quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Dias de Vida e Arte



Craque do Modernismo Brasileiro, o longevo pernambucano de nascença Cícero Dias (1907 – 2003) foi o sétimo de onze filhos. Entre 1925 e 27, conheceu modernistas no Rio de Janeiro e começou a estudar Arte. Em 1937, fixou-se em Paris e ficou amigo de Pablo Picasso. Dias foi preso pelos alemães durante a ocupação da França na II Guerra Mundial, e nos anos 40 expôs pela Europa. Em 1965, a Bienal de Veneza fez uma retrospectiva sobre CD. Uma obra do artista pode custar até 650 mil reais. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Casal no Barco. Como é plácido este lago! Que delícia! A superfície está completamente inabalada, num artista centrado, que encontra muita paz em seu dia a dia, na felicidade das pessoas produtivas. O barco é o invólucro, o lar, o pertencimento, preservando o casal de se afogar. O lago é como um espelho, na necessidade de uma pessoa que tem que se conhecer, olhando para si mesma, no caminho da autoaceitação, levando a Vida de um modo mais simples, sem tantas ambições que abalam a calma. O casal não sorri, mas também não está triste. Eles estão estáveis, como numa inabalável equação, sendo um igual ao outro, apesar de parecerem ser tão diferentes um do outro. É claro que o remo aqui é fálico, penetrante como uma agulha, numa penetração incisiva e precisa, dando o diagnóstico certo e certeiro. É a abreviação, a simplificação trazida pelo Pensamento Racional, num remo muito fino e elegante, quase invisível, impecável em sua discrição, como se soubesse que qualquer coisa poderá abalar a estabilidade deste lago espelhado. É como se o barco estivesse numa superfície vítrea, a qual, apesar de ser fina, é forte, como uma pessoa carregando o Mundo nas costas. O casal está fazendo amor, só que de uma forma doce e calma, como se soubessem que o Mundo não vai acabar. São os traços simples (e quase infantis) do Modernismo, no movimento transgressor que veio para renovar a percepção do brasileiro, na aquisição de uma identidade nacional, como no grande desafio frente ao Cinema Brasileiro – estabelecer uma identidade. O barco parece ser leve como uma folha seca flutuando, numa fragilidade passiva, que inspira ser protegida. A impressão que se tem é a de que qualquer leve brisa poderá perturbar a folha flutuante, no modo como é leve e agradável a pessoa fina, que trata os outros com respeito e delicadeza, no perfume metafísico – as fragrâncias mundanas são uma mera cópia do perfume psíquico, pois de que adianta um psicopata assassino usar um perfume fino e delicioso? Atrás do casal, a Flora Brasileira explode em todo seu esplendor, num ecossistema único no Mundo. Parecem ser esfuziantes fogos de artifício, na euforia da virada de ano, com grandes auspícios, enchendo de encanto os olhos de quem vê o espetáculo de luz explosiva. Esta mata, aqui, é bem colorida e diversificada, e são folhas retilíneas, espinhosas, fálicas, como se fosse uma releitura retilínea das aquosas linhas curvas da Natureza. Como é colorido o Modernismo! O homem veste branco, clamando por Paz, num homem que quer simplesmente curtir a Vida ao lado da mulher amada. Aqui, temos uma submissão patriarcal, pois quem está no controle do barco é o homem, cabendo à mulher um papel passivo e coadjuvante. Em outra leitura, talvez a mulher, aparentemente secundária aqui, exerça um papel sutil, porém poderoso, ditando ao homem qual direção tomar. Neste quadro, temos muita estabilidade, controle emocional, num momento eternizado. Logo abaixo da mata, vemos morros curvilíneos, como nas curvas de uma mulher exuberante, na beleza da Mulher Brasileira. Os morros são voluptuosos, e são doces, sem arestas, sem agressivos espinhos, na face doce de todo trabalho árduo, pois onde há aspereza, há lisura. A mulher parece ser mulata, mestiça, ao contrário do homem de pele pálida. A mulher usa um vestido rosa, da cor da feminilidade, do perfume, das coisas agradáveis. Seu decote é generoso, no modo sensual e tropical da Mulher Brasileira. Aqui, temos uma plácida ausência de expectativas.


Acima, Menina na Sacada. A menina está um tanto entediada, talvez tendo que matar tempo num estilo de vida que a fez uma dona de casa de luxo, cheia de criadagem. Uma verdejante palmeira explode à direita, como no estouro de uma supernova avassaladora, como uma Gisele, ditando tendência capilar ao redor do Globo. É o eterno desejo do artista em ser valorizado e reconhecido, com tantos e tantos talentos que jamais foram reconhecidos em vida, havendo no Desencarne uma libertação, com o artista deixando para trás um mundo tão duro e insensível, no remédio amargo que faz surtir doce efeito. São os sacrifícios. Atrás da palmeira explosiva, uma parede rubra aveludada, num tecido delicioso, na sedução táctil de peles de animais, numa deliciosa e gentil cama, convidativa, da qual não queremos sair jamais. É a sensação deliciosa de Lar. Quase ao centro do quadro, um vaso com flores delicadas. O vaso é a domesticação, a disciplina, numa planta forçada a viver em cativeiro, num processo tolhedor, em que arestas de rebelde personalidade são domadas e polidas, numa pessoa que teve que aprender a acalmar seus próprios “cavalos” de ímpeto. A planta no vaso passou por um processo apaziguador, e sua explosão, apesar de continuar bela, é mais contida e comedida. É como esta mulher, com sua feminilidade sendo aprisionada por um mundo tão masculino e competitivo. É como um bicho em cativeiro, sendo condicionado, domesticado, suavizado, numa pessoa que aprender a ter calma, como se soubesse que Roma não foi construída em um só dia, numa pessoa plácida, observando as estações climáticas ir e vir. Ao fundo no quadro, temo um pitoresco vilarejo, deserto, silencioso, como no silêncio desta mulher que pousa pacientemente para o pintor. A vizinhança está impecável, com casas devidamente pintadas, num cenário de vizinhança feliz, numa pessoa vivendo em Paz os dias da Vida. É um morro, convidando-nos ao esforço para que possamos subir ao cume, ao topo da pirâmide social, e é lá que está este mulher, numa posição social privilegiada, abastada. A mulher aqui tem o papel passivo, como um vale, atraindo para si as águas da chuva, no poder gravitacional da pessoa com Tao, colocando-se na posição mais inferior e subestimada, acabando então, invisivelmente, por tomar conta de tudo, no poder de um ímã passivo, sempre quietinho no seu canto, sempre humilde. É como uma mulher que, de forma passiva, acaba conquistando seu homem, atraindo este por suas ladeiras que levam sempre para baixo, como no poder passivo da aranha, que tece a ardilosa teia e aguarda por um inseto desavisado. E o artista tece tal teia, esperando captar a atenção e a valorização do público, nos sonhos de um artista em se tornar famoso e bem cotado, um sonho que, infelizmente, nem sempre se torna real. A mulher senta languidamente num divã, como se estivesse numa paciente sessão de Psicoterapia, abrindo ao terapeuta as gavetas da mente, querendo saber os porquês em sua vida. Ela veste um vestido com tecidos delicados, frágeis, na cor do Mar, como uma Iemanjá, banhando a areia, trazendo Vida e fartos peixes aos pescadores. Esta mulher é recatada, e não tem o vestido decotado, mas um vestido discreto, cheio de pudor e resguardo, e mal podemos observar as formas de seus seios. Seu ventre é um tanto aparente, e pode estar grávida, no papel que uma mulher de luxo – trazer ao Mundo filhos do marido, numa vida entediante, sempre vivendo na sombra de um homem, algo que está ok para a Sociedade Patriarcal, na qual a mulher tem que ser representada por um homem, sempre. Este colorido quadro tem as cores de um prisma, e são casaríos nobres, não de favelas. São como as ladeiras do Pelourinho, convidando-nos a um passeio pelo Passado. Esta mulher não cruza as pernas, seguindo a norma misógina de que as mulheres não podem ter ou expressar sexualidade, cabendo um papel transgressor a algumas mulheres corajosas, que ousam desafia o stablishment machista. Seu rosto é jovem seu cabelo não tem fios brancos. É um jovem estreando na vida de mulher.


