Volto a falar sobre o
artista plástico brasileiro Dalton Paula. Os textos e análises semióticas a
seguir são inteiramente meus. Boa leitura!
Acima, A Farmácia. Aqui, um cenário de crise e desabastecimento, pois as
prateleiras da farmácia estão quase vazias, num cenário de pobreza e
descontentamento, como uma pessoa que está perdida, como num labirinto, andando
em círculos numa vida sem sentido, sem Norte. O cabritinho branco é a cor do
jaleco, na cor da Saúde, do Espiritismo, representando a pureza de intenções, a
bondade neutra, na cor limpa da Paz, da amizade entre povos. Um viçoso Sol
nasce por trás do animalzinho, anunciando um glorioso dia de produtividade,
naquela pessoa que desperta muito bem disposta, fazendo com prazer as tarefas
do dia, no termo latino carpe diem,
ou seja, aproveite o dia. O Sol é como o adorno em Jackie O. numa festa,
quando ela era a primeira dama americana, numa mulher de um estilo e de uma
elegância arrebatadores, conquistando várias gerações de admiradores, um
espírito cuja energia podemos sentir no fabuloso museu novaiorquino Met, com
seus tesouros inestimáveis, numa mulher que amava Arte. O Sol é a esperança, a
promessa de um dia melhor, de uma dimensão melhor, na lendária Terra da Estrela
da Manhã, a dimensão logo acima da nossa, no lar onde só há bondade, um lar
bloqueado para espíritos maus. Podemos ouvir o cabrito gritando, numa terrível
memória de infância que tenho, quando assisti ao abate de uma ovelha, com o
bicho sofrendo até dar os últimos suspiros, no modo como esquecemos, quando
comemos carne, do sofrimento no abatedouro – são os sacrifícios da Vida, como
sacrificar a preguicinha na hora de sair da cama, deixando de lado os impulsos
de prazer do Id, impondo Ordem e Consciência ao Caos, como a cabeça decepada de
Medusa, sanando o Mal, curando, trazendo Saúde e discernimento consciente, na
luz do Pensamento Científico. Aqui, os farmacêuticos têm aspecto magro,
cadavérico, do tipo pele e osso. A magreza é a carência, a pobreza, numa
realidade extremamente dura, num espírito corajoso, que decidiu encarnar em tal
ambiente inóspito para, assim, crescer muito como espírito, pois crescer é o
áureo sentido da Vida. Os homens negros parecem múmias, com sua magreza que se
rendeu a milênios de degradação física, só restando uma vaga ideia de como a
pessoa era quando viva, no fato como tudo de Matéria está fadado a tal destino,
inclusive apolíneas pedras preciosas, as malditas joias que tanta ganância
incentivam, nos perigos inevitáveis que rondam um tesouro, na eterna obsessão
humana por dinheiro, pelo mundano, na incrível tragédia que é ganhar na loto.
As mãos dos farmacêuticos são magras e ávidas, sedentas, desnutridas, talvez
querendo pegar o cabrito e cozinhá-lo, num cenário de Guerra, só deixando rastros
de destruição e fome, como numa Scarlet O’hara se deparando com os restos de
sua outrora suntuosa mansão – não há Beleza na Guerra, realmente. O cenário
aqui é um tanto sombrio, incerto, como numa grossa cortina, impedindo que
vejamos além – é a imprevisibilidade existencial, algo que assegura que
passemos pelo que precisamos passar em Vida. As golas dos farmacêuticos são um tanto
elizabethanas, remetendo à era em que a Europa acordou para o Mundo ao seu
redor. Aqui, a roupa tem vermelho, na cor do exame de sangue, no líquido
comportamental que tanto atrai psicopatas vampirescos, no modo como nunca,
nunca devemos duvidar da ardilosa inteligência de um psicopata. Por baixo aqui,
camisas verdes, como numa linda casa que vi certa vez, com quartos que davam canteiros
internos, numa casa de sonhos. As prateleiras aqui são ordeiras, alinhadas, na
força do Pensamento Racional; as prateleiras são a demanda do dia, numa empresa
que tem que abrir as portas e funcionar, no modo como disse certa vez o astro
Leonardo DiCaprio: “Trabalho é essencial”. As caixas de remédios aqui têm
tarjas vermelhas, que recomendam cuidado, contraindicando a automedicação, no
modo como o homem de Tao é assim – extremamente cauteloso.
