundo mais além, mais longe, numa pessoa que sabe observar o Mundo com grande alcance, na dádiva que é observar o Mundo do jeitinho que este é. Na porção inferior vemos perfumadas flores, na sedução das fragrâncias, estes frascos que exercem tanto fascínio, fazendo metáfora com a Dimensão Metafísica, onde tudo é extremamente limpo, puro e perfumado. Vemos aqui uma cascata, na sensação revigorante de se tomar um banho de cascata, com a água caindo impiedosamente na pele do banhista – vida nova.

 


Acima, A Noite com os gênios do Estudo e do Amor. Este deslumbrante quadro eu vi certa vez no Museu da Arte do Rio Grande do Sul, o MARGS, num quadro grande, arrebatador e deslumbrante, numa deusa ascendendo no luar sensual, com seu corpo puro como leite, semioculto por uma renda que tanto mostra quanto esconde, num jogo que brinca com a excitação de forças cósmicas opostas regendo o Universo. Aqui é como um comercial da sedutora marca de lingeries, a Victoria’s Secret, ou seja, o segredo da vitória do feminino, fascinando um Woody Allen, cujo personagem disse: “As mulheres são a melhor coisa que se pode ter na vida”. Uma gigantesca Lua está quase oculta, neste satélite que desde sempre fascinou em mistério o Ser Humano, neste símbolo feminino cíclico, numa stripper no palco, absorvendo todos os olhares dos homens na plateia. A Lua é este prato de prata que reflete, numa intensidade luminosa tão dúbia, que não fede totalmente nem cheira totalmente, por assim dizer. Esta deusa da Noite então pontilha o céu noturno com estrelas em um prato prateado, o espelho que é símbolo da Feminilidade. Outro símbolo noturno aqui é a coruja, vivendo notívaga, como nos boêmios, buscando na Noite uma reclusão para se esquecer um pouco dos próprios problemas, na frase famosa: “A Noite é uma criança”. É como um vampiro que evita o Sol, como no Gollum de Tolkien, refugiando-se num mundo escuro, num submundo, desconectando de algo que é primordial, que é o Senso Comum. Aqui, a deusa é suprema e protagonista, ocupando o quadro, abocanhando-o com fome e ambição. Seus cabelos são tão longos, talvez nunca cortados, na moça pura e casta que é negociada pelo próprio pai num casamento arranjado, na crueldade patriarcal que faz da mulher uma mera mercadoria a ser negociada, no preconceito que coloca Adão como uma obra prima; Eva como um arremedo secundário, só servindo para parir e cuidar da casa, vivendo a vida de outra pessoa. Aqui é o fascínio da prataria, na reflexão, da pessoa encarando um espelho existencial, observando a própria vida da forma mais clara possível, como numa pessoa que, de modo repentino, dá-se conta de um empobrecimento existencial que veio se desenvolvendo devagar, pé por pé. Aqui, a deusa voa, com poderes mágicos, leve como uma pluma, avassaladora como uma supermodelo numa passarela, deslumbrando o Mundo com o poder que existe na Feminilidade. Vemos o gênio do Amor com a fálica flecha do Amor, mirando em corações, num coração dolorido e sofrido, sofrendo com as dores do Amor e da Paixão, talvez numa pessoa solitária, triste e carente, derretendo-se toda para qualquer um que ofereça um pouco de carinho. O gênio do Estudo ergue sua tocha esclarecedora, jogando luz sobre os mistérios, mas uma luz que não é o suficiente para desvendar os segredos da Noite. A tocha arde com paixão, na busca humana por Conhecimento, mandando sondas a Marte. O Livro é a Civilização, no modo com a Letra foi o que criou as civilizações, na codificação de palavras, eternizando palavras pela noite dos tempos, perpetuando obras como a Bíblia. Os gênios aqui são gêmeos paridos pela Noite, no modo como Tao se biparte e gera Yin e Yang, as forças opostas de um rei e de uma rainha que regem o Universo. Os cabelos da deusa aqui são águas turvas e misteriosas, instigando a curiosidade científica, na missão científica de, em metáfora, saber como funciona um relógio sem poder olhar este por dentro... Aqui, tudo é esvoaçante e fino, na sensação deliciosa de se vestir uma camisa de seda, fazendo metáfora com o carinho uterino, cercando o feto de proteção e carinho. Aqui, a renda é de estampa feminina, orgânica, como ralos de pia de galáxias, pratos girando numa ciranda, jorrando estrelas pelo Céu noturno, no simples ato de se observar as estrelas, a morada dos deuses, nossos irmãos que atingiram a plenitude do apuro moral, dando-nos o exemplo de evolução espiritual, nesta grande universidade que exige que cada pessoa se encontre por si mesma.