Acima, sem título. Aqui, temos uma mulher independente, que dirige seu próprio barco, tendo o controle de sua própria vida, segurando por si só o fálico remo, dando a direção que quiser dar à vida. Ela está bem calma e relaxada, e seu semblante plácido esboça um suave sorriso, talvez numa pessoa feliz com a própria vida, como um artista existencialmente preenchido, feliz em fazer o que faz. Estas águas são doces como a Vênus de Botticelli. A mulher está recostada e lânguida, talvez pensando em deitar e dormir ao doce embalo de águas tão agradáveis. O Sol a banha sem queimá-la, e o barco boia como numa sessão de massagem, em que os músculos estão sem tensão alguma, num momento de entrega, numa pessoa que, pela primeira vez na vida, deixou de fazer sexo para fazer amor, num coito doce e calmo, no qual há total intimidade entre os amantes, no modo como um verdadeiro amor pode fazer com que a pessoa, antes se sentindo tão perdida e solitária, possa encontrar uma lua feita de cristal, cheia de Verdade, no fato de que se compra tudo, menos Amor, que é o que importa, havendo na prostituição a cópia grotesca de tal Amor, pois a prostituição é uma fria transação de negócios. Estas águas fluem e arrastam a mulher, e ela passou pelo artista, como se este tivesse tirado uma foto em tal momento, no poder da obra de Arte em eternizar momentos, na ambição do Ser Humano em controlar o Tempo, a Cronologia, havendo na Dimensão Metafísica tal ausência de Tempo. Atrás da mulher, uma orla de areia doce e limpa, num lugar que ainda não foi tocado pela porquice do cidadão que joga lixo na areia. A areia aqui é como um delicioso pão quentinho, na questão cristã da Transubstanciação, em que comemos a carne de Jesus, no momento precioso de comunhão, em que todos nos sentimos gêmeos dentro de um mesmo útero, na simplificação que é colocar vários objetos em um mesmo saco, organizando o Caos e simplificando as relações – somos iguais em divindade; somos filhos de Tao, o eterno mistério, pois passaremos a Eternidade tentando conhecer este Pai, e não é a Eternidade um poder que não pode ser medido? Mais ao fundo no quadro, lindas folhagens, não só verdes ou amarelas, mas azuis também, talvez nas cores da Bandeira Nacional do Brasil, numa identidade tropical colorida, vibrante, cheia de vida luxuriante, como exuberantes aves tropicais, exercendo o fascínio brasileiro ao redor do Mundo. As folhagens farfalham, e o cenário é uma delícia, como os meses de Inverno em Salvador, com temperaturas entre 21 e 25 graus centígrados. Este lago parece ter várias vias, como numa estrada com várias pistas, na intenção humana em impor ordem a um Mundo tão selvagem. O barco aqui tem cor de tijolo, de construção, de casa, no paciente trabalho persistente de empilhar peça por peça, como um artesão mortificado, que observa sem expectativas o Mundo, pois quem tem expectativas, frustra-se invariavelmente – não é amargo, desnorteante e desmotivante o sabor da frustração? A mulher aqui é mulata, mestiça, no caldeirão único brasileiro de miscigenação, na beleza das raças que vão se misturando, deixando para trás o purismo e trazendo todo esse sabor brasileiro. A mulher veste um cândido vestido rosa, como um chiclete tutifruti, num delicioso perfume, como numa fruta doce e madura, como uma bela maga suculenta, na magia das frutas, frutos de invenção de Tao, o generoso. Este rio tem cores de formidável harmonia cromática, e traz um perfume azul, nas cores mediterrâneas, nas vastidões aquosas de um planeta que é mais “Água” do que “Terra”. A mão da mulata conduz suavemente o remo, como se soubesse que o bom governante é aquele discreto, quase invisível, que faz com que o povo se sinta naturalmente seguro, num regente que interfere o mínimo possível no dia a dia do cidadão, sempre pensando neste, sempre pensando com delicadeza e respeito, pois não são insuportáveis os autocratas? Esta mata aqui é densa, e é como uma sala de estar natural, com fofas almofadas e quadros e papéis de parede com vegetação acolhedora e sensual – é o prazer de uma boa conversa e uma bela sala, com calma, numa vida sem as vicissitudes cronológicas.


Acima, sem título. É claro que temos aqui um CD flertando com o Impressionismo, com pinceladas afoitas que, de longe, têm sentido; de perto, não. O Mar aqui está revolto, cheio de ondas, talvez num dia de muita ventania, com a Natureza mostrando impiedosa força. Vemos uma reunião de moças elegantes, com suas sombrinhas coloridas e femininas, e a única moça sem sombrinha é a que está de frente para o espectador. O resto das moças está numa secreta reunião, de costas para o espectador, fabricando segredos que jamais veremos. Parece que a moça cuja face podemos ver está excluída. É o sentimento de exclusão, de rechaço, de discriminação, numa pessoa que se sente menosprezada pelo Corpo Social, condenada a uma vida de retiro e resignação, contentando-se a observar tudo de longe, nunca se sentindo parte de algo. É o sentimento que se apodera do artista cuja obra ainda não foi reconhecida, numa pessoa que se sente invisível; ignorada. Esta moça está recatada, com os braços ligeiramente cruzados, observando a reunião desta panelinha. A moça até quer entrar para o grupo, mas está polidamente esperando por um convite, como se soubesse que de nada adianta se impor perante um grupo que ainda não deu sinais de aceitação e acolhimento. Podemos sentir em nossas faces este vento litorâneo, com o agradável odor de Mar, de orla. Podemos ouvir o som revolto das ondas, talvez num Mar um tanto inóspito, pouco hospitaleiro, só entrando no Mar um homem com coragem, como um surfista ou um pescador. Não é um Mar que acolheria estas frágeis senhoritas, com suas roupas esvoaçantes e perfume inebriante. Suas leves roupas esvoaçantes farfalham ao vento, por vezes revelando sensualmente a forma de seus quadris, glúteos e seios, ou de suas pernas. A mulher de rosto revelado pode ser uma criada, uma aia, uma pessoa que nasceu num contexto social não muito privilegiado, condenada a uma vida de subserviência, de árduo trabalho doméstico, na crueldade das diferenças sociais, diferenças que, na Dimensão Metafísica, dissipam-se, pois lá não existem riquezas mundanas, ou seja, lá, a Pirâmide Social é horizontal, e a hierarquia não gira em torno de dinheiro, mas de depuração moral. Vemos aqui uma vegetação florida, talvez numa época primaveril, com flores douradas, silvestres, que não tiveram que ser plantadas ou cultivadas, nos gratuitos presentes que a Natureza nos traz, nunca nos cobrando pelas belezas naturais, pois Tao não cobra; Tao inspira. As cores deste grupo são predominantemente em tons pastéis, suaves, desmaiados, recatados, como cores de um enxoval de bebê. A única sombrinha mais marcante é a da frente, rubra, chamativa. Talvez seja a sombrinha da líder do grupo, uma líder que ousa transgredir, como na chic transgressão de Coco Chanel, libertando as mulheres de certos paradigmas estilísticos. Talvez este seja um vulgar e mundano momento de fofoca, pois o fofoqueiro nada mais tem a fazer com a própria vida. A mulher sem sombrinha está alheia a toda esta frivolidade, e rejeita esta malícia que é o processo de fofoca. Esta moça olha para o grupo sem se identificar muito com o mesmo. Podemos ouvir o som de risadas femininas. É como se fossem galinhas no galinheiro, em torno do milho, competindo pela comida. A moça revelada não se interessa por isso, e está retirada para, polidamente, “comer” sua parte correspondente. Aqui, as sombrinhas são o resguardo, protegendo do Sol e da Chuva, no modo como cada pessoa tem que construir sua própria sombrinha, no caminho da autoestima, preservando-se de danos e de machucados. As pontas superiores destas sombrinhas são pontiagudas e agressivas, e a moça revelada não demonstra qualquer agressividade – talvez esta moça precise desenvolver agressividade, pois aqui temos uma cena competitiva, cena na qual cada mulher tenta se destacar e se sobressair. É a luta por um lugar ao Sol, como num jogador de Futebol dando tudo de si, apertando e passo para correr atrás de uma bola.