Acima, A Rede. A cena me remete a um filme de Fellini, como um semideus
sendo transportado numa rede, uma criatura extremamente frágil, com a vida por
um fio, numa fragilidade, como carne viva em ferimento. A rede é o
repouso, o relaxamento, a pausa depois de uma batalha. A rede é a delícia do
lar, o lugar onde ficamos à vontade, deixando para lá, do lado de fora, as
regras da Vida em Sociedade, na intimidade de um casal, convivendo, como em
outro filme, com um casal jantando, alimentando-se, em pé, da mesma panela,
cada um com sua colher, no prazer da informalidade do lar, um lugar onde
podemos usar roupas furadas ou esfarrapadas. O chão alaranjado é uma majestosa
aurora, no modo como os gregos tinham uma deusa específica, que cuidava do
alvorecer do dia, num momento mágico, em que parece que o Mundo é perfeito e
feito de ouro, numa manhã de domingo, como diz na canção Easy: “Sou fácil como uma manhã de domingo”. Dalton Paula traz em
suas obras a questão racial, no modo como Brasil e África são como parentes,
com o sangue africano pulsando em cidadãos brasileiros. A parede ao fundo é
quase da cor de carne, como na Casa da Luz Vermelha, o bordel da Literatura
Brasileira, remetendo-me às paredes coloridas de um restaurante em Capão da
Canoa, com cores que casam muito bem com os sabores, num ambiente que convida ao
prazer da degustação. Ao fundo na cena, três garrafas, talvez bebidas
alcoólicas, remetendo-me a um amigo alcoólatra que tenho, uma pessoa que está
sendo irresponsável, deixando que o Álcool tome conta de sua vida. As garrafas
são a reserva, o armazenamento, como na fábula da formiga que trabalhou o Verão
inteiro para garantir a reserva de Inverno, ao contrário da cigarra, que ficou
o Verão inteiro festeando e encarou um Inverno frio, em todos os sentidos, com
fome e privação. É o modo como cada pessoa tem que construir algo em Vida, trazendo
produtividade aos dias vagos que nos restam na Terra, como numa pessoa
aposentada, que teve que descobrir algo de novo para fazer, pois a
Aposentadoria pode ser uma bênção ou uma maldição – depende do aposentado. Aqui,
a vara sustenta a rede. A vara é a utilidade, a força de trabalho, com uma
farta rede sendo sustentada por dois empregados, num quadro que inspiraria um
marxista a dizer que esta obra ilustra a exploração do Homem pelo Homem. Os
homens aqui caminham em direções opostas, como se estivessem competindo num
cabo de guerra, competindo para ver quem é o mais forte. Os pés descalços são a
Simplicidade, como na cena do baile de batucadas em Matrix
Reloaded, com as pessoas descalças, na glória de uma
festa na qual as formalidades perdem força, abrindo espaço para a festa de
agregamento e diversão, como num baile de Carnaval. Aqui, pode ser que Dalton
nos traga a questão da Escravatura, num Brasil no qual ainda podemos ouvir
nítidos ecos de tal era de exploração racial, numa estrutura social que ainda
condena o negro à pobreza. A rede aqui balança como um pêndulo, como no livro O Caso do Martelo, de José Clemente
Pozenato, num assassinato feito pela ferramenta do título. A rede balança
placidamente, numa doce brisa que traz arejamento a uma casa, como na deliciosa
brisa salvadorenha, numa cidade à vontade, na qual as pessoas passeiam,
tranquilamente, de chinelos em
shopping. A vara aqui é a força estrutural, o sustentáculo,
num chefe de família que tem a descomunal responsabilidade de prover um lar,
como no meu falecido avô, que teve que prover um lar com esposa e seis filhos,
naquele pai herói, que não deixa que a privação entre no lar. As garrafas são
translúcidas, no modo como os lábios de uma mulher negra ficam bonitos se
pintados com um batom incolor brilhoso. Aqui, a vara aguenta firme, como se
estivesse numa fábrica sendo submetida a testagens. A vara é o modo como um
homem pode resistir a uma mulher, e vice versa, no modo como tal cultura de
resistência permeia a herança afrobrasileira, uma cultura tão peculiar de modo
musical, gastronômico, religioso etc. As garrafas são a vontade cristalina de
um amigo querendo ajudar o outro amigo.
