quarta-feira, 29 de maio de 2019

Presidindo a Arte



Clinton Adams (1918 – 2002) foi um americano natural da Califórnia que atuou no Departamento de Arte da Universidade da Califórnia, a UCLA. Prestou serviço militar. Também trabalhou na Universidade do Novo México. Em 1985, o governador do Novo México deu a Clinton Adams a distinção de Contribuição Excepcional à Arte do NM. Em 1993, CA se tornou membro da Academia Nacional de Design dos EUA. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Forma Arquitetônica. 1947. Vemos algo como “serpentes eretas”, como varetas, entrelaçando-se, como numa orgia, numa festa, num momento de interação, no modo como o artista interage com o público na noite de vernissage. É como uma serpente hipnotizada pela obra de algum artista fascinante, num bombardeamento de percepções. A ereção é a vontade, a verdade, os valores de força, numa pessoa que deixa a depressão para trás a abraça novas etapas desafiantes de Vida. É como o fálico Código de Hamurabi, impondo limites comportamentais, buscando assustar o cidadão com punições severas, como nos Dez Mandamentos, impondo parâmetros morais, visando o progresso moral da Humanidade. Este quadro traz formas nítidas, delineadas por traços negros, e as formas são bem coloridas, remetendo a Romero Britto, com linhas negras definindo limites, junto a muitas e muitas cores e estampas. Estas varetas estão sustentadas por suportes, que são a base existencial, a base de comparação, no termo “fio terra”, ou seja, aquilo que faz com que a pessoa se sinta linkada ao Mundo, sabendo seu espaço, seu papel na Vida em Sociedade, numa sociedade pragmática e, às vezes, dura e cruel, fazendo com que muitos artistas tenham dificuldade em vislumbrar um espaço, uma posição em um Mundo tão difícil, tão soda, como todas as inúmeras pessoas que já se candidataram a cargos eletivos, e foram derrotadas no frio olho das urnas eleitorais. Esta mesa, neste quadro, tem um azul bebê suave, num dia recém amanhecendo, num dia abençoado, que convida à produtividade. É o Céu dos sonhos, num contexto metafísico de acolhimento, de pertencimento, numa dimensão onde a pessoa se sente muito segura e bem disposta, pertencendo a uma grande família, à Grande Família Estelar, unida e consolidada por Tao, o invisível Pai Eterno. Sobre a mesa vemos um grande adorno decorativo, lembrando a forma de um sapato de salto alto, muito alto, nas loucuras dolorosas de que uma mulher é capaz de fazer para se sentir mais sexy e bonita, como dolorosas cirurgias plásticas, ou senhoras batendo perna de salto alto. É o gosto humano pela decoração, pelo embelezamento, tentando imitar a beleza de esferas que estão a salvo das intempéries da Vida Material. É a universal busca humana por beleza, por pertinência visual, na perseguição de coisas belas e aristocráticas, classudas, no modo como o Reino dos Céus é repleto de Vida, Limpeza e Beleza. Mais ao lado do “sapato” aqui, outra forma indefinida e enigmática. Parecem-se com duas faces de perfil, conversando uma com a outra, no modo como o artista faz diálogos dentro de si mesmo, conversando consigo mesmo, aplacando o sentimento de solidão e de perdição existencial, no modo como não há problema algum em conversar sozinho de vez em quando. Neste quadro, há uma considerável luminosidade, pois um brando e delicioso Sol penetra na sala, trazendo arejamento e renovação, nos desafios de um novo dia e de uma nova jornada, como num curso universitário, cheio de percalços a serem contornados – a Vida não seria um tédio sem provações? Esta sala tem um chão lilás, cor de lavanda, no modo humano de se apaixonar por fragrâncias deliciosas, havendo no perfume a metáfora para limpeza, propósito e pureza de intenções, ou seja, o Bem é perfumado; o Mal, fedido. É simples, mas as pessoas estão sempre sendo seduzidas pelo Mal. Mais ao fundo na cena, uma parede predominantemente dourada, na glória do pódio, e é claro que há uma pontinha de ambição em cada artista, fazendo do Mundo uma verdadeira fábrica de ilusões e desilusões. Apesar de parecerem más, as desilusões são positivas, pois nos colocam com os pés de volta ao chão, ao Senso Comum, uma importante forma de Conhecimento, a qual acaba sempre se impondo.


Acima, Tríade III. 1980. A tarefa de um artista plástico é combinar elementos e produzir coisas novas. É como brincar de Lego ou daquele joguinho com pecinhas de madeira, produzindo prédios e palácios. Aqui, temos um jogo truncado, com linhas predominantemente retas. Ao centro, uma forma que lembra um obelisco, num símbolo de poder, como os descomunais túmulos que são as grandes pirâmides do Egito. As pirâmides são um joguinho de Lego, reunindo pixels, pedra a pedra, constituindo um trabalho de geometria invejável, numa perfeição técnica que é, até hoje, um enigma. É como a construção de uma casa, com a colocação de piso, paredes e teto, como no incansável trabalho de formigas fazendo um formigueiro, no modo como uma vida sem trabalho é uma vida vazia, em vão. Estas formas alaranjadas trazem um certo calor ao quadro, num cheiro irresistível de algum suco de fruta, como bergamota, na sedução das frutas, as quais são fruto da mente de Tao, o grande arquiteto, o grande artista plástico. Aqui, este obelisco parece querer ultrapassar tudo e todos, furando, desbravando paladinamente um caminho original, um caminho nunca antes trilhado, nas grandes obras que são os trabalhos originais, criativos, como um Freud, desbravando os primórdios da Psicanálise. Este obelisco busca furar este teto, como um foguete alçando voo, rejeitando a gravidade terrestre e desafiando limites, querendo desbravar o Sistema Solar, na insaciável sede humana por poder e conhecimento. Então, o foguete levanta voo e desafia limites, como grandes falos desafiadores, num filho rebelde, querendo se igualar ao pai; quiçá superar este. É impressionante a inclinação humana pelo formato fálico, símbolo de verdade e coragem, impondo respeito – se você não quer se machucar, mantenha distância, numa nação que, apesar de pacífica, irá à Guerra se provocada por outra nação. Este quadro passa por um processo de mutação, de mudança, e o falo quer descobrir seu papel no Mundo, num cenário tão duro e competitivo, em que todo mundo quer virar astro, como nos cabelos dourados de Gisele, um verdadeiro monstro de brilho. O único elemento ligeiramente curvilíneo neste quadro é um traço branco quase ao centro da cena. É como uma serpente, de uma sensualidade discreta e classuda, como se soubesse que, se rebolar demais, poderá ser repreendida pelo machismo do patriarcado, numa sociedade que sempre tolheu a sexualidade feminina, fazendo com que a virgindade e a ausência de agressividade sejam regra para uma mulher respeitável, o que é uma grande injustiça, pois os sexos são ilusões e, no fundo, somos todos iguais – os sexos são uma ilusão da Dimensão Material, e, ao Desencarne, perdemos o próprio sexo, tornando-nos anjos assexuados. Este quadro parece ser um capcioso trabalho de arquiteto, engenhoso, sofisticado, como vários níveis, mezaninos, espaços como num museu de arquitetura moderna e invejável, ambiciosa, nos sonhos de Arquitetura que habitam a Dimensão Metafísica, num mundo imaterial onde os pensamentos arquitetônicos não se deparam com as vicissitudes materiais, no modo como a Dimensão Material tolhe boa parte dos sonhos humanos, como uma cena sendo observada através de um vidro opaco, impedindo haver extrema clareza – a Encarnação é assim mesmo, num desafio enigmático, desafio que acaba por fazer com que a pessoa evolua como filho de Tao, na clara necessidade de aprimoramento psíquico. Estas formas laranjadas de Adams parecem querer sair do quadro e libertar-se, desafiando, com suas quinas agressivas, os limites de imposição social, como num artista rebelde, focado em chocar a Sociedade, colocando os dedos das pessoas na tomada elétrica, havendo no choque catártico um momento de comunhão, em que todos se reúnem em torno do artista “vomitador”. O foguete levanta voo, alçando os sonhos artísticos. É um momento de desestruturação, de recomeço, de abalo sísmico, em que o artista decide desafiar paradigmas até então indetectados. É o poder renovador da Arte.