Acima, sem título. A sedutora Lua está alinhada com o cavalheiro que faz a serenata. É uma noite romântica, com a magia do luar em uma agradável noite tropical, e podemos ouvir não só as notas do brasileiro cavaquinho como também dos grilos nos canteiros. Barcos estão atracados, plácidos, calmos sobre uma água estática e pacífica, doce. Os barquinhos atracados são juízo, o siso, a estabilidade de uma pessoa que cresceu e que não mais quer ter os ímpetos imaturos de infância, adolescência e pós adolescência. O traje azulado do músico entra em harmonia com as cores enluaradas e o mar espelhado, numa calma que nem uma bomba atômica poderá perturbar – e não é feliz quem sabe que Roma não foi construída em um só dia? O cavalheiro aqui se aprumou, e colocou sua melhor roupa para galantear uma moça. Quase ao centro do quadro, temos um retângulo vertical que revela duas moças interessadas na serenata, e elas ouvem atentamente. Não há sorrisos aqui, e os rostos de CD são frequentemente plácidos, mas não tristes. Aqui, temos uma pessoa que se convenceu de que, na Vida, é necessário ter muita seriedade. É a seriedade de um artista debruçado sobre a própria tela e sobre as próprias pinceladas. Abaixo das moçoilas, vemos uma breve escada e um corrimão. É a inacessibilidade, num rapaz que vai ter que penar muito até ser aceito pelo pai da pretendente. A escada é o esforço, uma força empreendida, no modo como, ao beijar o fundo do poço, a pessoa tem que empreender um esforço titânico para se reerguer. As duas moças ouvem, e talvez estejam apaixonadas pelo mesmo homem, e aqui não podemos saber por quem este está apaixonado. Uma das moças está sentada de forma recatada, limitando-se a ouvir a música, com suas pernas colocadas sem estar cruzadas, talvez num sinal de timidez. A outra moça está só com a cabeça para fora da porta, como se tivesse medo ou receio de se revelar por completo, como se soubesse que a serenata não é para si. O rapaz aqui é mulato, na brasilidade apaixonada dos Modernistas, empenhados em lutar por uma identidade cultural, um feito inédito até então, libertando-se da Arte Acadêmica, que mais tem a ver com a Europa do que com o Brasil. Este rapaz me lembra de um senhor negro de Porto Alegre, que varava pela boemia vendendo flores para casais apaixonados, e este senhor tinha sempre sapatos impecáveis. É a delícia da Vida Noturna, uma vida que foi feita para o fervo da Juventude. CD gosta muito da típica Arquitetura Brasileira, um artista que se tornou um verdadeiro embaixador da Arte Brasileira. A placidez deste pintor está revelada em seu traço, na felicidade de uma pessoa que encontrou paz e tranquilidade em seus dias de labor, como uma Patricia Pillar produzindo um documentário sobre Waldick Soriano, um trabalho feito com dedicação e muita calma, pois não é insuportável ter pressa? Este quadro é cortado por uma brecha, talvez no rapaz querendo abrir uma brecha e entrar na vida da moça amada. É uma porta entreaberta, que nem está fechada, nem escancarada. O rapaz terá que ter muito zelo e cautela para entrar na vida da moça, pois a família desta está completamente debruçada sobre o rapaz, analisando-o e julgando-o. Ser aceito e ser aprovado é um desafio. Várias partes do quadro trazem tons de vermelho, na cor da paixão, dos namorados, de caixas de bombons e buquês de rosas, como num apaixonado Professor Girafalez, presenteando a mulher amada, com uma paixão indisfarçável, muita clara e perceptível para o Mundo ao redor. Não dizia a marchinha carnavalesca que “a Lua é dos namorados”? É uma pessoa que, no fundo, sempre quis descobrir tal Lua de cristal e, ao encontrar esta, passa por uma experiência de Vida, uma experiência única, por um momento no qual não há quantidade, mas qualidade. Os jovens neste quadro estão com os olhos despertos e arregalados, num estado de consciência, numa pessoa que acordou do sonho e partiu em busca da realização deste, no famoso termo “deve haver um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração”. É a disciplina de sentar e produzir, mas sem se tornar workaholic, como me dizia um prezado professor: “Não se estresse demais”.


Acima, sem título. Temos aqui um Cícero variando de estilo, escapando um pouco do que costumava pintar com frequência. Temos aqui um quadro totalmente tenso, sem aquosidade. É como se as formas buscassem produzir alguma letra, algum texto, numa pessoa querendo se comunicar com o Mundo, talvez tendo dificuldade para se expressar, trilhando um árduo caminho até o ponto do autoencontro. Aqui, é como um sonho de Arquitetura, ou num painel grandioso em algum hall suntuoso, na grandiosidade da Arte, num artista que pensa longe, que pensa grande, muito distante de ser simplório – o artista tem lá sua ambição, é claro, o seu sonho, e não é vazia uma vida sem sonhos ou aspirações? É ir à luta, atrás de tal meta. A maioria das cores aqui é sisuda, discreta, profunda. O fundo é de um azul turquesa bem profundo, fechado, numa seriedade, numa sobriedade. A forma preta é o luto, o imprevisível, no inevitável mistério encarnatório – por que passei, passo e passarei por tudo isso? Até a pessoa se dar conta que encarnar é como escolher as cadeiras a cursar numa faculdade. O preto é a inevitável mancha, naquele pontinho preto no Sol, naquele eterno pontinho negro no Sol, impedindo ao encarnado de desfrutar, por hora, da total felicidade metafísica – é só uma questão de tempo. O vermelho é de um batom, na mulher de vermelho de Matrix, contrastando com um mundo tão sério, tão cheio de adultas responsabilidades, na necessidade do indivíduo em desenvolver senso de humor, sempre capaz de captar as piadas de Tao, o grande piadista, nas inevitáveis ironias que pontuam nossas vidas. As outras cores aqui são neutras, desmaiadas, retiradas, comportadas. O desmaiado azul é um Céu de Brigadeiro, só que um céu meio dodói, doentinho, inspirando cuidados. É o sentimento depressivo de não encontrar prazer em coisas que, anteriormente, davam prazer. Aqui, é como uma vista em perspectiva de fachadas de imponentes prédios, erguendo-se altivamente, impondo-se, numa cidade que está crescendo e desenvolvendo-se, como no caminho de crescimento do espírito, que está encarnado para encarar situações de vida que causarão depuração, como num personagem em um filme, um personagem que cresce, que aprende e que se torna uma pessoa melhor, menos fútil. Podemos ouvir o som de carros e coletivos passando, deixando no ar seu hálito de poluição, nas demandas de uma selva de pedra, tomando o lugar das florestas, no fato de que não há outro jeito – o Progresso tem lá seu preço. Aqui são como prédios concorrendo para ver quem tem o falo maior, para ver quem é o mandachuva, o dono do campinho, quem tem o poder e a influência para mudar os rumos da História. É a luta pela Vida, num mundo competitivo, num lugar onde tenho que me empenhar para ser único, pois se sou único, ninguém poderá competir comigo. É o processo de Identidade, como na personagem Mulan, de Disney, que corta os cabelos e vai à Guerra para descobrir quem ela própria é. Aqui, é como uma letra querendo se expressar, querendo se fazer entender. É uma complexa malha viária, num labirinto. São curvas truncadas, duras, sem sinais de sensualidade feminina, sem as curvas da Garota de Ipanema e sem as curvas da própria praia de Ipanema. Aqui, é um ambiente técnico, na fria relação aluno/professor, num âmbito em que prevalece a fria Razão, sem chance para as paixões sofridas, no caminho de construção racional, positivista: “Ordem e Progresso”. É um elegante desfile de elegantes moças, num charme e num porte de uma mulher que sabe carregar com elegância um vestido, no deleite de vermos uma boa modelo desfilando, mostrando seu charme e seu profissionalismo, pois não é toda mulher que tem porte... É como na elegância de um cavalo, um dos animais mais divinos concebidos por Tao, o classudo. Aqui, são como vários tacos de golfe, numa competição acirrada, como vários espermatozoides cortejando o mesmo óvulo.

Referências bibliográficas:

Cícero Dias. Disponível em <www.bolsadearte.com>. Acesso 18 set. 2019.
Cícero Dias. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>. Acesso 18 set. 2019.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Certamente Serpa