Acima, Comunhão. Um compartilhamento, já que a graça da Vida está em
compartilhar as coisas, como convidar um amigo para uma casa de praia, no
prazer de se receber alguém em casa, servindo um cafezinho e sentando para prosear.
No centro de tudo aqui, um menininho com uma vela acesa na mão, talvez na cerimônia
de Primeira Comunhão, remetendo-me à cerimônia, ao rito pelo qual passei pelo
mesmo motivo, sentindo respingar em mim a água benta que o padre jogou sobre o
grupo de crianças, na maravilhosa igreja caxiense de São Pelegrino, a qual é,
na prática, um museu de Arte Sacra, com direito a uma rara réplica da Pietà de Michelangelo. Na paixão de
Dalton pela Simetria, o menino em ritual de purificação é ladeado por duas
senhoras negras, outro traço de Dalton – o motif
racial. Outra leitura que pode ser feita é a de um cabo de guerra, como se as
mulheres estivessem competindo pelo menino, como numa Bipolaridade, numa pessoa
que se depara com sentimentos conflitantes, como numa relação de Amor e Ódio em
relação a um vicioso submundo. O ato da comunhão, a força deste ato, está na
união, na simplificação agrupadora, como organizar uma brinquedoteca, colocando
todos os brinquedos num grande cesto, numa sensação de limpeza e organização,
na Paz ordeira que pontua o Mundo Imaterial. No momento em que todos estamos
com a hóstia na boca, todos nos sentimos iguais, pois temos uma ideia de como
todos os fiéis, ali, naquele templo, estão se sentindo, e esta é a sensualidade
cósmica, num Universo uno, numa espécie de “superinternet”, numa rede prazerosa
e liquidiscente na qual estamos todos conectados como irmãos, como iguais,
mesmo que em pontos diferentes de depuração e crescimento, como numa família na
qual os mais velhos educam os mais novos, ao contrário do que disse a atriz
Suzana Vieira, a qual disse não mais ter Paciência para com os atores que estão
começando na carreira, e não é necessária Paciência para se contornar as vicissitudes?
Estas senhoras estão sentadas em cadeiras de rodas, numa dificuldade, no modo
como os obstáculos acabam por causar um grande aprendizado à pessoa, no fato de
que tal vínculo, com tal cadeira, tem prazo de validade, ou seja, o dia do
Desencarne. A cadeira de rodas é o modo como todos temos limitações, no fato de
que a Vida não é perfeita, nem para mim, nem para você. A cadeira é a
Encarnação, o vínculo do Espírito com a Carne, fazendo da Matéria um poderoso
influenciador, exigindo que a pessoa tenha Disciplina e Nobreza para viver
produtivamente os seus dias na prisão bela que é a Terra. Atrás na cena, uma
farta cortina branca, na paixão de Dalton por cortinas, no fato de que uma casa
fica mais aconchegante com cortinas. O branco é o recomeço, o ponto de
reinício, como no rito de Batismo, no qual a pessoa é lavada e “perdoada” por
ter vindo ao Mundo no “Pecado” que é o Sexo, no parâmetro moralista cristão, um
rito que busca, de forma nobre, eliminar a Malícia em relação a Sexo, como numa
excelente professora que tive no Ensino Fundamental, uma freira que decidiu dar
aulas de Educação Sexual aos alunos – que atitude nobre! As senhoras aqui são
de uma magreza cadavérica, talvez na questão da fome em nações paupérrimas,
numa realidade muito dura, com alimentos racionados, havendo em Tao o antídoto
para isso, pois um líder que rege sob a luz de Tao jamais deixará o povo
passando fome, como diz a doutrina: “Nunca seja avarento em matéria de comida”,
ou seja, aprender a lição da Generosidade, da distribuição, da comunhão, do
compartilhamento. A vela acesa aqui é a Esperança, a Fé de que há um mundo bem
melhor, acima do nosso, um mundo que, apesar de paradisíaco, exige que o espírito
siga sendo produtivo, a exemplo de Tao, o guerreiro, um Pai que não quer ver os
seus filhos “atirando-se nas cordas” do ringue da Vida. Talvez aqui o menino
tenha duas mães – uma biológica e uma adotiva. A Simetria é o modo como a Corpo
Humano é, num organismo tão simétrico, imitando o bom gosto de Tao, o criador
genial. Os pés descalços são a Simplicidade, numa sala de visitas em que o
convidado se sente tratado como um rei, sem culpa em relação a prazer.