 


Acima, David em seus últimos dias é aquecido pela jovem Abisag. O ancião parece estar assustado com o assédio da jovem – é o medo, talvez no medo humano da Morte, no modo como os espíritas lidam tão naturalmente com o óbito do corpo físico, sabendo que a Mente sobrevive à morte da Carne. David aqui tem todo o aspecto do patriarca, no modo como temos esta imagem de Deus – a de um patriarca ultraexperiente, idoso, cheio de sabedoria. Os lençóis e cortinas ficam com um aspecto fluidio e sedutor, como água correndo, e quase podemos ouvir o som de água escorrendo, numa sensação relaxante como a sensação indescritível de Paz na Experiência Extracorporal, quando o espírito sai momentaneamente do corpo físico, dando-nos uma amostra maravilhosa da plenitude de liberdade espiritual, ou seja, na plenitude feliz dos desencarnados elevados ao Reino dos Céus. A barba extremamente longa é essa experiência, num homem que desde menino vai galgando seu caminho, adquirindo experiências e adquirindo essas “rugas e cicatrizes”, como em galãs como Tarcísio Meira, seduzindo as mulheres com essa carga de experiência, nos preconceitos patriarcais – a uma mulher não é permitido ter experiência, rugas ou cicatrizes, com mulheres artistas que tratam de transgredir esses preconceitos milenares. Abisag é bem jovem, sem um fio de cabelo branco, no preconceito de que uma mulher simplesmente não pode aparentar envelhecer, tendo que permanecer para sempre virgem, jovem e bela – que preconceito, hein? Aqui, é um leito digno de rei, com nobres cobertas, na imagem de um regente deitando em seu leito tão confortável, girando em torno de algo superior, que é a sensação metafísica de bem estar, num espírito desencarnado que, ao voltar ao Céu, sente-se tão bem disposto, tão bem. Abisag veste joias nobres, enfeitada, como uma mulher de um harém de um faraó, a qual, em período fértil, enfeita-se para ser penetrada pelo regente, que tem a obrigação de colocar no mundo um herdeiro varão, com mulheres subestimadas como Elizabeth I, a qual acabou superando tantos e tantos homens, mostrando o poder feminista libertador. O ancião é a passagem do Tempo, como num curso universitário, desenrolando-se por anos, no périplo de estudos e trabalhos que um estudante tem que fazer para se formar finalmente, como no desencarne, quando a pessoa nota que sua missão terrena foi cumprida – hora de voltar para casa, numa pomposa festa de retorno à Fonte, com amigos recepcionando o recém desencarnado – na Vida é tão bom ter amigos, ou seja, o que seria de mim sem amigos para ter? As negras melenas da moça fluem com água negra numa noite escura, numa imprevisibilidade, num mistério, nos confins negros do Universo, excitando a curiosidade científica, num Ser Humano que se viu nascer em tal mundo enigmático, no desafio que é manter a fé em relação a uma inteligência suprema, que é Tao, o eterno enigma – passaremos a Eternidade tentando desvendar o indesvendável, pois, do contrário, qual seria o significado de tudo? A moça aqui suspira na sedução, com uma boca vibrante e sedutora, deliciosa, irresistível, e o ancião considera que isso tudo é muita areia para o caminhão dele mesmo, como num caminho de superação de obstáculos – em primeiro lugar, temos que nos curvar e não subestimar o desafio; em segundo, depois do ato humilde de se curvar, é hora de encarar a lida, vencendo um obstáculo que parecia tão intransponível, pois se inicio achando que vai ser tudo fácil, acabarei achando tudo muito duro. David aqui parece antever algum perigo, e é como o homem de Tao, sempre cauteloso, nunca recomendando violência, como se soubesse que há perigos na travessia de um rio. A nudez da moça aqui é realçada pelos adereços, no eterno jogo de sedução entre mostrar e ocultar. A rubra cortina é esta sedução carnal, como entrar numa loja de lingeries perfumada, num David que se vê tão extasiado com tais mistérios. A moça tem beleza digna de rainha, e sua pele é pura como leite, como nos lençois abaixo de si, na sensação de se desflorar, como apontar telescópios para os confins de um Universo tão vasto, tão além de qualquer compreensão humana.