O carioca Ivan Serpa (1923 – 1973) morreu jovem. Multipremiado, participou de muitas bienais em São Paulo, Veneza e Zurique. O Museu de Arte Moderna do RJ já fez três retrospectivas sobre Serpa. Uma obra de Ivan pode custar até quase meio milhão de reais. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Composição. Um tabuleiro de Xadrez subvertido, num ponto em que o clássico e o convencional se chocam com uma inovação, uma impetuosa agressão cultural. O tabuleiro é um espaço frio, feito para a mentalização mortificada, num contexto em que as emoções não têm vez, numa construção técnica, onde emoções como Ódio e Raiva não têm vez, no inevitável caminho de depuração mortificante, eliminando a construção de expectativas, pois quem não tem expectativa, não se machuca com a triste desilusão, havendo na desilusão um papel importante, pois a frustração serve para colocar os pés da pessoa de volta ao humilde chão, rechaçando arrogâncias egocêntricas, na eterna tendência do Ser Humano em colocar o Ego no centro de tudo, do tipo “não nasci para esperar; nasci para ser esperado”, como um popstar que, ao pisar no palco, pisa horas depois do prometido, buscando, assim, ser mais valorizado pela plateia, mas é um tiro que sai pela culatra, pois pisar no palco com horas de atraso é um desrespeito para com o cidadão que comprou o ingresso. Aqui, as faixas retangulares são como uma pista de corrida, na diversão que é assistir a uma competição, para ver quem merece mais vencer, numa competitividade que começa logo cedo, no Ensino Fundamental, com alunos tirando notas diferentes, sendo alguns poucos alunos os queridinhos do professor, pois um aluno aplicado dá sentindo à Vida Docente. Aqui, o verde é vibrante, perfumado, numa Flora exuberante, tropical, carioca, num Serpa que nasceu e cresceu em meio às maravilhas naturais do Rio, com suas florestas, morros e praias, com corpos bronzeados e pessoas vivendo a Vida ao ar livre. O verde é como uma esmeralda, conciliando duas cores diferentes – o azul e o amarelo –, cores que estão em guerra por causa de diferenças, havendo no verde a intermediação diplomática, com esforços visando a manutenção da Paz, num verde que sabe que não curará os problemas do Mundo, mas num verde que é a promessa de um mundo menos aguerrido, ou seja, a Dimensão Metafísica, o lugar onde há Harmonia; um lugar onde os medíocres caprichos do Ego simplesmente desaparecem, sendo o Umbral o destino daquele indivíduo que insiste em desarmonizar – tudo em seu lugar. O fundo cinzento deste quadro foi cuidadosamente composto, num trabalho paciente. O cinza é a cor da prata, da Era Dourada do Cinema. Existe todo um charme ao redor da imagem sem cores. Este fundo em preto e branco faz uma oposição à vibração cromática do verde, combinando doçura com sisudez. O tabuleiro é então o cenário desta guerra, e tanto o time branco quanto o time preto pode vencer, uma acirrada disputa, numa pessoa que deixou de ser covarde e que decidiu enfrentar alguém à sua altura, numa luta justa na qual um simples gol pode definir o vencedor. Aqui, é como uma máquina de malharia, tecendo suas malhas, suas roupas refinadas e belas, artesanais, charmosas, e estamos aqui num momento de construção, em que o produto final ainda não tomou corpo. É o trabalho de um costureiro, pegando um novelo e transformando em roupa, no poder transformador das mãos artesanais, no prazer em produzir coisas novas, coisas belas. Não temos curvilíneas liquidiscências neste quadro, e é um quadro duro, cheio de arestas a serem aparadas. Podemos ouvir o barulho automático da máquina de tear, num momento de pleno turno de trabalho, com coisas sendo fabricadas e negociadas no Comércio, nas eternas relações de trocas dos Seres Humanos, num contexto em que o dinheiro simplificou tal sistema de trocas. Aqui, é como a fachada de um moderno prédio, nos sonhos de um bom arquiteto, como se este quisesse reproduzir a fachada de um prédio do qual o próprio arquiteto quase se lembra, num esforço de depuração visual.


Acima, Formas Diferenciadas. Em meio a tantas linhas retas e ângulos retos, o quadro traz uma breve curva, como se fosse um momento de lazer em meio a uma espartana rotina de trabalho e esforço. É como se fosse uma caçapa nua mesa de Bilhar, e podemos ouvir o som de uma partida de Sinuca, com as bolas batendo umas contra as outras, num jogo de tensão, no qual há o prazer de defloração do buraco da caçapa. Aqui, é como se houvesse um piso quadriculado, com as marca da passagem de um veículo, havendo então uma breve curva, um momento doce e liquefeito, num momento de fluidez macia e prazerosa, como se sentar em uma privada e fazer as necessidades fisiológicas. Aqui, temos um quadro escuro, como se fosse num quarto em penumbra, numa luminosidade ideal para quem quer descansar, numa penumbra que não quer ferir os olhos mas que, ao mesmo tempo, não quer encarar um breu total, como no momento dúbio do dia em que a luz do dia vai se rendendo à escuridão noturna. Este quadro é como um brasão aristocrático, conotando poder e nobreza, havendo nos sangues azuis mundanos a metáfora com o sangue estelar que corre nas veias de todos nós, mas, infelizmente, nem todos nós nos damos conta disso, e então o Ser Humano fica deslumbrado com as dinastias terrenas, ignorando a Mãe Nobre de todos nós; a Virgem Mãe Metafísica. Aqui, duas longas linhas retas cruzam em diagonal o quadro, num rastro, num vestígio, numa impressão digital, como se fossem evidências encontradas na cena do crime. Nessa curva em forma de C, parece que a pessoa teve que enfrentar um percalço, um contratempo, fazendo com que a pessoa adquirisse um certo atraso, uma certa desvantagem para com o oponente que não precisou fazer curvas de contorno. São os inevitáveis percalços, exigindo que a pessoa tenha a calma e a paciência para lidar com tais obstáculos, os quais, por suas vezes, tratam de deixar o caminho mais rico e educativo, no prazer olímpico em vencer etapas, como nas fases de um jogo de videogame, num caminho cheio de obstáculos a serem vencidos com elegância olímpica, pois qual seria o sentido de uma vida absolutamente desprovida de vicissitudes? Nenhum. Esta curva é como um anzol, numa paciente posição passiva, num paciente e calmo pescador que sabe que, cedo ou tarde, a isca será mordida, numa posição de espera, como um caçador armando sua emboscada. Aqui, é como se fosse uma foice fazendo seu árduo labor, nas mãos calejadas de um agricultor, como meu tataravô Felice Veronese, imigrante italiano. Esta curva traz sinuosidade a um cenário tão pragmático e direto, como no pensamento de um jogador de algum esporte, cujo objetivo é pura e simplesmente vencer, num ambiente técnico, absolutamente desprovido de glamour ou de emoções. A curva é como um receptáculo, talvez armazenando água da chuva, num paciente trabalho de reserva, talvez num animal fazendo uma reserva, uma despensa para os duros dias de Inverno, num investimento. Esta curva é a sinuosidade de uma estrada sedutora e perigosa, num “canto de sereia” que pode ser traiçoeiro, como num feitiço, havendo no Pensamento Racional um ambiente no qual as emoções são submetidas a uma impiedosa luz desbravadora, esclarecedora, mortificante. É um quadro com tons terrosos, na Mãe Terra que gerou a Vida, num piso muito simples, de terra mesmo, como numa aldeia indígena, com os pés nus dos índios pisando em bosques e florestas. A terra é a base, no termo “pés no chão”, ou seja, é a referência, no modo como não devemos cortar laços com nossas próprias famílias, pois os laços familiares são importantes ao ponto de não se dissolverem com o Desencarne. Esta grande reta delgada é como um mastro de bandeira, nos rituais patrióticos de içar um pedaço de pano, tentando incutir nas crianças o amor à Pátria, ao chão, fazendo com que o cidadão se sinta pertencente a um lar, uma proveniência, uma Mãe. É a fálica lança pescando, na eterna luta pela Vida, pelo sustento, e a curva é como se fosse um túnel, trazendo-nos para as entranhas de um mundo tão estranho e familiar.


Acima, Máquina de escrever e guache sobre papel. Um painel de muitas pastilhas, composto com paciência. É como na recepção de um prédio dos anos 60 ou 70, num luxuoso hall que conota dinheiro e poder. É como hoje, na Era Digital, com muitos pixels formando imagens digitais, sepultando para sempre o uso de filme fotográfico, no galgar veloz das tecnologias, num Mundo que muda rapidamente, facilmente abortando tecnologias as quais, em certa época, eram o chuá da novidade, no modo como as gerações de pessoas vão se sucedendo, isso para fazer metáfora com as novas gerações de aparelhos eletrônicos, no modo como, um dia, Patrícia será nome de idosa: “Olá, dona Patrícia!”. Aqui, temos um discreto azul marinho, com as entranhas aquosas do planeta, uma esfera tão singular e rica em Vida, num Ser Humano que envia sondas a outros planetas, só encontrando, até agora, mundos inóspitos, áridos, ou muito quentes, ou muito frios, numa busca que vai durar para sempre, como um náufrago emitindo sinais de SOS – será que estamos a sós? Aqui, é como uma malha tecida, com fios se entrelaçando, assim como na demanda existencial, com pessoas passando umas pelas vidas das outras. Aqui, temos a inevitáveis imperfeições da Vida, pois há lugares em que não há pastilha alguma, pixel algum. São como lacunas, enigmas, numa pessoa que tem que tentar entender uma vida tão enigmática e hermética. São as lacunas do caráter, numa pessoa que está vivendo para aprender e, assim, tornar-se uma pessoa de maior apuro moral, pois os de pouco apuro moral sofrem, hipnotizados pelos ilusórios sinais auspiciosos da Matéria, das coisas. Apesar da predominância de azul aqui, temos partilhas vermelhas, da cor do sangue, nos laços de sangue de família, os quais sobrevivem ao Desencarne. Este painel parece ter sofrido um débito, um dano, uma agressão, e está um tanto debilitado, avariado, como se tivesse voltado de uma guerra, de um embate, com pixels sendo perdidos ao longo do caminho, atendo-se apenas aos pixels mais necessários e vitais, atendo-se ao que importa, que é o Amor à Vida. Aqui, é a complexa dança dos cubos mágicos, com quadrados indo para cá e para lá, desafiando o jogador a resolver um enigma. Os pixels aqui estão em trânsito, e não estão estáticos, num cenário em constante processo de desenvolvimento e crescimento. As lacunas nos falam das inevitáveis lacunas da Vida, numa existência que está sempre longe de ser perfeita, como num tecido puído, danificado, velho, cheio de cicatrizes de lutas e aprendizados. Aqui, temos alguns pixels mais escuros e imprevisíveis, no modo como, definitivamente, a pessoa não tem como saber tudo o que lhe acontecerá, num jogo de charadas e surpresas, num momento em que nos acontece aquilo que menos esperávamos, na sensação de se colocar o dedo numa tomada elétrica. Este quadro traz uma grande imperfeição, propositalmente, na beleza dos processos infindáveis, na fluidez da Eternidade, numa vida que jamais cessará, algo que está extremamente além da compreensão humana. Aqui, há um cenário de deterioração, num processo de degradação que levou muito tempo para avançar, como descobrir a tumba do rei Tut, com objetos que desafiam a passagem do Tempo, havendo no Ser Humano esta intenção perene em fazer o Tempo parar, como se tivesse na mão um controle remoto, na ilusão de que podemos controlar a Vida, acelerando ou evitando etapas, ou querendo eternizar um momento de prazer. Aqui, é como se uma bola de futebol tivesse acidentalmente atingido o painel, no desenvolvimento de Agressividade, na essencial pitada de Yang. Este painel pede um trabalho de restauração, como um paciente arqueólogo juntando peças de um infindável quebracabeça, no esforço para reproduzir um momento que já passou. Aqui, temos um momento passando. As partes azuis formam um oceano, e as partes de outras cores formam terras, ilhas, num complexo de ilhas, desafiando o Ser Humano a batizá-las e categorizá-las, enchendo de nomes e graça um mundo tão sem nome.