Acima, Cozinha Sagrada. A realidade de uma dona de casa, a qual, depois de
uma glamorosa cerimônia de casamento, e de alguns meses de lua de mel, encara o
dia a dia, nas tarefas diárias árduas para se manter uma casa limpa e
organizada, numa divisão de tarefas com o marido, o qual, geralmente, sai de
casa para trabalhar e trazer dinheiro para dentro de casa. As simetrias tensas
de Dalton trazem sentimentos diletantes, como uma folha de papel sendo rasgada
ao meio, na famosa imagem da congressista americana Nancy Pelosi ao rasgar as folhas
de discurso do truculento e controverso Donald Trump. Na cena aqui, vemos um
azul bem cinzento, esmaecido, num dia melancólico de nuvens de incerteza, no
fascinante personagem Charlie Brown, um personagem bem humano, cheio de dúvidas
e incertezas em relação à Vida. Este tom é sisudo, discreto, numa rainha
inglesa tão sóbria, tão séria, por vezes dura, deparando-se com uma inesperada
e nunca anunciada crise no momento da morte do monstro Di, a princesa que unia
tradicional com moderno, agradando a todos, num carisma mágico. O fogão é o
dever do dia, a luta do dia, no momento em que o disciplinador despertador
toca, chamando-nos para a luta do dia, num momento em que o Id tem que ser
deixado de lado, fazendo com que a pessoa resista ao pecadinho da Preguiça,
levantando da cama, no primeiro sacrifício do dia. Sólidas panelas de ferro
ladeiam o fogão. As panelas são o siso, a sedimentação, numa pessoa que decidiu
colocar os pés no chão e fazer algo de seus dias na Terra, abraçando tal
obrigação, abraçando o dever da produtividade, ao contrário de uma pessoa fofoqueira
que conheço, uma pessoa vazia, mesmo que rica financeiramente. Aqui, é como um
livro sendo aberto, revelando a ideia do autor, fazendo com que este seja uma
espécie de anfitrião, recebendo-nos dentro de sua mente, numa espécie de coito
mental. O fogão é o calor da Vida, num lar caloroso, com pais zelosos, que
buscam educar os filhos da forma mais nobre possível, no desafio que é incutir
valores, como no hábito de levar, para uma livraria infantil, uma criança que
está começando a se alfabetizar. Aqui, esta cozinha está limpinha, numa dona de
casa dedicada, mas numa vida um tanto maçante, como me disse uma psicóloga: “É
desinteressante uma pessoa que é apenas dona de casa”, no sentido de que a
mulher tem que ter alguma atividade extralar, como trabalhar em algum lugar, ou
em alguma coisa. O fogão é uma cozinheira exímia, na dádiva que é se sentar
numa mesa e saborear uma comida bem feita, feita por quem saber fazer, no fato
de que comida boa não é comida supercara, mas uma comida simples e bem feita,
como numa simples e despretensiosa salada de batata bem feita. A tampa de vidro
do fogão é transparente, retirada, discreta, deixando transparecer o fundo,
como num amigo sincero, aquela pessoa a qual conhecemos muito bem, no fato de
que as boas amizades são eternas, com velhos amigos se reencontrando no Plano
Metafísico, com dois amigos que se olham nos olhos e reconhecem o Tao em cada
um dos dois, no sentido de que minha divindade vê e reconhece a tua divindade,
como a agenda social que nos acompanha desde crianças, chegando a uma festinha
de aniversário e presenteando o aniversariante, na dádiva que é, no dia do
aniversário, abraçar um amigo, ganhar um presente e saborear um doce. As
panelas estão fechadas, reclusas, numa pessoa reservada, que sabe o valor da
Discrição, da transparência de intenções, numa pessoa leve e agradável, fácil
de ser levada, ao contrário do “mala”, a pessoa pedante que muito pesa sobre
nossos ombros, numa energia insuportável, como num dia veranil carioca de mais
de quarenta graus centígrados. As panelas são o Realismo, numa pessoa que
cansou de ver o Mundo de forma idealizada, começando a se dar conta da
inevitabilidade das imperfeições materiais. As panelas estão respaldadas por
rendas de crochê – é o acolhimento, o respaldo de um lar seguro e sólido. O
fogão é a Vida em seu calor vibrante, com planetas filhos girando em torno do
mesmo Pai provedor.