Acima, Tríade IV. 1980. O fundo é o de uma sensual noite enluarada, num espaço dúbio entre luz e sombra. Vemos ao centro uma linha rubra ligeiramente tortuosa, como um rio que, no quadro geral, é estável, com pequenas oscilações, como no princípio da vida de uma pessoa, numa vida geralmente estável até certo ponto, até o ponto de crise, no qual a pessoa, ao beijar o fundo do poço, tem que fazer um descomunal esforço para devolver a estabilidade à vida, num grande desafio existencial. Aqui, continuamos a ter um Adams construtor, arquiteto, combinando elementos, e podemos ouvir um “malandro” jazz, na incrível integração e intercomunicação entre as Artes, havendo, na Música, muito de plástico. Abaixo no quadro, vemos outra serpente, ainda mais estável, pouquíssimo tortuosa, mais disciplinada, talvez a mesma serpente, após o momento de reconstrução, na saudável imperfeição da Vida, uma Vida que não foi desenhada para carecer de desafios, pois a Vida é uma verdadeira prova olímpica, e, se não o fosse, qual propósito teria? Vemos elementos negros, fechados, imprevisíveis, como uma noite encoberta de Lua Nova, sem qualquer estrela no Céu. Essas formas formam um triângulo, e as partes superiores são como um telhado de uma simples mas acolhedora casa, no modo como o aconchegante supera o luxuoso, pois de que vale o Luxo se não há empatia ou relaxamento? Ao centro do quadro, uma grande pedra marrom, na pedra fundamental de alguma obra importante, no modo como a catedral de Caxias do Sul foi erguida sobre uma pedra, pois, como Tao diz, em metáfora, aquilo que é construído sobre a rocha não pode ser destruído; não pode perecer nem desmoronar. A pedra é a âncora, a base de comparação, o centro de uma Vida, no poder que o labor tem em fazer que os dias tenham um propósito produtivo, num Norte, uma Meca, uma referência centrada. A base disso tudo é outra forma marrom, só que retangular, e é uma base forte, como os fundamentos da Terra, nas forças gravitacionais que regem o Cosmos e impõem uma hierarquia entre as esferas, no modo como a Vida Espiritual, assim como no Exército, está repleta de Hierarquia, só que a Hierarquia Metafísica não é imposta, pois é irresistível, baseando-se em bondade, e não em dureza arrogante, ou seja, o Bem rege o Mal; o Bem é melhor do que o Mal, no modo como é simples de se observar a inclinação de um sociopata em relação ao Mal, pois o sociopata acha o Mal muito mais interessante, num espírito tosco, identificado com a Matéria, e não identificado com o Pensamento, com a Virtude – o sociopata zomba da nobreza psíquica, ou seja, o sociopata é um andarilho do Umbral. As formas aqui, nesta obra de Adams, buscam dialogar, num cenário difícil, no qual as diferenças são tão claras, no desafio diplomático que é a preservação da Paz. Aqui, as formas marrons são da cor dos troncos de árvore, havendo no tronco o sustentáculo de uma sociedade, e este tronco é o apuro mental, moral, e a pureza metafísica é o que há de interessante ao Mundo, pois é fenomenal a pessoa que age com desapego, a pessoa que rejeita as glórias mundanas e abraça o imaterial, desinteressando-se pelo Anel de Tolkien, o símbolo da perdição humana, numa alma corrompida pelo Poder, num Getúlio Vargas suicida, incapaz de imaginar uma vida sem poder, no modo como o Espiritismo diz: “Você não imagina a que ponto ficam reduzidas as pessoas consideradas felizes na Terra”, ou seja, um ganhador da loto. Não sei quem é mais triste – se é quem acha que pode vender Amor ou se é quem acha que pode comprar Amor, no modo como o Gênio da Lâmpada pode prover tudo, menos Amor. E, no fim das contas, sem sentimentalismo, tudo se resume a Amor, como uma pessoa esmerada, que cuida muito do próprio trabalho, no semblante atencioso e esmerado de Deus, pintado por Aldo Locatelli, criando Adão, na revolução conceitual de Jesus: Deus é Amor. Temos aqui um trato entre pessoas diferentes, como irmãos que sabem que é a Diversidade o que constrói.


Acima, Um Lugar para Fazer o Mundo Acabar. 1948. Este quadro foi pintado logo após o término da II Guerra Mundial, num Mundo que, de certo modo, sobreviveu ao conflito, renascendo como a Fênix. O fio é a mediação, a negociação, o contato polido diplomático entre as nações, num Mundo desejoso por harmonia e concórdia, deixando para trás todos os horrores nazistas. O fio é a manutenção da Paz, do contato amigável entre nações. O fio é a ligação, como num vínculo de sangue, unindo irmãos. O fio é a garantia de que somos todos filhos de Tao, e de que não devemos brigar. À esquerda, vemos uma espécie de torre, como numa transmissão de Rádio, numa época em que o Rádio era todo poderoso, antes do boom da Televisão e muito antes do boom da Internet. A torre é o desenvolvimento tecnológico, com dois lados opostos, dispostos a fazer de tudo para a obtenção da Vitória, numa ideia fixa – vencer, vencer e vencer, não importando como. A torre é a ereção dos EUA, emergindo como suprema potência mundial após o conflito. A torre é como um paladino obelisco, no modo como as comunicações sociais revolucionaram, com sinais de rádio que estão, hoje, viajando pelo espaço, no modo como os ufólogos creem que outras civilizações estão nos observando fervorosamente, observando nosso modo de vida, nossas tecnologias, nossa Arte, a Internet. Então, esta torre emite seu sinal retilíneo, cruzando o quadro, cruzando os quatro cantos do Mundo, chegando à extrema direita, num Mundo então entrando na Guerra Fria, com relações diplomáticas interrompidas entre dois grandes blocos globais. O fiozinho magro é um contato minúsculo, microscópico, com dois lados paranóicos, sempre achando que o lado oposto trama algo engenhoso para a obtenção da Vitória, e o Brasil entra em uma ditadura de direita, numa época em que o Bloco Capitalista temia que o Brasil pudesse se tornar uma URSS ensolarada. É como numa gincana de colégio, em que equipes se organizam para cumprir as tarefas, reunindo em seus quartéis generais, sempre buscando fazer algo que os oponentes não tenham pensando em fazer. Este quadro ansia por integração e consenso, Paz. E a Arte pode ser tal agente. Quase ao centro do quadro, vemos duas espécies de torres, trocando um sinal, que é uma linha vermelha pontilhada. É como a torre de suas indústrias, numa escalada de desenvolvimento, no modo como o Japão, humilhado ao término da II GM, emergiu como a Fênix, estabelecendo-se, décadas depois, como um gigante tecnológico e econômico, rico. A linha é o diálogo, um trato entre cavalheiros, como dois vizinhos conversando e se entendendo, estabelecendo a harmonia na vizinhança, no esforço que o Ser Humano tem que fazer para se assemelhar, ao máximo possível, com a Paz Divina da Dimensão Metafísica, pois, como Tao diz, a Paz é melhor do que a Raiva, numa lição que, apesar de aparentemente básica e quase óbvia, é constantemente subestimada por um Ser Humano raivoso. Mais abaixo no quadro, uma casinha branca, que é a sala diplomática da Paz, numa Suíça neutra e empenhada em conciliar vizinhos aguerridos, nas nobres intenções das Nações Unidas, fazendo de Nova York o epicentro do Mundo Civilizado, no cenário do 11 de Setembro, o dia em que a Terra parou, pois parece que o Ser Humano sempre tem algo de raivoso para fazer, numa sede insaciável por Guerra e por sangue derramado. A casinha branca é simples, e a mensagem é simples – temos que construir respeito mútuo. Mas a maioria das pessoas é reprovada nesta simples prova. O fundo do quadro é de um tom pastel, brando, na cor da Paz, do carinho, do Amor e da União. É a inocência de um bebê, vindo ao Mundo da forma mais inocente possível, num Ser Humano que, à medida que vai crescendo, vai se deparando com as provações existenciais, construindo um processo de identidade: Quem sou e para onde vou? Este quadro todo parece ser uma indústria, com vários prédios e setores, com cada órgão do aparelho digestivo, com funções diferentes, delegadas por um sistema hierárquico, como um cérebro regendo o resto do corpo. É o aparelho psíquico da pessoa, numa sinergia entre os elementos da psique. Então, o artista dialoga consigo mesmo, num ato essencial de autoconhecimento.