Acima, sem título. Uma flor se abrindo de forma igual para todos os lados, simetricamente. Aqui, temos um aspecto de que o quadro passou por um cristal muito puro e translúcido, assim como na atual identidade visual do canal Globonews, com a logomarca do canal sendo distorcida pela passagem de linhas diagonais que dão esse efeito de cristal. Neste quadro, temos um claríssimo centro, com tudo girando em torno deste. Este “cristal” traz um certo contraste, fazendo com que estas linhas horizontais não sejam as mesmas ao atravessar o quadro no sentido esquerda/direita. São as aristocráticas listras da famosa máscara mortuária do rei Tut, em uma estética universal e atemporal, nas intenções humanas de estabelecer um sentido ao Mundo Metafísico, havendo nas tradicionais sucessões dinásticas de sangue um modo de compreender o fato de que, na Dimensão Metafísica, não há a passagem de Tempo. As listras são a sucessão entre dias e noites, e têm um charme masculino, racional, não muito liquidiscente. Cortando o quadro de cima para baixo, bem ao centro, vemos que essas rígidas listras sofrem uma sutil deformação aquosa, como se tivessem sido passadas por um pincel, trazendo um pouco de fluidez aquosa a listras tão rígidas e disciplinadas. É o recreio, a pausa, o momento de descanso em meio a um mundo que exige tanta, tanta disciplina do indivíduo, como nas punições aos alunos indisciplinados, num indivíduo o qual, desde muito cedo, é cobrada na questão da Disciplina e do bom comportamento, nas punições expressas que são os presídios e as sentenças judiciais. Este quadro não é todo bicromático, pois vemos duas barras horizontais centrais – uma em marrom e outra em azul marinho. A marrom parece ser de madeira, no talento plástico de se cortar uma árvore e transformar esta em um móvel, no modo humano de encontrar serventia em uma Natureza a qual nada entrega de graça, como no trabalho tribal de caça e coleta. A barra marrom parece estar banhada de óleo de peroba, no prazer de se entrar numa sala de visitas perfumada, limpa, acolhedora, com um anfitrião polido e agradável, na beleza das salas metafísicas, um lugar de fineza e gentileza, na esmagadora vitória da Classe sobre a Vulgaridade. A barra azul é discreta, como se não quisesse chamar muito a atenção do espectador, querendo passar despercebida, invisível, sem querer ser prevista ou detectada, como se soubesse que tem que passar despercebida para vencer. Aqui, vemos uma dança entre dourado e rosa, na obsessão humana em obter ouro, em obter as riquezas mundanas, esquecendo-se do propósito moral da existência, falhando, assim, em se tornar alguém melhor, deixando o próprio caráter ficar corroído e empobrecido por tal obsessão materialista, pois quando mais tenho, mas longe da Simplicidade estou, e a Vida só é boa quando é simples, como nos doces momentos de Infância, quando o indivíduo ainda não aprendeu sobre os defeitos humanos. Este quadro é como uma grande estrela, uma supernova estourando e de espalhando igualmente por todas as direções. É o modo do artista em querer ser uma estrela, virando referência aos navegadores, brilhando para sempre num céu de fino cristal, com finos copos, com um delicado tilintar, conotando Limpeza e Beleza. É o sonho de um artista, como numa rainha da Festa da Uva, uma moça que tem que ter alma de artista para, assim, brilhar e marcar época. Aqui, é uma perturbação contundente, causando comoção e tumulto, como uma bomba atômica, no momento de consagração de um artista. Este quadro fala da invisibilidade de Tao, o pai de todos nós, o ser que nunca se coloca na frente dos outros, deixando aparecer e transparecer a sua Grande Família, sendo a cola primordial que une as pessoas, como no poder unificador de um patriarca ou uma matriarca, como numa família reunida em uma véspera de Natal. As listras douradas aqui ficam mais claras ao centro do quadro, como se fosse no romper de uma aurora, a deusa dourada que nos leva a uma dimensão melhor, no modo como tudo de material gira em torno do imaterial, numa hierarquia.


Acima, sem título. Uma tapeçaria indígena, com formas geométricas com arestas, com agressivas pontas de faca, ou injeções de agulha. É um quadro totalmente simétrico, equilibrado, como se um espelho tivesse sido colocado no meio da obra. O fundo é um bege neutro, na discrição das cores neutras, como numa Suíça, diplomaticamente neutra, formando uma necessária casa de diálogo entre tribos que não se entendem diretamente. É o trabalho pela Paz, pois esta é um valor universal, havendo na Dimensão Metafísica muita Paz, com pessoas vivendo suas vidas de forma tranquila e calma. Este quadro remete às tapeçarias indígenas que decoram o hotel mal-assombrado de Stephen King, um lugar construído em cima de um cemitério indígena, como os índios estivessem se vingando em relação ao modo como o Homem Branco destituiu o Índio, o qual era, por muito tempo, dono e senhor das terras das Américas – o Ser Humano é cruel e ambicioso. A maioria das formas aqui é triangular, na universalidade do formato piramidal, com potências militarmente temidas, no jogo de forças aguerrido que, infelizmente, rege o Mundo, para ver quem tem o falo maior, fazendo com que as guerras deixem rastros de fome e destruição – beleza zero. Há aqui poucas formas negras, como grandes morcegos batendo asas pela escuridão, em busca de comida. O preto é um submundo, um subconjunto com seus próprios subvalores, num mundinho à parte que faz com que a pessoa, ali imersa, comece a perder contato com valores fundamentais como gentileza, polidez, discrição, sutileza e cavalheirismo. É uma negra porta estreita que leva ao nada, à destruição, numa vida devastada pelas drogas, numa devastação sem qualquer chance de reconstrução. São os anjos negros da noite, angariando escravos, semeando sofrimento. É um negro túmulo fechado, sem qualquer raiozinho de Sol. As formas cinzentas são os dias cinzas de incerteza, a incerteza que permeia a Encarnação, como se fosse um castelo sendo disputado pelo Bem e pelo Mal, na liberdade que o indivíduo tem em optar por seu próprio caminho, havendo aqueles que mergulham na escuridão e perdem-se, jamais voltando para contar uma história de sobrevivência. Vemos uma pequenina forma vermelha, no sangue disputado pelos vampiros, fazendo metáfora com os psicopatas, que são vampiros de almas. O vermelho é a sensualidade, a feminilidade, na sedução de uma mulher de vermelho, no interior perfumado das lojas Victoria’s Secret, como no interior rubro de um bordel, com tudo cheirando a sexo, no pecadinho da Luxúria. Vemos uma pequena forma em azul, na promessa de dias ensolarados, sem a incerteza cinzenta encarnatória. O azul é a cor do sonho, da elevação, num majestoso Céu de Brigadeiro, sem qualquer sinal de nebulosidade, numa certeza, na certeza de quem teve Fé enquanto encarnado, pois este é o grande desafio – crer sem provas científicas. Este quadro é como um Santo Sudário aberto e revelado, no modo cristão de cultuar coisas, e não pensamentos, pois a riqueza de Jesus está no pensamento que o Salvador propagou, e não nos objetos relacionados a Ele. Aqui, temos uma cruel coroa de espinhos, cheia de espinhos de dor e sofrimento, fazendo metáfora com o regente, com um rei ou uma rainha, na responsabilidade de guiar um povo, sentindo um enorme peso de responsabilidade, assumindo suas obrigações, sempre se colocando de lado em nome da coletividade – é o sacrifício. Aqui, é como se fosse um totem alargado no sentido horizontal, na magia de tribos em torno de suas divindades, tentando compreender as poderosas forças naturais, na evolução da Humanidade, a qual, apesar do irrefreado crescimento científico, sempre terá a necessidade de acreditar numa Inteligência Suprema. Aqui, é como uma planta espinhosa, expandindo-se por todos os sentidos, dando-nos o aviso para que não cheguemos muito perto, no termo “murro em ponta de faca”. Aqui, é como a vista aérea de um vale, com tudo se rendendo à força gravitacional, que é Tao, o grande vale que nos guia.