 


Acima, Fala do Trono. Aqui, PA faz justa homenagem a seu grande e poderoso mecenas, Pedro II, um dos maiores líderes da História do Brasil, quiçá o maior, num reinado longevo. Aqui, nosso imperador é absolutamente majestoso, não deixando a desejar em relação aos grandes monarcas europeus, no poder representativo que as famílias reais têm – quaisquer destas. A altivez do imperador faz metáfora com a soberania da nação, num recado claro: nós, os brasileiros, não fomos encontrados numa “lata de lixo”, pois temos uma história, um berço, uma proveniência; não somos um país sem eira nem beira. O grande e retilíneo cetro é este falo imperial, com leis buscando unificar um Brasil tão vasto e heterogêneo, numa unidade tão questionada pela malograda Revolução Farroupilha, a tragédia fundadora do Rio Grande do Sul. A barba é a masculinidade e a experiência sábia, num líder que envelheceu no trono, adquirindo tal invejável knowhow. O cetro é o poder do Pensamento Racional, num regente sem paixões nem impulsos insanos, como num paciente de psicoterapeuta, sendo desdobrado pacientemente nas sessões. Outro falo aqui é a espada na bainha do líder, num aviso: sou pacífico, mas responderei se provocado. Ou seja, comporte-se, caro cidadão brasileiro, numa era em que a herança de sangue de rei já começara a ser corroída pela Revolução Francesa, num Brasil que se tornou república e baniu a princesa Isabel, a última representante da glória dos de Orleans e Bragança. O manto majestoso faz metáfora com toda a riqueza de fauna e flora do Brasil, num país tão rico de belezas naturais, dando tanta inveja aos países de bioma menos exuberante, na majestade das paisagens cariocas, por exemplo, com suas frutas exóticas e pássaros coloridos. Aqui, é um momento solene, num ponto em que o Governo trata de deixar bem claro que é o Brasil e para onde este vai, fazendo metáfora com a riqueza espiritual do Plano Metafísico, gerando imitações na Terra, como na imitação que é a pompa na coroação de um rei inglês, numa tradição milenar que gira em torno da atemporalidade metafísica, no lugar onde não há envelhecimento ou perecimento, em tradições que conquistam a admiração e o respeito do povo. No topo do cetro vemos um ser alado, na liberdade do Pensamento Racional, na beleza estonteante da Matemática, na riqueza psíquica de toda uma sofisticação sendo gerada pela simples lógica matemática: primeiro vem o 1; depois, o 2 etc., fazendo de tal lógica uma irrefutável prova da sofisticação humana. As densas vestes do imperador sugerem que é um dia de frio europeu, mas na verdade é um dia de calor tropical carioca, numa carente era quando não existia o ar condicionado. Ao fundo, acima, duas damas assistem ao evento pomposo, no eterno preconceito machista e misógino do patriarcado, na raridade de regentes mulheres respeitadas, como na egípcia Hatshepsut, a qual reinou, na prática, como homem. Ao fundo, mais abaixo, vemos um grupo de nobres cavalheiros, indefectíveis, na intenção de PA em retratar um momento tão digno, respeitável e apolíneo, num esforço do pintor em valorizar um poder que lhe deu invejável instrução europeia, um cenário conservado e tradicional que viria a ser tão transgredido pelas tempestuosas e impetuosas pinceladas de Impressionismo. A decoração aqui é toda clássica, tradicional, tal qual a Pintura Acadêmica, no paradigma estético grecorromano, marcando para sempre o modo ocidental de observar o belo. Os sapatos do imperador são delicados, num homem polido, com tato e preponderância, num Tao adquirido ao longo de muitos anos de regência, no desafio de um regente em ser visto, amado e respeitado pelo próprio povo, pois o regente que se afasta do próprio povo deixa de ser regente... A faixa azul no peito é tal sangue azul, numa árvore genealógica deslumbrante, mas com um aviso: é claro que é maravilhoso ter tal nobre ascendência, mas, no frigir dos ovos, o príncipe assim nascido tem que, mais tarde, na vida pública, demonstrar ter “autonomia de voo”, deixando de ser um príncipe com P minúsculo para se tornar um com P maiúsculo – que desafio, não?