Acima, Vênus IV. 1973. Temos aqui duas formas dialogando, como duas pessoas numa sala de espera, batendo um papo para amenizar a passagem do tempo. Estas formas têm uma grande semelhança, mas têm também suas diferenças. Há aqui uma afinidade. São dois pedaços de esparadrapo, numa ferida que sarou e que não mais precisa de curativo, numa pessoa desencarnando e deixando para trás tudo relativo à carne, inclusive a carne em si. É como o sinal matemático de igual, só que não escrito por uma máquina, mas por uma mão humana, num pulso fadado a sofrer as tremulações da pulsação sanguínea, nas charmosas imperfeições de algo feito por um ser humano. Estas formas brancas obtêm expressão porque estão dispostas em um fundo bem escuro, quase negro, como no antigo tradicional quadro negro, um instrumento de trabalho feito para chamar a atenção do aluno, na importância da produção de Cultura Erudita para a construção intelectual de uma nação. Ao redor de tudo aqui, vemos uma grande base em azul, que é a cor dos sonhos, dos projetos, daquilo que um artista almeja, que é ser reconhecido e valorizado. Aqui, são como duas nuvens, num lento processo de passagem e mudança, no modo como tudo é processo, e a depuração espiritual não tem conclusão próxima, como o Espiritismo crê na existência dos espíritos supremos, perfeitos, que gozam da felicidade absoluta, num caminho de depuração à frente de todos nós, que vivemos num mundo em que o pernicioso Anel de Tolkien seduz almas e mais almas, corrompendo a fraca fé do Ser Humano. Aqui, são duas pessoas de perfil, e são semelhantes como dois irmãos, gozando de uma mesma base, de um mesmo teto, uma mesma casa, no fato de que somos todos filhotes da mesma ninhada de Tao, o grande cesto em comum. É como uma bandeira tremulante, no inofensivo desenvolvimento de patriotismo, no ensaio para que, mais tarde, a pessoa desencarnada erga a bandeira da Cidade Metafísica, fazendo com que vastas florestas sejam luxuosas salas de estar, perfumadas, limpas, aconchegantes, elegantes – é o bom gosto de Tao, o grande artista. Aqui, são como barras de uma prisão, mas uma prisão positiva, que acaba causando muito bem ao seu prisioneiro, fazendo dos anos de cárcere uma oportunidade de crescimento, havendo na libertação uma espécie de cerimônia de formatura, como o canudo sendo o falo paladino que liberta mentes, na saudável agressividade pragmática do pensamento racional, o pensamento que nos liberta. Aqui, são dois grandes olhos de lince nos olhando no escuro, numa fera faminta, agrilhoada às demandas orgânicas, louca por um suculento pedaço de carne, no modo irônico como as coisas funcionam na Natureza, no senso de humor de Tao, fazendo com que tudo em si carregue sua própria contradição, ou seja, claro e escuro coexistindo. Aqui, são como dois cometas brilhantes cruzando céus, como duas galáxias em rota de colisão, fundindo-se, nos intermináveis processos cósmicos, nos mistérios da Matéria, distribuindo pelo Cosmos inúmeras galáxias, como conchinhas à beiramar, nas regras da Matéria, desafiando o Ser Humano na fraca ciência deste – os mistérios movem o Conhecimento. Entre essas duas faixas, o intervalo negro parece a silhueta de uma mulher nua, com um seio delineado, na beleza do nu humano, uma nudez que remete à simplicidade de Tao, à limpeza de Tao, à pureza, pois o nu celebra a intenção estética de Tao. Esta Vênus recém saiu de um perfumado banho, enxugando-se em uma toalha e iniciando o dia com perfume, limpeza e graciosidade, como uma flor que desperta cheia de orvalho delicado. Os quadris são como os fartos quadris do faraó herege Aquenáton, um indivíduo transgressor que desafiou todo um paradigma religioso. E a Arte é também transgressão, com suas catarses lavando a percepção de um espectador, tocando este, num papo de pessoa para pessoa, de espírito para espírito. Aqui, são duas fortes pernas tendo que sustentar um corpo, numa pessoa que decidiu se reerguer e aceitar o desafio da Vida, nesta pessoa tornando-se adulta.

Referências bibliográficas:

Clinton Adams. Disponível em <www.addisonrowe.com/gallery-artists/adams-clinton>. Acesso 22 mai. 2019.
Clinton Adams. Disponível em <www.en.wikipedia.org>. Acesso 22 mai. 2019.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

O Mundo de Munch



O norueguês Edvard Munch (1863 – 1944) foi um dos precursores do Expressionismo Alemão, sendo influenciado por Manet. A partir de 1889, adquiriu várias bolsas de estudo. Em 1892, teve uma mostra cancelada em Parias, pois foi considerado um artista muito chocante. No ano de 1930, os (sempre medíocres e repulsivos) nazistas consideraram Munch um degenerado, cancelando as mostras dele na Alemanha. Apesar disso, o triunfante Munch adquiriu respeito e notoriedade na Inglaterra (a partir de 1936) e nos EUA (a partir de 1942). Sua obra mais célebre, O Grito, foi vendida por 119 milhões de dólares a um colecionador. Uau. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, A Criança Doente. 1885 –1886. É um quadro melancólico, num Munch catarseando um sentimento depressivo, numa época em que Depressão não tinha diagnóstico nem medicação. A criança está acamada, talvez dando os últimos suspiros, numa época em que tantas doenças não tinham como ser controladas, como num processo de quimioterapia, nas vicissitudes da Dimensão Material, um mundo em que a Saúde é tão frágil, tão suscetível a abalos orgânicos, como numa Mary Tudor, que tinha crises homéricas de enxaqueca – como somos privilegiados por vivermos num mundo e numa época em que há analgésicos! As cores deste quadro são cinzentas e esmaecidas, sem muito cenário para alegria ou diversão. É um quadro escuro, e a mão da criança é pálida, sem muita vida, abatida, como numa Evita Perón, a qual foi adoecendo publicamente, até adquiri uma magreza cadavérica, como nas pobres meninas obcecadas em perder peso, tornando-se o total oposto da beleza, adquirindo aspecto patológico, muito por causa da ditadura da magreza, num padrão de beleza semianoréxico. É um quarto fechado, numa penumbra, sem que a força da luz do Sol possa entrar e iluminar, arejando a Doença e trazendo a Saúde. Na extrema direita inferior, vemos um copo com um líquido avermelhado, como vinho, mas o que será? Será algum remédio ou poção de curandeiro? Talvez seja um remédio, um remédio amargo, como uma água, a qual, apesar de gelada, é limpa e pode curar, pode purificar, no modo como as vicissitudes surgem para que a pessoa as supere, fazendo com que a pessoa se torne mais forte, mais corajosa, e veja mais brilho e alegria na Vida, nos simples aspectos da Vida, como olhar para um Céu de Brigadeiro e encher os próprios pulmões de ar – as melhores coisas da Vida são de graça. As cobertas aqui são pesadas, tentando aplacar a dor febril, nos terríveis calafrios de febre. Conheço uma pessoa que tem pavor de doenças, e esta pessoa não sabe como lidar com pessoas que estão doentes, acamadas. Realmente, é triste ver uma pessoa doente, como numa pessoa que adquiriu Dengue, ficando acamada por duas semanas inteiras. As doenças são interrupções, um marco divisório, e o importante é que a pessoa tenha a força em nome da Superação, trazendo uma reviravolta existencial e dando a volta por cima, como no slogan da primeira propaganda política de Martha Suplicy – São Paulo vai dar a volta por cima.  E o Povo se une em torno da figura do rei, que é um médico, uma pessoa que traz saúde ao reino, no modo como Tao é o grande médico, a força que traz o arejamento de saúde a todo um povo, fazendo com que este tenha a própria fé sendo conquistada por tal figura saudável, uma figura benéfica, que almeja apenas o Bem, e, como somos acostumados desde criança ao ver desenhos animados de super-heróis, o Bem sempre vence, ao contrário de um professor sociopata que tive, o qual disse que o Mal é muito mais interessante do que o Bem... É fácil de se observar a Sociopatia, esses vampiros que existem entre nós. No quadro, a mulher ao lado, provavelmente a mãe da criança enferma, chora cabisbaixa, pois não suporta ver a filha sofrendo. É um momento de fundo de poço, a partir do qual a pessoa tem que fazer um esforço titânico para se reerguer. A mulher parece estar rezando, e rezar (com coração sincero) é o que o indivíduo deve fazer quando está no Umbral. Se houver prece honesta, o auxílio surgirá.