Acima, sem título. Olhos jorrando suas lágrimas, e podemos ouvir os lamúrios de dor e pena. O fundo azul é limpo e plácido, no dia ideal para um passeio. Os falos aqui vêm de todas as direções, encontrando-se mais ao centro. Ao centro do quadro, duas pistas opostas se entrecruzam, como numa estrada movimentada, e podemos ouvir o som dos carros de Fórmula 1. É a frágil ordem automobilística, e um pequeno deslize pode fazer com que um motorista invada a pista contrária, causando um grave acidente. Uma pista é a consequência da outra, e tudo tem seu retorno, sua reação, seu preço. Aqui, é uma compensação, um equilíbrio, pois enquanto um vai, outro vem, buscando manter uma harmonia. Aqui, é como se fosse a capa de um disco de vinil, em pura abstração. Nas extremidades do quadro, mais uma vez o equilíbrio, e temos uma metalinguagem, pois é um entrecruzamento dentro de outro entrecruzamento, ou seja, César falando de César. O fundo azul é perfumado como lavanda, no poder sedutor das fragrâncias, numa pessoa que tem a autoestima de se arrumar e se perfumar, preparando-se para o polido momento de interação social. É a cor de uma certeza, na forma como os espíritos desencarnados têm a impressão de que o Céu Metafísico é mais azul e intenso do que o Céu Físico, quando, na verdade, são o mesmo Céu, ou seja, quando estou feliz, dou valor às pequenas coisas, como encher os pulmões de ar e agradecer por estar vendo tal Céu bonito. Este quadro busca um equilíbrio, como se estivesse intermediando uma situação de indisposição entre partes, ou entre nações, na sofisticação diplomática, que sabe observar a universalidade do Ser Humano, vendo nas diferenças culturais uma fininha casca superficial – somos irmãos. O vermelho aqui é a cor da advertência, do alarme, do perigo, no risco de nos machucarmos e vertermos sangue. É a cor das placas de trânsito, buscando alertar da forma mais simples, forte e expressa possível, no poder das mensagens claras e simples, havendo na pretensiosa complicação um fator subtrativo, um fator que complica a mensagem e, a partir disso, encontra dificuldade em expressar algo – menos é mais, no modo como é limpo o Mundo acima. Os falos maiores, nas extremidades diagonais do quadro, são vazados, deixando o ar passar, pois só é feliz quem deixa o ar passar deixando, assim, o Mundo respirar, no talento estadista de um líder que conduz como Tao, num líder benevolente que respeita ao máximo seu próprio povo, nunca se colocando entre o povo e a vida que este quer ter. Os falos vazados são humildes e discretos, e não querem se apoderar do quadro, num comedimento, uma frugalidade, um discreto retiro, como se soubesse do poder poluidor do Ego, como tantas e tantas pessoas que se acham o centro do mundo, só sabendo falar de si mesmas. Aqui, a cor branca tem uma função de contraste, contrastando tanto com o preto quanto com o vermelho, na pura cor do algodão, das nuvens de sonhos, numa página em branco querendo ser preenchida, numa pessoa que se depara com tal folha, tendo que escrever algo nela, e como é existencialmente miserável a pessoa que nada escreve em tal folha! Aqui, são como furos de brincos, na universalidade da Beleza, no aprumo, como um salão de baile sendo enfeitado para um pomposo evento social, havendo nos clubes terrenos a metáfora com os clubes metafísicos, sendo estes instituições de tanto brilho e beleza, na dádiva da eterna juventude e do eterno vigor. Aqui, são como rastros de um cupim, devorando avidamente a madeira, sempre com fome, nos meandros labirínticos de um formigueiro, no modo como a Vida pode ser um labirinto, tendo este que ser solucionado com muita paciência, na dádiva que é a pessoa conseguir centrar sua própria vida em algo produtivo – a pessoa que não produz é miserável, por mais rica financeiramente que seja tal pessoa. Então, o desencarnado vê que a Vida continua, e que o labor não pode cessar, havendo no Umbral a dolorosa inutilidade de uma vida desperdiçada, improdutiva. Aqui, os opostos se encontram, como duas tribos estabelecendo a Paz e o respeito mútuo, pois sem respeito, tudo rui.

Referências bibliográficas:

Ivan Serpa. Disponível em <www.bolsadearte.com>. Acesso 11 set. 2019.
Ivan Serpa. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>. Acesso 11 set. 2019.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Um Almirante da Arte



Nascido no Rio de Janeiro em 1925 e falecido na Alemanha em 2018, o pintor alemão de origem brasileira Almir Mavignier adquiriu renome internacional na Arte Concreta e Op Art. Estudou Arte na cidade natal e em 1951 fez sua primeira exposição individual, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, ano em que adquiriu uma bolsa de estudos em Paris. Fez centenas de cartazes para exposições artísticas e culturais, e acreditava na Arte como meio de terapia ocupacional. Teve obras expostas na Bienal de Veneza de 1964 e no MoMA, em 1965. Em 1967, primeiras retrospectivas, em Munique e Hannover. Naturalizou-se alemão em 1981, mas permaneceu importante em terras brazucas. Fez várias mostras entre 1989 e 2000, como no Museu de Arte Contemporânea da USP. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, sem título. Uma quadra de tênis toda calejada, com as marcas das furiosas bolinhas amarelas, assim como fica calejada a mão do artista de longa carreira, já pegando a malandragem e a manha. Aqui, as bolinhas parecem competir umas com as outras, num páreo duro, pois todas são iguais em potencial, entrando numa disputa muito justa. É um quadro que chama à organização, como pingos perfeitos de chuva, sem irregularidades, sem acidentes, sem arestas. É o caminho de depuração do espírito, fazendo com que este sinta a necessidade de aprimoramento, sentindo o cheiro de estagnação e repetitividade. São as cores do Mar, da Mãe Mar. É uma rede de pesca, farta, abençoada por Jesus, trazendo fartas pescas, alimentando muitas bocas numa esfomeada família, como num ninho, em que irmãos passam a competir pelo alimento e pela atenção dos pais, nos primeiros momentos em que a Vida em Sociedade vai se revelando uma grande competição, no culto à vitória. É como uma caixa com ovos, com tudo organizado, na gloriosa sensação de organização que paira sobre a pessoa que está sabendo ter uma vida produtiva, centrada. Aqui, são como muitas e muitas luas em torno do mesmo planeta, mas as luas neste quadro estão devidamente organizadas e catalogadas, como no acervo de um museu, expondo os itens de forma racional e pertinente, no prazer de se entrar em contato com as obras de artistas, de pessoas com a capacidade de criar coisas novas. Aqui, é como um vestido cintilante de paetê, no fascínio de uma mulher arrumada e bela, pronta para um baile, um evento, um jantar, no prazer de autoestima que se abate sobre a pessoa que quer se colocar da melhor forma possível. Aqui, são como loucas luzes numa boate, num espaço em que a Noite seduz os boêmios, lançando Música e luzes, tudo para seduzir, como um empresário da noite, construindo uma nababesca casa noturna, tornando-se o Rei da Noite, num contexto boêmio que pertence ao fervo da Juventude, pois as pessoas mais experientes querem paz e quietude. Aqui, é como um numeroso cardume de peixes azuis, camuflados para ser confundidos com a água, protegendo-se assim dos predadores, no modo como a Discrição trata de proteger a pessoa, pois a pessoa que atrai muita atenção sobre si mesma não é uma pessoa muito respeitada... Aqui, é como um fio de fibras óticas cortado, e podemos observar cada fio que compõe o conjunto, no modo científico de cortar e dissociar as coisas, fazendo análises. É como um organismo vivo cortado ao meio, revelando entranhas, como numa ecografia, revelando coisas que o olho humano não vê. Aqui, temos uma árvore cortada no tronco, revelando os mecanismos de transporte da seiva, como vias de uma cidade vibrante, movimentada, no sonho da pobre camponesa Teresa, criada por José Clemente Pozenato, em querer se mudar para São Paulo, para um lugar vibrante, com amplas avenidas, teatros e cafés, com muitas conduções transportando coisas e pessoas. Aqui temos um instinto grupal, com seres que sabem que estão protegidos se ficarem unidos, como numa família, em que o membro adoentado é cuidado pelos irmãos.