 


Acima, Independência ou Morte. Esta obra é o ponto alto do Museu do Ipiranga, SP, no salão mais nobre do palácio paulistano, marcando o momento em que o filho não mais atura ficar na sombra do pai, como um menino que quer ser homem; como numa pessoa adquirindo o controle de sua própria vida; como uma dona de casa que quer trabalhar e ter uma carreira de fato, encontrando, assim, a si mesma. As espadas fálicas são erguidas para desafiar uma nação europeia a qual tanto sugou de sua colônia, num empreendimento para que o Brasil adquira uma identidade própria, louvando sua própria história. Aqui, o Hino Nacional Brasileiro ganha uma ilustração, e Dom Pedro I faz como Elizabeth I, “colocando o p.. na mesa”, numa regente desafiando uma Espanha estão tão poderosa e militarmente temida na Europa. Claro que ouvimos aqui o som dos cavalos furiosos, impetuosos, cheios de energia e altivez, no animal mais majestoso já criado por Tao. Vemos uma nesga ínfima das águas do célebre Ipiranga, no modo como a História vai fluindo e se desdobrando, num Brasil de uma história cheia de reviravoltas, como golpes de estão, na eterna ciranda do Poder, esse néctar doce que tanto seduz o caráter dos homens, num homem que passou a vida cobiçando mais e mais poder, extirpando sua própria paz, seu próprio sossego. Aqui, é um belo dia, como canta o hino, e é como se todo o Brasil estivesse desprovido de qualquer nebulosidade, de quaisquer dúvidas, numa certeza política. Claro que o protagonista aqui é Pedro, no topo da hierarquia, erguendo a espada agressiva como o facão do emblema do Movimento dos Sem Terra, no eterno modo humano de impor a Paz por meio da Guerra, numa Paz artificial, muito longe de Tao, aquele que nunca toma medidas violentas ou medidas de armistício. Os Dragões da República são majestosos, ocupando lugar de tradição na altiva posse de um presidente brasileiro, na rampa que eleva o eleito ao cargo mais poderoso do país, no modo como nós brasileiros temos nossas próprias tradições, no modo como a altivez jamais pode ser confundida com arrogância que invade países vizinhos, nessa dança de poderes no Mundo, com impérios ascendendo e descendendo, havendo em Jesus Cristo esta permanência em meio a esse mar turbulento das vaidades humanas, num homem de Tao, ou seja, um homem que nada tem a ver com armas. A ironia neste quadro reside no fato de que, na extrema esquerda, vemos uma pacata cena de dia a dia, de labor cotidiano, com agricultores puxando bois para arar a terra, fazendo contraste entre pacato e extraordinário, como Clark Kent e o Super-Homem, fazendo com que comum e nobre sejam uma mão que lava a outra abaixo da água corrente do Ipiranga. Já, na extrema direita, vemos um humilde casebre, talvez representando a pobreza de um Brasil que, ainda assim, é tão rico, pois, como já ouvi falar de um historiador, a corte de Petrópolis não era das mais ricas, entrando em contraste com a pompa ostensiva das tradições britânicas, na hierarquia entre potências e subpotências. Aqui, Pedro toma o lógico lugar de liderança, num senhor entre homens, e aqui é uma cena masculina, sem mulheres, nos preconceitos patriarcais que impedem que uma mulher possa ter papel protagonista. Aqui, o chão é de terra, na terra do Brasil, este país tão vasto, que tanto pode produzir em suas vastas terras. O chão de terra é a simplicidade, a falta de pretensões, na forma simples de hierarquia – o imperador acima de todos. O ímpeto dos cavalos é essa inquietude de jovialidade, fazendo com que o Oceano Atlântico se torne um abismo entre duas nações, num Brasil que resolveu ser de si mesmo, nos desafios do desenvolvimento de identidade nacionais, como a Bossa Nova, é claro, o Samba. Aqui, Pedro discursa aos homens como um papa no púlpito, e o Brasil entende que está na hora de “desmamar” e, de certa forma, impedir que o Brasil siga sendo uma teta mamada pela coroa portuguesa – é um cordão umbilical sendo cortado.