Acima, Ex-votos A. Aqui, Dalton foge de sua habitual Simetria. O homem
está fraco e doente, como uma Evita Perón definhando pelo Câncer – Dalton nos
traz essas imagens de fraqueza, de vulnerabilidade, talvez fazendo metáfora com
a vulnerabilidade social do negro brasileiro. É como me disseram que é uma
pessoa com Dengue, ficando duas semanas inteiras imprestável numa cama. É o
momento em que admitir a derrota demanda mais força do derrotado, numa pessoa
que sente o sabor dolorido da frustração, do fracasso, como uma certa cantora,
a qual se tornou a eternamente “quase lá”, no modo como o Mundo pode ser
exigente e duro, no termo em Inglês overwealming,
ou seja, demandoso, exigente. Uma janela dá vista a um perfeito céu azul – é a
Saúde, na promessa de um mundo em que as doenças simplesmente não existem, num
plano onde a pessoa se sente permanentemente bem disposta e saudável, num lugar
onde não há fadiga ou esgotamento, na Beleza da Juventude Eterna, o plano que
nos espera. Na janela, um vaso infértil, sem qualquer planta – é a Pobreza, a
Privação, num terreno devastado, talvez por uma guerra. É um plano árido, como
na aridez egípcia em torno do Rio Nilo, em uma terra na qual não há espaço para
um mínimo arbusto, quanto menos uma floresta. Esta cama é o final do filme
2001, quando o Ser Humano se depara com sua finitude, havendo o retorno ao Lar,
ou seja, o Renascimento, como na Ressurreição de Jesus, na vitória da Vida
sobre a Morte; do elegante sobre o vulgar. Este vaso tem que ser amado e
cultivado, para que possa abrigar Vida, no trabalho dedicado de uma pessoa, que
se esmera para deixar seu jardim o mais belo possível, no prazer de uma pessoa
aparando o gramado de seu próprio jardim, num gesto de Amor e Devoção,
mostrando a diferença, como duas casas que vi em Porto Alegre, sendo
uma bem arrumada, bem mantida, pintadinha e com um belo jardim; a outra, logo
ao lado, descuidada, feia e com aspecto de abandono, como nas casas feias e
imundas do Umbral, em violento contraste com as moradas elegantes e limpas do
Plano Metafísico – a Vida na Terra é a oportunidade para a pessoa exercer o Amor,
o cuidado com o Mundo, amando este, pois como posso ser amado por um Mundo que
odeio? No ditado: “Respeito é para quem tem”. Aqui, uma mesinha respalda um
copo – é o remédio, por vezes amargo, mas que cura e faz o Bem, como na água
gelada na entrada da mística floresta tolkiana, uma água desconfortavelmente
fria, mas que limpa e cura, como na dorzinha de uma seringa cheia de remédio
benéfico, no modo como as dores são inevitáveis, chamando nossa atenção como
semáforos. A cabeceira desta cama é bela, torneada, aprimorada, uma cama digna
de rei, num lugar onde nos sentimos tão bem, tão bem vindos, tão confortáveis,
num lugar delicioso que pode ser, definitivamente, chamado de Lar. Os lençóis
são os cuidados, como enfermeiras se dedicando aos enfermos, dando um gostinho
de Lar para um lugar tão desconfortável como um hospital, como me disse um
psiquiatra: “Quem é que gosta de ficar internado num hospital?”. Os lençóis são
a proteção, e são bem limpos, perfumados, no simples prazer de se deitar numa
cama com lençóis bem limpos, como uma avó dedicada arrumando, com todo a Amor e
Carinho, a caminha para o neto dormir, como uma cama feita em um hotel, na
sensação de um lar ordeiro, limpo e acolhedor, no prazer de se deitar num
travesseiro perfumado e limpo. O homem aqui parece estar adormecido, talvez
sedado, talvez se recuperando de uma virose violenta. É o retrato de entrega,
no momento mágico e insubstituível de se jogar existencialmente nos braços de
alguém, confiando em alguém, abrindo suas tristezas e dores, no sentido de que
Sexo pode ser comprado; Amor, não. O negro aqui está inconsciente, talvez
acordando desencarnado depois de morrer brutalmente num tronco, sendo
chibatado, sangrando até morrer, havendo no Escravismo uma das provas de como o
Ser Humano pode ser cruel e insensível.