Acima, sem título. Um grande prédio se erguendo, com um topo em forma triangular, numa cidade cheia de Vida, com uma grande necessidade de fornecimento de energia elétrica. O verde oliva é a floresta, a reserva ambiental, no modo como o Mundo se debruça sobre o Brasil, exigindo a tomada de medidas antidevastação. É o verde do azeite de oliva, numa deliciosa harmonização com um vinho. As cores verde e rosa remetem à tradicional escola de Samba Mangueira, no modo como os artistas brasileiros acabam sendo muito influenciados pela cultura popular nacional, numa mescla cultural muito única e rica, fascinando o Mundo pela sua sensualidade e força vibratória. O rosa é o aconchego, o acolhimento, como um morador de Rua sendo recebido em um abrigo, recebendo alimento e cobertas para dormir, no esforço caridoso de fazer algo de bom para o próximo, na questão da pessoa se colocar nos sapatos do outro, entendendo como este se sente – amar é compreender. Almir gosta muito de suas inúmeras bolinhas, fazendo com que elas componham uma forma geométrica, num trabalho paciente e meticuloso, como um pai zeloso, cuidando do ninho. É algo que remete a um certo artista plástico, o qual usa tampinhas plásticas para compor cenários coloridos. Aqui, são como ponteiros de relógio, num ângulo querendo completar 360 graus, querendo fechar um ciclo, no modo como os produtos comercializados, por exemplo, têm um ciclo de vida, surgindo como novidade e tendo tal novidade, depois de um certo tempo, esgotando-se, virando um “abacaxi” e acabando por “morrer” mercadologicamente. É como o ciclo de um ser vivo, fadado à Morte, como num inevitável prazo de validade, num espírito que tem que ter o que fazer neste espaço de tempo que lhe é dado na Terra. É a inevitabilidade da passagem do Tempo, com forças orgânicas trazendo o envelhecimento e, em compensação, trazendo ponderação e sabedoria à pessoa vivida. São os ciclos lunares regendo a Terra, nas magnéticas forças gravitacionais que regem o Cosmos físico, trazendo a influência da Matéria. É o ciclo das estações, esquentando e esfriando, numa cômica dança, pois enquanto é frio no hemisfério de cima, é calor no de baixo, numa prova do senso de humor de Tao, aquele que tudo planejou, pois Tao está sempre trabalhando, elaborando, tirando também um tempinho para descansar. Aqui, são gotas rosas de uma doce chuva de verão, na brincadeira de crianças tomando chuva na quente estação, no modo como uma chuvarada veranil traz alívio a um dia abafado. É a contagem regressiva para entrar no ar um programa de televisão, numa contagem regressiva para algum lançamento de veículo, como um foguete. É o fato de que todos temos dentro de nós uma contagem regressiva, pois, cedo ou tarde, deixaremos a Carne para trás, abraçando a vida metafísica. Aqui, são como asas de anjo batendo, ansiosas por Liberdade, no modo como é abençoado o cidadão que vive num país livre. Temos aqui um bailarino abrindo os braços, numa onírica obra de Arte, no momento mágico de uma cortina teatral abrir, revelando a imagem do sonho de um diretor de Teatro, na suntuosidade do Theatro São Pedro, de Porto Alegre. Aqui, temos um Almir trabalhando com espécies de pixels, colocando pontinho por pontinho. É o rastro de uma brusca freada, deixando uma marca, uma cicatriz, como num rosto envelhecido, mostrando todo um caminho já percorrido, no modo como a pessoa é educada sempre a respeitar os mais velhos. Esta porosa estrutura rosa não é egoísta nem narcisista, pois não quer desesperadamente se apossar do quadro, tendo uma estrutura translúcida, sempre deixando respirar, sempre deixando o ar passar, nunca asfixiando ambiciosamente, como se soubesse que temos que deixar uns aos outros livres. É como o Ar, sempre invisível, sempre subestimado, num artista que aprendeu o valor de ser como o Ar. Esta estampa de bolinhas deixa o fundo transparecer, na beleza transparente de uma peça de cristal. É uma majestosa ave voando livre.


Acima, sem título. A habilidade de Almir em construir pacientemente com tantas bolinhas. Dá um efeito degradê, ou gradiente. Bolas de diferentes cores e dimensões se intercalam, formando uma comunidade harmônica, em que cada agente é uma parte importante dos elos sociais, talvez num Almir nos ensinando a lição de que o Corpo Social deve ser recheado com mais respeito e menos egoísmo. O fundo rosado é cândido, como num picolé sabor morango, em felizes memórias de infância, na piscina ou na praia, numa época deliciosa na qual a única obrigação da criança era estudar. Podemos sentir a brisa suave de Verão embalando sensualmente as folhas das árvores, como num dia de hoje, 9 de setembro, um dia atipicamente quente em Caxias do Sul, com as ruas da cidade varridas por ventos vigorosos. Almir nos traz algo um tanto cintilante, como num vestido de lantejoulas, na magia colorida de um baile de gala povoado por mulheres em seus múltiplos vestidos coloridos, quebrando a sisudez bicromática dos smokings dos cavalheiros, no choque entre Razão e Loucura, entre Yin e Yang, no momento social de flerte. São como várias estrelas em uma paisagem galáctica, com esfera de vários tamanhos, havendo aqui uma organização astronômica da NASA, na árdua tarefa de nomear e catalogar as muitas e muitas estrelas, e as muitas e muitas galáxias, numa tarefa inacreditável que equivale a catalogarmos cada grão em um punhado farto de areia, na ainda incompreensível vastidão cósmica. Vendo este quadro de longe, vemos o efeito gradiente, como uma superfície metálica reflexiva, como uma peça metálica sendo fabricada, no modo como o artista se sente esta “fábrica”, tendo que desovar as obras, distribuir e vender as obras, como uma fêmea colocando seus ovos ou parindo seus filhotes, numa explosão de criatividade produtiva, no modo como a obra do artista, mesmo se vendida, continua pertencendo ao artista, assim como um filho, apesar de casar e sair de casa, continua sendo um filho. Vemos aqui uma tela de proteção, cheia de furinhos, como na proteção de apicultores, ou uma pessoa passando protetor solar, no positivo instinto de preservação, numa pessoa que aprendeu a amar a si mesma, no caminho cognitivo da autoestima, pois como posso amar o Mundo se, a princípio, não amo a mim mesmo? Esta tela é como uma prisão, retendo animais num zoológico, e é o cárcere encarnatório, a inevitável e bela prisão, num artista que tem que resolver o que fazer com o tempo que lhe é jogado nas mãos. É uma rede protetora nas janelas de um apartamento, com pais zelosos que querem prover aos filhos um ambiente seguro, transmitindo valores e estimulando a criança a se centrar desde cedo. É como um filtro, não deixando passar certos elementos. É uma purificação, um processo industrial de filtragem, ou um controle ecológico, numa indústria que trata seus próprios dejetos antes de jogar estes na rede de esgoto. É a teia da aranha, filtrando o ar e não deixando passar um inseto desavisado, numa posição passiva, como um sociopata, que tece suas ardilosas teias para manipular e explorar outrem. Aqui, é como um abrasivo ralador, talvez ralando queijo ou cenoura, processando alimentos. Aqui, é como uma esteira industrial, com vários biscoitinhos passando e sendo embalados. São como várias moedinhas catalogadas, no trabalho de um artista plástico, agregando elementos primordialmente dissociados, mostrando uma visão, um ponto de vista, uma sensibilidade, com mãos transformadoras, de artesão, metendo a mão no barro e jogando-se ao prazer de produzir, pois não é desinteressante a Vida de uma pessoa que não produz? Aqui, são várias explosões em série, com um bombardeio planejado e premeditado, nos horrores bélicos que assassinam crianças, na infeliz tendência humana à estupidez. Aqui, são como bolhas numa garrafa de espumante, no fascínio de um espumante geladinho na noite de virada de ano. É a vitória de um corredor de Fórmula 1, havendo na vitória mundana uma metáfora com a vitória de sobreviver à morte do próprio corpo carnal.