 


Acima, Tiradentes Esquartejado. O quadro retrata um terrível momento de propaganda estatal, de terror endereçado ao cidadão comum – se você não que acabar como este pobre coitado, comporte-se e nunca questione a Coroa Portuguesa, num Brasil Colônia regido por um vice-rei, o qual respondia diretamente a Portugal. Como a Verdade é a filha do Tempo, passa-se o Tempo e Tiradentes é alçado à categoria de herói nacional, com direito a feriado nacional, num ícone que antevia a necessidade do Brasil desenvolver soberania e identidade própria. Neste quadro, vemos um crucifixo, comparando Tiradentes ao Messias que morreu incompreendido na cruz, ambos homens muito à frente de seu próprio tempo. Neste pano branco, vemos um clamor por Paz, num pedido que o Estado seja mais clemente, ao contrário das ditaduras, as quais só funcionam se o cidadão é mantido sob controle, como cão num canil. Aqui, o sangue brasileiro escorre, num desperdício, numa execução tão cruel como a forca, num corpo que, num último gesto cruel de humilhação, foi esquartejado e exposto ao aterrorizados olhos do cidadão comum, com restos mortais que foram enterrados de qualquer forma, como um cachorro sendo enterrado em qualquer vala sem identificação, na eterna capacidade humana em ser o mais longe possível de Tao, aquele que não subestima o Amor. Neste esquartejamento, é como um objeto sendo dissociado e analisado, parte por parte, como nas especialidades médicas tratando de uma parte específica da Vida do Homem, como desconstruir um objeto e descobrir o que faz com que o organismo viva e funcione. Neste impactante quadro, uma das pernas é perfurada com um prego inclemente, com nas abrasivas pirâmides pontiagudas egípcias, nas ambições imperiais que fazem com que se cobicem os reinos vizinhos, na fogueira das vaidades do Poder, esta força que tanto corrompe a alma do Homem, no Anel de Tolkien, seduzindo sombriamente os corações de homens puros, num Anel cujo intuito era simplesmente acabar com o Mundo, como num Hitler, o psicopata que queria colocar metade do Mundo contra a outra metade, acabando, assim, com a Vida na Terra – não há espaço para Amor no coração podre de um psicopata. Aqui, a genitália está coberta, num certo pudor. O pano azul é o sangue azul dos monarcas portugueses, numa época em que o paradigma democrático ainda engatinhava, fazendo da sucessão sanguínea ao trono a forma mais crível de Poder até então. A escada é o caminho da evolução espiritual, passo a passo, como num Jesus que, depois de tão maltratado, ressuscita e volta ao Lar Primordial Metafísico, a dimensão onde todos nos sentimos extremamente especiais, amados e queridos – lá é maravilhoso; é tudo. Podemos ouvir o som de Tiradentes subindo a escada para seu fim derradeiro, na capacidade humana em simpatizar com o Mal. Bem ao fundo no quadro, num ínfimo detalhe na parte inferior da obra, vemos humildes casas de cidadãos comuns, talvez observando a execução pela janela, temendo o poder da Coroa, numa regência a qual, quanto mais assustar do cidadão, melhor, no desespero de um monarca em se manter na parte mais superior possível da “pirâmide”, horrorizado com a perspectiva de perder tal poder. Esta execução é o medo do monarca em que a situação perca controle e que os cidadãos se rebelem em massa. Tiradentes desencarnou, nessa “ressurreição”, e todas as feridas mundanas foram curadas, no milagre da desencarnação, esta vírgula que nos mostra os reais planos de Tao para conosco. Em pouco tempo, as moscas aqui vão se amontoar, e aves carniceiras farão seu banquete, finalizando a grande humilhação imposta a tal herói da Pátria. O Ser Humano é assim mesmo, empedernido, frio, amargo. Nesta terrível vitrine, a cabeça de Tiradentes está no topo da cena, no modo como Portugal foi por tanto tempo a cabeça que regia um Brasil colonial tão selvagem e misterioso. Tiradentes morre para acordar ileso, cercado de amigos, de Amor, na vitória da Aurora sobre a Escuridão. Tiradentes, um visionário.

 

Referência bibliográfica:

 

Pedro Américo. Disponível em: <www.pt.wikipedia.org>. Acesso em: 15 fev. 2021.