Acima, Ansiedade. 1894. O plano de fundo aqui é semelhante ao de O Grito. A ponte é a travessia existencial, a jornada de uma vida, contornando as forças da correnteza do rio abaixo, retornando triunfante ao Lar. A ansiedade é a angústia, um sentimento incômodo e doloroso, nas inevitáveis dores existenciais, aquelas que arrastamos para o túmulo, as dores que nos ensinam a viver, a conviver com a dor, e devemos aprender a não sofrer pelas dores, bem pelo contrário – temos que achar graça nelas. Aqui, uma mulher lidera este pequeno comitê, e ela é sucedida por vários cavalheiros, algo muito inusitado na sociedade patriarcal, na qual o homem é quem deve ter o protagonismo. Os rostos estão sérios e tensos, como se soubessem que a ponte vai ceder a qualquer segundo, num sentimento de incerteza e insegurança, um sentimento bem humano, numa pessoa humilde, que sabe que não é um deus perfeito, e não é arrogante e fraco aquele que se acha um deus? No pano de fundo, céu e água se mesclam, numa mistura orgânica, como numa panela, com os ingredientes sendo misturados gradualmente, até no chegar no ponto de clímax, em que a comida está pronta. Esses movimentos de mescla são os constantes processos de transformação da Vida, e cada um de nós está em constante processo de crescimento, fazendo da Eternidade a maior e melhor escola, numa perspectiva infinita, na qual jamais chegará um fim, e esse é o poder imenso de Tao, o eterno. Existe algo mais poderoso do que a Eternidade? Ao fundo, vemos humildes barquinhos flutuando, num papel coadjuvante, sem a ambição de tomar conta do quadro inteiro. São os persistentes pescadores, tirando da água seu sustento. É Munch, desbravando seus próprios caminhos, sendo consideravelmente malcompreendido, triunfando ao final, estabelecendo-se como mestre em sua Arte. É uma espécie de vingança, como um ator subestimando, que acabou levando um Oscar. E não subestimados aqueles que nos surpreendem? E Tao é isso, sempre discreto, sempre subestimado, sempre onipotente, com eterna paciência para com seus filhos imaturos. Aqui, ar e água fazem uma dança tortuosa, e o quadro é consideravelmente sombrio, fechado e escuro, imprevisível, nos mistérios da Vida, com surpresas que nos pegam a cada esquina, exatamente no momento em que acreditamos que nada mais temos a aprender. Os rostos aqui são apáticos e cadavéricos, sem muito viço nem cor, como numa pessoa de pele bege, tomando um susto monumental, assim como tantos um dia consideravam Munch um monstro assustador, havendo no choque um recurso artístico para chamar a atenção sobre a Arte, pois esta não é só uma pueril intenção de beleza, mas também uma ferramenta de transformação social, havendo no artista um poderoso agente de tal transformação; havendo no artista um verdadeiro feiticeiro transformador. As linhas tortuosas aqui são como mármore líquido, num trabalho de fluidez orgânica que leva bilhões de anos para se concluir, no fato de que tudo na Dimensão Material está fadado à liquiscência, havendo só no Pensamento a garantia de permanência e eternidade, pois a Dimensão Metafísica é feita de ideias, não de matéria, não de joias – a Eternidade é a maior joia de todas. Este quadro mostra uma sociedade incerta, um tanto medrosa, com medo das transformações, das inovações artísticas, na estranheza que causou a Semana de Arte Moderna no Brasil, na estranheza que causou o Impressionismo, no modo como Harold Bloom diz – o grande ícone causa, de início, uma grande estranheza. E temos um Munch que passou por duas guerras mundiais, havendo nos conflitos um momento de crise global, num Ser Humano incapaz de optar pelos polidos meios diplomáticos para amenizar as inevitáveis diferenças. Então, Munch rechaça os nazistas que o rechaçaram, havendo na Arte o Renascimento da Fênix. Este por do Sol ardente traz uma esperança, a de um dia mais claro e pacífico, talvez num dia em que a Humanidade possa  entender a superioridade do Metafísico. As pessoas neste quadro usam adornos sobre as cabeças – os adornos são a proteção, no modo como a Arte protege o Mundo, poupando este da Mediocridade.


Acima, Madona. 1894 –1895. A posição dos braços da modelo forma um sinal de ciclo, nos ciclos da Natureza, como Yin e Yang abraçando um ao outro, no modo como a Vida de uma pessoa é repleta de ciclos, de fases, com um surgimento, um crescimento, um ápice, uma decadência e um fim, tal qual me explicou uma professora de Marketing, a qual disse que os produtos têm um certo ciclo de vida. É claro que Munch foi um artista polêmico, dando o nome “Madona” a uma mulher nua, a uma mulher pouco santa, mas uma mulher livre, com seios à mostra. Sobre sua cabeça há um adorno, talvez um chapéu, e é da cor rubra, da cor do pecado, da tentação, da cor da maçã do Éden. Esta pose cíclica é como um redemoinho, um furacão avançando sobre uma cidade, como água indo ralo abaixo, como uma galáxia girando, na brincadeira infantil de roda, na qual todos são agentes sociais, e cada um tem um papel importante na rede de relacionamentos. A Madona está de olhos fechados, como se estivesse dormindo, entregue aos misteriosos códigos oníricos, com sonhos tão estranhos, tão sem nexo. Ela está dormente, inconsciente, entregue ao sono, deitada em uma cama muito reconfortante, no prazer da preguiça, na violação de um pecado, numa mulher querendo se desligar um pouco da impiedosa disciplina do Mundo lá fora. Com as mãos ocultadas atrás das costas, esta mulher parece estar ocultando algo, numa surpresa, nos mistérios da Vida, com esquinas imprevisíveis. Não é um quadro esclarecedor, mas obscuro, ao contrário da imagem idealizada de Nossa Senhora, a qual é uma mulher iluminada, absolutamente desprovida de mistérios, como um ser iluminado pelas luzes científicas, numa Ciência empenhada em desvendar os segredos do Universo, numa constante sede por conhecimento, por esclarecimento. Aqui, Munch tenta desvendar tais segredos, mas falha, acabando sendo engolido por tais dúvidas. Esta Madona é como uma voluptuosa sereia, e seus cabelos são como algas marinhas, no cheiro de mar, de oceano, no hálito da Natureza, no modo como a Vida na Terra surgiu da água, o líquido da Vida, num Ser Humano sedento em descobrir se há Vida nos outros planetas do nosso sistema solar. É uma sereia, com seus cabelos sedutores, com o agradável cheiro de peixe fresquinho, como numa feira de peixe vivo na Páscoa, na continuidade etimológica entre os termos mar, mãe e Maria, no fascínio de Iemanjá, a Dona dos Mares, sempre presenteando seus filhos com redes cheias de peixes, na cornucópia divina, como num reino pacífico e próspero, com um regente sábio, que sabe que fora da Paz não há sossego... É o sábio taoista, um líder excessivamente polido, que sabe que os meios diplomáticos são os mais confiáveis. Esta Madona se impõe, no termo “colocar o pau na mesa”, como na Viúva Porcina de Betty Faria, na versão censurada da novela Roque Santeiro, uma Porcina imponente, que assustou os censores, numa época em que os brasileiros descontentes tinham que se exilar. Os cabelos dessa Madona são desordenados, descabelados, como se ela estivesse recém acordando de uma noite de sono tranquilo. Parece que ela está se espreguiçando na cama, com as energias renovadas, pronta para uma nova jornada, como num Munch pronto para produzir e chocar, no termo “colocar os dedos na tomada”, na capacidade que certos artistas têm em chocar as percepções do espectador. Só podemos ver meio corpo aqui, e a genitália da modelo está oculta. Seu quadril é generoso e sedutor, como num quadril de supermodelo, requebrando nas passarelas do Mundo, encantando as pessoas e construindo mitos, como o de Gisele, numa modelo que entra na passarela para ser a melhor, numa modelo com agressividade neste sentido, não se contentando em ser apenas mais uma. A posição dos braços desta Madona remete ao símbolo da Reciclagem, no modo como, na Natureza, tudo tem uma razão para existir, numa cadeia inclusiva, assim como a Sociedade tenta ser mais inclusiva, num artista querendo descobrir seu papel no Mundo.