Acima, Retrata Maria II. Aqui, também temos um Dalton assimétrico. A
mulher está retirada, como se soubesse que não seria interessante apoderar-se
do quadro todo, num ato de modéstia e discrição. Ela é parda, negra, mulata,
como uma Naomi Campbell, chamando a atenção do Mundo desde os primórdios da
carreira, na negra mais linda da História. Aqui, os cabelos de Maria estão
revoltos, soltos, balançando ao vento, ao sabor do acaso, numa brisa de meia
estação, dando-nos o gostinho da meteorologia perfeita de um mundo melhor, na
terra onde o Sol brilha majestoso sempre. Maria está de olhos fechados,
sonhando com algo, como se soubesse que Tao é invisível, insípido, incolor e
inodoro, havendo na Água a metáfora para tal poder enigmático, no modo como o Ser
Humano não tem como entender o Infinito, pois este é muito poder. Maria usa uma
blusa amarela, dourada, na obsessão do Egito Antigo em extrair Ouro da
Natureza, numa fixação milenar por pedras e metais preciosos, bens que parecem
ser eternos quando, na verdade, são finitos como uma maçã, a qual, cedo ou tarde,
apodrece e se decompõe, na piada que é o destino da Matéria. Maria usa uma
sombra dourada, para entrar em harmonia cromática com a blusa, numa pessoa que
sabe que a elegância não está na peça de roupa em si, mas na linha condutora de
harmonia cromática que monta um look. O Ouro faz menção ao astro rei, a grande
pérola incandescente sem a qual o Ser Humano e nem outra vida qualquer
existiriam. Maria está num sono profundo, talvez querendo se deparar com os
fragmentos oníricos psicológicos de si mesma, no modo como a Psicologia vê os
sonhos como alvos de interpretação, numa análise profunda em uma sessão de
decodificação dos signos dos sonhos, num trabalho que não deixa de ser
semiótico. Maria está calada, com uma boca quase inexistente, talvez sabendo do
risco de se falar bobagens ou coisas tolas, pois quando é que um tolo pode ser
respeitado? O nariz de Maria também é dourado, talvez numa cartilagem implantada,
numa pessoa com um grave distúrbio de autoimagem, desfigurada por mais e mais
cirurgias plásticas, como num certo célebre artista, uma pessoa que já era bela
sem as plásticas, perdendo-se em meio a tantos episódios cirúrgicos, numa vida
que pode se tornar um filme de terror, com uma pessoa que, ao se olhar no
espelho, não vê a si mesma, numa certa obsessão humana por Beleza e Perfeição,
tentando desesperadamente imitar a Beleza Metafísica, esta sim eterna, sendo a
prova de que o Belo triunfa sobre o Mal. Os cabelos de Maria são de um negror
profundo, trazendo em si o sangue africano que tanto foi derramado nos horrores
escravocratas. Maria aqui está incerta, e parece querer se libertar do quadro,
fugindo do olho do espectador, talvez numa pessoa tímida e reservada, uma
pessoa que sabe do perigo que é o aparecer midiático, com supercelebridades que
são prisioneiras de si mesmas, perdendo a deliciosa prerrogativa do cidadão
comum de ir e vir, como passear tranquilamente por um shopping, sem ser
assediado nem perturbado com pessoas querendo tirar pedantes selfies com você.
Aqui, Maria pensa em algo, talvez ponderando por algo, talvez confusa, como a
rainha de Hellen Mirren, confusa, sozinha cabisbaixa numa sala, tomando um
uísque para abrandar a dureza do dia, num momento em que a regente não sabe
qual atitude tomar, sendo questionada por um reino inteiro e pelo Mundo,
sobrevivendo e emergindo triunfante de tal episódio duro. O ombro de Maria é
lustroso, numa pele bela, escura, bronzeada, como me disse uma pessoa
portoalegrense que morou no Rio de Janeiro, dizendo que chega um ponto em que o
Sol carioca deixa curtida a pele da pessoa. Os informais cabelos estão à
vontade, num cenário de liberdade e relaxamento, num momento transitório, de
transformação, no modo como uma pessoa pode transformar a vida de outra pessoa,
no poder do Amor, a força motriz de Tao, o Pai que quer que seus filhos se amem
como irmãos. Maria aqui parece mandar um beijo para o espectador, lembrando-nos
de que, sem Amor, tudo rui.
Referência bibliográfica:
Obras. Disponível
em: <www.daltonpaula.com>. Acesso em: 10 jun. 2020.