Acima, Melancolia. 1892. O homem está prostrado, decepcionado com a Vida, deparando-se com o fato de que sua Vida se tornou uma fábrica de frustrações, talvez num Munch catarseando um sentimento prostrante, como na canção jazzística Boulevard of Broken Dreams, ou seja, Rua dos Sonhos Despedaçados, na pessoa sonhadora que ri hoje e chora amanhã, numa alegria efêmera, que logo cessa e se esgota. Ele está pensativo como O Pensador de Rodin, imaginando se algum dia terá alguma realização, algum sucesso, num Munch muito censurado e incompreendido, pois é difícil imaginar frustração maior do que ter uma de suas obras censuradas, surradas pela crítica tradicional, no modo como a Arte vai se movendo como um tsunami, invadindo terras e lavando percepções, pois a Arte vem da Inteligência Emocional, num artista que tem o instinto de chocar e desbravar caminhos nunca antes trilhados, como um colono italiano, desbravando as terras gaúchas. É claro que o semblante do homem aqui é triste, numa pessoa que se depara com a completa devastação existencial, como um lugar destruído por uma bomba atômica, como numa vida devastada pelas drogas, como cocaína, numa vida destruída, num terreno inóspito e infértil, como uma horta na qual nada prospera, como numa pessoa vagando intermitentemente por uma cidade deserta, hostil, desconfortável, num implacável sentimento de solidão e despertencimento, como o que leva uma pessoa ao suicídio. Aqui, vemos uma orla escura e triste, e não um dia de indubitável Sol dourado. Podemos ouvir o solitário barulho das ondas requebrando, como numa praia fora do período de Verão, num terreno deprimente, vazio. Aqui, as águas são cinzentas e turvas, muito longe de águas transparentes e translúcidas, e o Céu também, aqui, traz incerteza, sem espaço para cores alegres e carnavalescas. Vemos um barquinho solitário e vazio, sem pescador nem peixes, num momento de empobrecimento existencial, em que a pessoa nada vê na própria Vida. Vemos uma plataforma com algumas pessoas pequeninas, pequenas demais para fazer com que o homem se sinta acompanhado ou cercado por amigos, na saudade que bate ao nos lembrarmos dos momentos de riso e diversão com velhos amigos, no sentimento de saudade. Talvez este homem esteja com saudades de outros momentos de sua Vida, momentos em que ele tinha a vida nos trilhos, objetivada, no sentimento de interrupção de ciclo que acomete aquele que, por exemplo, abandona um curso universitário, não terminando algo que começou, no sentimento de realização que cobre uma pessoa que se forma na faculdade, pegando o diploma e encerrando uma fase de sua vida, no sentimento de missão cumprida. Esta praia é praticamente deserta e inóspita, como numa terra tóxica, na qual nada nasce. O homem está totalmente vestido de preto, talvez num momento de luto, de reclusão, como uma pessoa que passa anos de sua vida reclusa, mal querendo se relacionar com o Mundo lá fora, recusando convites de amigos para sair e se divertir, numa pessoa que não mais encontra prazer em coisas que antes lhe eram prazerosas. É um Munch catarseando um sentimento de solidão, sentindo-se tão sozinho e tão sem amigos nos momentos em que foi censurado, não observando algum amigo para lhe defender do cortes da censura. O preto é a cor dos confins do Universo, com galáxias tão distantes que suas luzes sequer chegaram às nossas retinas aqui na Terra. O cabelo do homem também é preto como a asa da graúna, como um urubu agourento, sondando uma presa. O preto é a cor da discrição respeitosa, e ao fundo vemos formas enegrecidas, num fim de tarde melancólico, com as sombras avançando sobre uma alma, trazendo a cor escura da crise, do momento específico em que a pessoa simplesmente não sabe o que fazer, mas me disse uma psicóloga: “As crises são positivas”. Então, eis que a noite é sucedida por um amanhecer, e as dúvidas se dissipam na Terra da Estrela da Manhã. E um anjo perfumado nos guia por tais terras douradas. Ao lado do homem há formas incertas e estranhas, numa pessoa que está com uma espécie de miopia mental.


Acima, O Grito. 1893. Tudo aqui parece estar derretendo, na inevitável danação da Matéria, e o grito de desespero deve ser por causa de tal condenação, num ato de desespero, de desesperança. O grito é de alguém abandonado e desesperançoso, pedindo por socorro, por um auxílio para sair de tal situação. Rio, Mar e Céu se mesclam num continuum, no modo como a Vida na Terra foi engenhosamente pensada para compor um quadro geral, no qual o todo é formado por partes, como numa peça teatral, na qual cada personagem tem um papel e uma influência. O Mar ao fundo reflete o por do Sol, e o grito deve ser porque a escuridão vem chegando, e pouca esperança resta àquele que quer ter algum consolo na luz e no esclarecimento. O único elemento retilíneo no quadro é a ponte, que é a travessia existencial, a jornada de uma vida, de uma encarnação, no modo como Ser Humano não tem a certeza científica de que a Mente sobrevive à morte do Corpo. Talvez o grito seja de perplexidade frente ao Infinito, ao que jamais cessará, numa pessoa que se dá conta da infinidade, havendo na Eternidade o único caminho de lógica. A danação da Matéria é uma grande ilusão, e a morte e a putrefação do corpo é outra ilusão, como se Tao estivesse testando nossa fé, pois tudo se resume a Fé, ao acreditarmos em algo que a Ciência é totalmente incapaz de provar, fazendo do pensamento humano algo limitado e pequeno demais, no modo como o Ser Humano, ao tentar imitar Tao, falha redondamente – é como uma planta artificial querer ser uma planta de verdade. É claro que aqui podemos ouvir o grito em si. É como a famosa imagem de Macauly Culkin em Esqueceram de Mim, no menininho em desespero, sabendo que cabe só a ele a defesa do lar, num pesado senso de responsabilidade, no modo como ser adulto é assumir as responsabilidades, como um alcoólatra, que percebe que tem que controlar a dependência química, como uma pessoa que conheço, uma pessoa de muita força de vontade, que é alcoólatra e está há décadas sem colocar uma gota de álcool na boca. A travessia desta ponte é um grande desafio, no grande desafio que é viver e se tornar adulto, tornar-se uma pessoa boa e honesta, que tenha virtude, que tenha classe, que tenha Tao. Ao fundo na ponte, vemos dois senhores de chapéu, pessoas alheias ao desespero da pessoa berrando, como se soubessem que o desespero em nada ajuda, mantendo-se calmos. O grito é um manifesto de solidão, na incerteza do que nos espera após o Desencarne. O grito é o imprevisível, a incapacidade de vislumbrar alguma perspectiva, alguma possibilidade, como num momento de crise, em que a pessoa grita por não saber que ações tomar. É um momento de indefinição, de perda de rumo, como uma pessoa que abandonou algo no meio do caminho. O grito se depara com uma sensação desoladora de vazio, e tudo no quadro derrete como um fondue de queijo, em que os elementos perdem sua definição e assumem uma identidade geral, coletiva. É como o mortífero calor de uma bomba atômica, num Munch que morreu pouco antes da tragédia de Hiroshima. É um dia de intenso e implacável calor desolador, e certamente não é um momento de lazer ou distração de entretenimento. Não é uma comédia hilária, mas um drama avassalador. Enquanto o grito é paralisante e inibidor, os homens ao fundo atravessam calmamente a ponte, dando um exemplo de calma e serenidade. O rio abaixo da ponte ameaça se levantar e engolir a pessoa gritante, num momento de colapso, em que a pessoa, de um momento para o outro, encara um quadro de instabilidade e devastação, dizendo para si mesma: “Calma. Você vai se reerguer. Você vai dar a volta por cima”. E não é a Vida a arte de cair e levantar, sacudindo a poeira e tocando para frente? Os barquinhos bem ao fundo flutuam calmamente, alheios ao grito de desolação. O grito está perplexo com as loucuras brutais do Mundo, um lugar tão injusto e duro, tão hostil a artistas que querem, de alguma forma, fazer sucesso. É um momento de choque e pânico, num Mundo chocado com as ousadias de Munch.


Acima, uma charge que vi na Internet. É uma tira ecológica, pois o cortador de árvores é confrontado com a imagem de O Grito, uma face assustada com o que a Humanidade faz ao Meioambiente. Lembro-me também de uma cena no seriado The Nanny, quando a babá toma um susto com a bagunça das crianças, e quando a babá leva as mãos ao rosto tal e qual na pintura de Munch, ao lado da atriz há um pequeno totem inflado da pintura, vendido como souvenir em uma loja de presentes de algum museu. O grande artista é assim – deixa-nos perplexos.

Referências bibliográficas:

Edvard Munch. Disponível em <www.culturagenial.com/obras-edvard-munch>. Acesso 17 mai. 2019.
Edvard Munch. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>. Acesso 17 mai. 2019.
Edvard Munch. Disponível em <www.todamateria.com.br>. Acesso 17 mai. 2019.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Marcante Chagall



O judeu russofrancês Marc Chagall (1887 – 1985) é um surrealista que estudou na Academia de Arte de São Petesburgo. Após isso, muda-se para Paris e entra em contato com a Vanguarda Francesa. Sofre perseguição nazista durante a II Guerra Mundial. Dá nome, em 1973, ao Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, em Nice, sendo um artista muito religioso. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Bella com Colar Branco. A modelo foi esposa do artista. A mulher aqui está gigantesca, um verdadeiro titã, e a floresta abaixo é como se fosse sua horta, à qual a modelo dedica total zelo, cuidado e atenção. É como se fosse a personificação da Natureza, regendo o crescimento das plantinhas e da Vida em geral. Ela está com o semblante sério, um pouco triste, como se observasse a Vida sem expectativas, no caminho da necessária mortificação espiritual. Bella mostra ter capital importância na vida de Marc Chagall, numa personificação da poderosa figura materna, na grande barriga que traz Vida ao Mundo. Sua roupa é sóbria, em preto e branco, e os babados fazem continuidade com a Flora no quadro, numa densa Floresta Amazônica, cheia de mistérios, de terras virgens, de populações indígenas, numa complexidade biológica que é uma verdadeira cornucópia científica, com os rios sinuosos cortando a terra, na sua dança de sedução inebriante. Bella tem a face entediada de uma Madona renascentista, talvez entediada com o tempo em que passou posando para o artista no estúdio deste. Aqui, Chagall nos mostra que ela é a mulher de sua vida, no modo como é necessário que um cônjuge tenha muito orgulho de estar com o outro cônjuge, fazendo com que Marc queira mostrar a tudo e todos que é com Bella que ele está, ao contrário do casamento de um amigo meu, pois este amigo demonstrou ter pouco orgulho de estar casado com a respectiva mulher, pois a esposa dele estava sentada a uns dez metros de distância, e ele só apontou para ela e disse: “Aquela é a minha esposa”, sem fazer questão de apresentá-la para mim. Na mesma ocasião, um outro amigo me apresentou decentemente à esposa, dizendo a mim: “Gonçalo, esta é minha ama e senhora”, ou seja, com muito orgulho. Que casamento é este, no qual não tenho orgulho de estar com tal pessoa? Esta folhagem é como uma horta sendo zelada e cuidada, e podemos sentir um bom gostinho de rúcula, talvez em uma pizza de tomates secos! O grande artista é assim, delicioso, rendendo muitas e muitas interpretações, numa cornucópia psíquica, na riqueza de uma obra invejável. Os babados de Bella são como folhas de alface na horta, no modo como tenho primos veganos, que não suportariam comer um só punhado de carne. O cabelo de Bella combina com a roupa, e é a cor do luto e da discrição, e talvez Bella fosse uma pessoa muito discreta, a qual relutou muito em posar para o marido, e temos aqui, de fato, uma Bella retirada, discreta, nunca muito chamativa, nunca querendo ser, por exemplo, uma Vênus de Botticelli. Ao pé do quadro, vemos um homem com uma criança, talvez Chagall e um filho, e este homem é muito, muito menor do que Bella, sendo um ator coadjuvante em um papel bem pequenino. Ele brinca com a criança, no modo como todo grande artista “brinca” no atelier. Ao lado, uma mesa e outros elementos que parecem compor um parque infantil de diversões, numa hora de lazer, no modo como a pessoa viciada em trabalho nunca respeita a si mesma, levando uma vida miserável em que só há trabalho, e nunca Vida – eu já fui workaholic e sobrevivi para dizer que não vale a pena só trabalhar. Conheci uma pessoa altamente workaholic, a qual acabou fracassando na Vida; por outro lado, conheci uma pessoa trabalhadora, mas uma pessoa que respeitava a si mesma, e esta pessoa acabou deslanchando e obtendo sucesso. No fim das contas, tudo se resume a Amor, e isso inclui o amor próprio. Podemos ouvir o farfalhar das folhas verdes aqui. O dia está belo e estável, numa pessoa que encontrou estabilidade ao centrar a Vida no trabalho mas, ao mesmo tempo, sem ser workaholic. Bella aponta para baixo, como se quisesse mostrar como ama a própria família.


Acima, Crucificação Branca. O Salvador está no meio do quadro, e é uma das provas de que Arte e Religião andam juntas, pois são ambas obras da mesma Humanidade. Jesus, aqui, não parece estar sofrendo, mas dormindo profundamente, quiçá já morto. Parece que há um raio de luz caindo do Céu, do Reino dos Céus, como se Tao estivesse iluminando o momento do Desencarne de seu Filho, fazendo metáfora com a Ressurreição, num momento de passagem, de transição, como uma pessoa mudando de endereço. Em sincretismo, abaixo no quadro, um objeto religioso judaico, e o Sincretismo é possível porque as várias religiões são obra do mesmo Ser Humano, havendo um verniz superficial nas diferenças entre as religiões, e, se rasparmos tal verniz, veremos que somos todos iguais. No quadro reina um tom de cinza, no Céu fechado, que se fechou em torno do momento da Crucificação, com Jesus absolutamente desiludido, perguntando ao Pai o porquê de tal abandono. O cinza é a cor discreta de indefinição, num tom dúbio, trazendo impasses e dúvidas, e é também a cor da Morte, das cinzas vestigiais em uma lareira que não mais arde. É a cor da Finitude. Vemos uma senhora com um bebezinho, talvez a Virgem Maria se recordando do filho criança, numa espécie de Pietà, no momento em que a carne perece e a dúvida existencial surge nas sombras da Morte – temos uma Vida após esta? Então, a Fé se torna o maior desafio do Ser Humano, pois a humilde Ciência dos humanos nada pode provar, ou seja, a Fé resta após o corpo físico morrer, e é como diz Tao: “Se seu corpo morrer, não se preocupe”, na universalidade que rege todas as fés religiosas. Este é um quadro complexo, com vários elementos, lembrando-me daqueles livros de Onde Está Wally?. Vemos um homem levando um saco nas costas, talvez um ladrão, como os ladrões que ladearam Jesus na execução na Cruz, um ladrão que acha que Tao não o observa, mas observa sim, no infalível Olho Onisciente, levando o não-arrependido aos vales horríveis do Umbral, a dimensão daqueles que acham que Deus é uma piada. Ao lado de Jesus vemos uma escada de armar, talvez na remoção do corpo morto na Cruz. A escada é o acesso, o trajeto de Jesus no Mundo dos Mortos, renascendo e sequer se lembrando de seu próprio flagelo na Cruz. A escada é a mobilidade psíquica, permitindo que um andarilho do Umbral se arrependa e vá para onde devemos ir, que é o Reino dos Céus, no grande plano divino para conosco. Vemos algumas casas em chamas, nas destruições horríveis que a Guerra proporciona. É o Caos, a Destruição, com vidas ceifadas e famílias destruídas, todo o Mal do Mundo que Jesus tanto combateu, numa mensagem tão perfeita que perdurará para sempre. Vemos pessoas num barco, talvez um barco de refugiados, tentando fugir da Guerra e da Fome, querendo uma vida melhor, sem tanto amargor. É a tendência que o bom homem tem em querer Paz e Tranquilidade, pois estas são melhores do que a Raiva, do que a Guerra. Na extrema esquerda, vemos um batalhão entrando em campo de combate, empunhando suas espadas e tratando de derramar sangue de irmãos, na insensatez bélica. Eles trazem bandeiras vermelhas, manchadas pelo sangue de pessoas, de seres humanos. Vemos vilas sendo destroçadas, e na extrema direita vemos um brasão ladeado por dois leões agressivos e aristocráticos, com a Estrela de Davi acima, e, mais acima, a Tábua dos Dez Mandamentos, noções norteadoras patriarcais de moralidade, querendo que a Humanidade rume para o que, definitivamente, tem que rumar, que é o Apuro Moral – aos que não têm apuro, Umbral. Parece ser um templo em chamas, num Chagall que sentiu na pele a perseguição nazista, num processo de bullying absolutamente cruel, como Escravatura, Tortura e Execução em Massa. É a crueldade que seduz tantas almas. Acima de Jesus, vemos quatro espíritos pairando, pessoas que entenderam as noções civilizatórias de Moralidade, evoluindo como espíritos e subindo na irresistível hierarquia espiritual – o Bem rege tudo.


Acima, O Aniversário. Vemos uma cena de romance, e os amantes pairam no ar com extrema leveza, num beijo apaixonado, cheio de calor e carinho. É o termo “sentir-se nas nuvens”, quando abraçamos e beijamos uma pessoa que nos “doma” por completo, no termo “your heart shooting stars”, ou seja, quando seu coração explode em estrelas. Enquanto os namorados se amam, deixam o Mundo lá fora, tendo, ali dentro, um momento de romance só deles e de mais ninguém. Ela ganhou um buquê de flores, na cor do frescor da Primavera, a estação do acasalamento, da ressurreição da Vida, como borboletas namorando com flores. O homem está de olhos fechados, como num sonho em uma confortável cama; já, a mulher está desperta, consciente de que está encarando um grande amor, sem saber o quanto tal chama durará, no modo como é importante não a quantidade, mas a qualidade de tempo que duas pessoas passam juntas, num coração que, uma vez tocado, canta para sempre, num coração que deixa para trás as amarguras empedernidas e abraça um estilo de Vida com o coração mais mole. O chão é vermelho, da cor do amor e do glamour, como no tapete vermelho que mostra as celebridades, na ilusão de que apenas sucesso mundano é o que há de necessário na vida de uma pessoa. As flores são a fertilidade, talvez a fertilidade criativa de Chagall, na obrigação que um artista tem em nome da Originalidade, prestando a atenção para não trilhar caminhos que já foram trilhados. Os amantes estão vestidos em cores sóbrias, num caso de amor discreto, talvez num caso extraconjugal, tendo que se esconder do Mundo, na infelicidade que um amante tem em não ter orgulho do respectivo amante, pois amar é ter orgulho. Vemos um banquinho de assento negro, que é o imprevisível, e não sabemos qual será o desfecho desse namoro, se um vai chutar o outro, se haverá ressentimento, no frágil terreno dos sentimentos. Aqui, o homem é quem seduz, e ele quer trazer a mulher para esse estado de levitação, de relaxamento. A mulher está um tanto relutante, e não sabe se deve ou não ceder aos encantos sedutores, como se temesse que o jogo possa machucar, macular um coração, um sentimento. Ela está a um passo de se apaixonar, e parece que vai ceder, talvez, na primeira vez na vida, abrindo o coração e convidando alguém para entrar, num estado de rendição, no “assalto” que é um grande amor. Pelas janelas desse apartamento, vemos um Mundo lá fora, o qual funciona absolutamente alheio aos namorados a portas fechadas. É um momento de intimidade, na delícia que é se jogar nos braços de alguém e, pela primeira vez, não fazer Sexo, mas fazer Amor. O momento é um ato de Amor em meio a um Mundo aguerrido, num Chagall que testemunhou a duas Grandes Guerras, fazendo da Arte uma bandeira da Paz; fazendo da Arte uma guerra benéfica e pacífica, trilhada entre a mente do artista e a dos espectadores. A camisa verde do namorado sedutor é a fertilidade de um verde gramado, num jardim onde reina Beleza e Paz, numa espécie de Jardim de Infância, um lugar onde somos todos irmãos, num lugar puro e inocente no qual não é mais necessário compor casais, sendo tudo resumido a amizade, muita amizade. Esses amantes passam um pela vida do outro marcando-se em reciprocidade, no fundo sabendo que o Desencarne chegará, e que na Vida precisamos colecionar experiências felizes, de entrega. Na esquerda, vemos uma mesa. Em cima, uma faca, que é a Agressividade, mas uma faca que, ali dentro, em um momento tão bonito de entrega, é uma faca sem fio, como se estivesse dormente, deixando lá fora a necessidade de Agressividade, havendo, ali dentro, um momento de apara de arestas, de rendição, num momento em que as guerras mundanas nada significam. É como Yin e Yang se abraçando, formando um só ser. Este apartamento parece ser em Paris, a cidade dos amantes, como na ponte parisiense que acumulou os famosos cadeados dos enamorados, como uma Gramado, um lugar romântico, muito bom para luas de mel. Um beijo!


Acima, O Passeio. A cena remete aos velhos e bons musicais de Hollywood, nos quais maravilhosos dançarinos pairavam no ar, fazendo-nos sonhar com um mundo maravilhoso, um mundo bem diferente da Dimensão Material. O homem e a mulher sorriem felizes, talvez num cálido momento de orgasmo, num casal feliz, num amor desapegado e não obsessivo, pois, apesar de estarem de mãos dadas, não estão necessariamente grudados um no outro, no modo como, em qualquer casamento, o relacionamento precisa ser desapegado. Do contrário, torna-se um relacionamento pesado, fadado à ruína. Podemos ouvir uma doce melodia, talvez o barulho de sapateado, no modo como Hollywood, em plena II Guerra Mundial, fazia musicais para que as pessoas, mesmo que por poucas horas, pudessem se desligar do Mundo lá fora e pudessem ter um pouco de alegria e prazer, num conflito que afetou o globo inteiro, inclusive atingindo a Festa da Uva de Caxias. A mulher é leve como uma pluma, e o homem é uma âncora, uma pedra forte, uma referência, estando com os pés no chão, na realidade, como se soubesse que, na Vida, é preciso que, além de senso de humor e riso, tenha-se siso. Este passeio é um piquenique, e vemos a toalha vermelha no inferior do quadro, com uma garrafa e um cálice de vinho, no prazer de curtir a Vida em seus aspectos mais simples e descomplicados, como namorar, no fato de que, quando a pessoa está “in love”, esta mesma pessoa não liga para talheres de ouro maciço. A toalha do piquenique é rubra e floral, como flores presenteando amantes, e o vermelho é o calor da relação, numa doce lua de mel. Talvez aqui os personagens da cena estejam ligeiramente embriagados, alegres, tomando o sangue dos vinhedos, o sangue do Salvador, na alegria de Baco, o senhor do riso e da festa. O gramado deste parque é verdejante e exuberante, perfeito para um passeio em um domingo de Sol. O Céu não está azul anil, não está um Céu de Brigadeiro, mas também não está chuvoso. À esquerda vemos ramos de uma árvore, e ao pé dela a refeição toma corpo, na força avassaladora da Natureza, força que o artista tenta reproduzir por meio da Arte, fazendo desta uma potencial bomba atômica de comoção, num artista que quer “fazer o chão tremer”, como em choques catárticos. Em uma das mãos, o homem segura um pássaro, aprisionando este. Será que a mulher está aprisionada? Talvez não. O pássaro contido é o impulso sendo controlado, no modo como meras asas ao vento não trazem um propósito sólido existencial. Podemos ouvir o pássaro piando, num barulho relaxante, e pouco perturbador, como no filme Nosso Lar, em que, na colônia espiritual, podemos ouvir o canto de pássaros, na orquestra natural, havendo, lá em cima, tudo o que é considerado agradável na Terra. Nesta cena, vemos um pacato vilarejo com casinhas, todas em verde, formando continuidade com a Natureza. Neste povoado mora a Paz, no sonho de uma pessoa da cidade grande, que quer ter quietude mudando-se para uma cidade pequenina, na deliciosa sensação de Paz nas Experiências Extracorporais. Mais ao fundo do vilarejo, uma igreja, só que em tom de rosa, formando harmonia cromática com o vestido da mulher, na cor das coisas agradáveis e femininas, como beleza e perfume, no modo como o incenso da Índia seduziu a Europa. A igrejinha é o culto à Nossa Senhora, nas maneiras que as religiões buscam em metaforizar a Dimensão Metafísica, usando, aqui na Terra, representações, buscando que o Ser Humano entenda que o Pensamento é melhor do que a Matéria. Nesta cena, há um frescor, e podemos sentir a agradável temperatura, numa brisa doce, e podemos sentir tal brisa acariciando nossas faces, como uma mãe cordial e carinhosa, uma mãe que quer o melhor para os filhos. O pássaro contido é o ganho do dia, preparando-se para virar almoço, como nos documentários sobre vida selvagem, com a cadeia alimentar fazendo de insetos almoço a muitos animais. As mãos dadas dos enamorados são link, a ligação entre duas mentes, num momento de concórdia e harmonia, com duas pessoas muito sortudas de terem encontrado uma à outra. Love is beautyfull.


Acima, Um Trigal em uma Tarde de Verão. Vemos aqui uma dualidade, com dois sóis, cada um irradiando à sua própria maneira. É como se fossem duas pessoas precisando conviver, talvez dois companheiros de cela num presídio. Talvez é como num casamento, em que um tem que aguentar os defeitos do outro, num permanente exercício de paciência, o segredo para o casamentos longevos. O sol da esquerda é mais agressivo, com raios pontudos que apontam em todas as dimensões, como o rapper Eminem mostrando o dedo médio para os fotógrafos. É como um polvo pai, estendendo seus braços a todos os filhos, nunca se esquecendo de algum de seus filhos. É como uma explosão de supernova, expandindo-se em todas as direções, como um artista caindo nas graças do público, num fãclube enorme, esmagador. É como um macrófago, a célula branca sanguínea que, com seus braços, come as bactérias, explodindo de tanto comer e virando pus. Esses raios solares são como espetos em uma cerca, alertando-nos para que mantenhamos respeitosa distância, no modo como respeito os vendedores ambulantes, pois não piso na mercadoria deles. Já, o sol da direita é mais brando, feminino, e tem o formato de um seio. É o princípio de nutrição, de manter uma ninhada, num superpai que nunca deixou algo faltar em casa, sempre batalhando para dar o melhor aos filhos. O sol da direita é mais brando, sem arestas perfuradoras, e tem um brilho mais cortês, convidando-nos a observá-lo de perto. Já, o outro sol não nos convida a isso, e só podemos olhar para ela com óculos escuros. São as duas faces de um trabalho – a lisa e a áspera, ou seja, a fácil e a difícil. Esses círculos concêntricos são como bonecas russas, havendo uma hierarquia, como numa família, na qual os filhos mais velhos ajudam a criar os mais jovens. O pequeno círculo ao centro é um subconjunto, um submundo, numa pessoa que, nessa sub-realidade começa a se contentar com migalhas, como uma pessoa que, ao observar a Monalisa, só pode ver as mãos desta, e nunca ver o restante do quadro. É como as camadas geológicas de um planeta, com um centro quente, de densidade alta, como a lava que é expelida pelos vulcões, na fúria da Natureza, causando grandes desastres, os quais são uma oportunidade para o Ser Humano praticar o altruísmo, combatendo a natural tendência humana ao egoísmo – “Se eu estou bem, o resto que se ferre”, dizem as pessoas. Como é feio o egoísmo! Neste quadro de Chagall, temos uma tarde quente e dourada, de cores ricas e sedutoras. O trigal é a mente criadora, fértil, criativa, fornecendo o pão que é a Arte, trazendo honra a uma sociedade que encoraja a Arte em quaisquer aspectos – Cinema, Literatura etc. No meio do trigal, a foice, que é a Morte, esta senhora que, cedo ou tarde, baterá em nossa porta, perguntando-nos o que fizemos da Vida. É o inevitável fim, num artista empenhado em produzir antes que o inevitável aconteça. Na Vida, nada mais certo do que a Morte. Aos de apuro moral, uma libertação; aos de pouco apuro moral, uma prisão. Então o ser desesperado, no Umbral, começa ver que só lhe resta rezar, e nisso discordo de Marx – as religiões não são bobagens! Vemos na cena aqui um humilde barquinho, num senhor pacato, pescando seu peixe, não querendo voltar para casa de mãos vazias, talvez com várias bocas para alimentar em casa, no pesado encargo de um pai de família, na responsabilidade de sustentar vidas. Vemos caindo neste lago dourado um ramo de planta, talvez ceifado pela foice na plantação. É uma vida que chega ao fim, afundando na água, apodrecendo e se juntando aos ciclos do meio ambiente. O lago e o Céu fazem um continuum, e são da mesma cor, num momento em que tudo parece ser feito de ouro. O fundo do lago é bem profundo, e nos convida a uma serena meditação, num solitário momento de Paz, talvez numa pessoa passando sozinha uma virada de ano, sem tristeza, mas com serenidade. Podemos ouvir o barulho da foice ceifando a Vida, nas demandas de um trabalho, no modo como, mesmo depois do Desencarne, a pessoa sente a necessidade de continuar produzindo. A Vida não cessa.

Referências bibliográficas:

Marc Chagall. Disponível em <www.moma.org/artists>. Acesso 8 mai. 2019.
Marc Chagall. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>. Acesso 8 mai. 2019.
Marc Chagall Obras. Disponível em <www.google.com>. Acesso 8 mai. 2019.