Acima, sem título. Uma coluna vertebral quebrada, dissociada, talvez por uma mente científica ávida por dissociar e analisar por partes, no modo como são compartimentadas as especialidades médicas. São como gavetas sendo abertas e fechadas, e podemos ouvir o barulho do dia a dia de uma casa, com barulhos de portas sendo abertas e fechadas. Vendo a obra de longe, o efeito que se tem é de quatro latas metálicas empilhadas, desafiando a Lei da Gravidade, nos ambiciosos sonhos de Engenharia, querendo construir prédios que pareçam desafiar as regras que regem a Dimensão Material, querendo se parecer ao máximo com os prédios futuristas de Os Jetsons. Essas latas coloridas dão cor a um profundo fundo negro, imprevisível, com mistérios que só serão elucidados no devido tempo, com surpresas sendo preparadas, como amigos organizando uma festa surpresa. Aqui, é como uma fila inquieta, com pessoas inquietas, impacientes, mexendo-se e vendo quando serão atendidas. São como carros frenéticos, querendo ultrapassar uns aos outros, como numa concorrência empresarial ou industrial, numa corrida em nome de inovação, em nome de invejáveis concepções de Marketing, com empresários concorrendo para ver qual deles cai mais nas graças do Povo. Podemos ouvir o som dos carros acelerando, numa competição acirrada. É como um videogame, na tensão competitiva de dois ou mais jogadores, no modo como os games podem ser viciantes. Aqui, são como bobs de cabelo numa mulher se aprumando, nos rituais de aprumação, numa pessoa com autoestima, querendo se colocar da melhor forma possível para um momento de interação social, talvez visando chamar a atenção de algum pretendente. É o garbo, nas memórias de Infância que tenho, com meus pais saindo para algum compromisso social, deixando seu perfume se espalhar pela casa logo antes de sair. Aqui, é como cilindros de um pujante motor, como numa cidade de pujança industrial, agropecuária ou turística. É como a força de um atleta superpreparado, treinado, sabendo que tem que entrar no jogo sem subestimar o oponente, pois, se subestimo, sou pego de surpresa. Aqui, é como se um grande cilindro fosse cortado em cinco partes, num processo dissociativo, de desconstrução, como pegar um muro e dissociar cada tijolo. É como mapear uma região, classificando em áreas de Serra, de Litoral, de Depressão etc. São como unidades federativas que formam um só país, e, apesar de tal dissociação, há uma certa unidade, num poder federal que busca respeitar as particularidades de cada região. São como muitos carretéis de linha, como na paixão de Iberê Camargo por carretéis, com fios enrolados, como a cobra preparando o bote, como se a cobra soubesse que, se quero vencer, tenho que antes me submeter, numa pessoa que, ao parecer que anda para trás, na verdade está andando para frente, no discernimento taoista de agir sem chamar a atenção, pois se podem observar minhas pretensões, serei fracassado. Este jogo de Almir entre bolinhas pacientemente colocadas lembram um trabalho de serigrafia, ou até uma xilogravura, como “carimbos” numa esteira de produção, dando riqueza cromática ao clichê, como num Andy Warhol, produzindo diferentes imagens em meio a um mesmo “carimbo”. Aqui, é um jogo de xadrez colorido, num jogo entre Luto e Vida, na negra gruta que temos que desbravar, trazendo cor e contentamento a uma Vida tão séria e exigente. Os cilindros se colocam no centro do quadro, talvez querendo galgar um “antes” e um “depois”, no modo como grandes personalidades marcam época, tendo em Jesus Cristo o maior astro de todos os tempos e que, mesmo assim, não é unanimidade, ao menos para os islâmicos, os judeus e os chineses... Aqui, temos uma unidade que não é exercida por meio da força, por meio de estados totalitários e opressores. É uma união leve e arejada, num líder que sabe que tem que respeitar o pacato dia a dia do pacato cidadão.


Acima, sem título. Uma cidade perfeitamente quadriculada, sem curvas sensuais ou insinuantes, mas quarteirões altamente planejados, como os circuitos dentro de um aparelho eletrônico. É uma estampa, num estofado, ou num papel de parede. Pode ser um tapete felpudo, e podemos ouvir o som do aspirador limpando o carpete, nos rituais por trás das sessões de faxina, numa rotina de limpeza e purificação que faz com que as casas limpas se pareçam ao máximo com as casas metafísicas, pois a limpeza de Tao rejeita o desnecessário e repudia a sujeira, fazendo da preguiça o meio para se atingir o minimalismo, atendo-se ao básico necessário, sem frescuras nem excessos, pois se o que tenho não acho que é o suficiente, então nunca terei o suficiente; se não estou o tempo todo querer mais e mais, posso ter Paz – e não é infernal a Vida sem Paz? Aqui, temos uma total disciplina e organização, com as bolinhas sendo ordenadas, numa vida centrada, com cada coisa guardada na apropriada gaveta, no modo como os meios de organizações de computadores, com suas pastas, fazem metáfora com a organização mental da pessoa. Aqui, são vários olhinhos nos olhando, ávidos por um espetáculo, por uma demonstração da fé em Tao, a Pai que é doce e delicado como uma azaleia florescendo, anunciando a renovação do frescor de Primavera, pois Tao é o renovador, o banho tomado, o perfume comportamental. É uma grande caixa de ovos, com os produtos organizados, opondo-se ao caos das fúrias naturais, na intenção humana em “domar” as forças do Id, do Inconsciente, da gaveta instintiva animal. Temos aqui uma cidade na qual é absolutamente simples de se locomover, em oposição a cidades que não foram planejadas, a cidades que cresceram de forma desordenada, no inevitável caos urbano que faz com que só os nativos saibam se locomover perfeitamente. É como uma plateia totalmente cheia, na expectativa de se assistir um bom e esperado espetáculo, como num show de um grande popstar, de uma grande dama do Teatro, como numa Marília Pêra, que dizia ficar contente com um teatro cheio e ficar triste com um teatro vazio, na decadência de certos artistas, cujos ingressos de show encalham, no modo como a seriedade da Disciplina tem que existir, pois só terei sucesso se eu for competente, como me disse um grande amigo. Aqui, é como a grade de um ralo, filtrando as impurezas e só deixando passar o líquido, no diário ritual de banho renovador, no modo como na Dimensão Metafísica estamos sempre limpos e perfumados, emoldurados por uma luz, na prova do poder imenso e infinito de Tao, a razão de tudo. Aqui, é como uma grade de prisão, no termo “ver o Sol nascer quadrado”, na infelicidade de um presidiário, pois estar na cadeia é a prisão dentro da prisão, pois mesmo quem não está na cadeia já é um pouco prisioneiro... Aqui, são como verdes limões organizados, num dia de feira, com senhoras donas de casa com seus carrinhos, fazendo as compras para abastecer o Lar, como uma índia ianomâmi coletando coisas na floresta, na universalidade da divisão de tarefas – homem faz isso e mulher faz aquilo, como nas brincadeiras de infância, nas inevitáveis imposições sociais entre brincar de boneca e brincar de carrinho, pois a Sociedade tem certas expectativas em relação ao gênero da criança, tolhendo o comportamento considerado anormal. Aqui, temos um sistema perfeito, sem anomalias, sem arestas, num contexto de ponto pacífico, em relação a algo que a pessoa bateu veementemente o “martelo”, adquirindo certas verdades inabaláveis como, por exemplo, querer se relacionar amorosamente com pessoas que tenham o mínimo de maturidade. É um sistema inclusivo, onde ninguém fica de fora, pois Tao é o Pai que jamais se esquece de filho algum. É como uma peça de Teatro na qual todos têm papel de igual peso e importância, fazendo com que o indivíduo se sinta feliz e satisfeito em ter um papel tão relevante e essencial, na sensação de pertencimento, de Lar, de família, de carinho.


Acima, Zero. Uma patente sendo aberta, no total momento de privacidade da pessoa, num momento tão íntimo que sequer seu íntimo cônjuge pode ver. O zero é a base, a referência, o ponto de eterno retorno, como no feto no fim de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, no retorno ao Lar primordial, à barriga imaculada de Nossa Senhora, a Virgem Concepção da Glória Metafísica. Aqui, são duas argolas dissociadas, perdidas, e poderiam estar aliadas, formando algo novo, unindo forças, como a união de forças entre marido e mulher, da conveniência da vida de um casal, numa divisão de tarefas. Os zeros são buracos de fechadura, no fetiche de espiar a privacidade de outrem, no pecado indiscreto da curiosidade. A palavra “zero” está aqui escrita em tom bordô, ficando discretão à frente do fundo negro, quase invisível, numa pessoa que não quer aparecer mais do que o próprio trabalho, como um ator que opta por uma vida retirada e discreta, como se soubesse que já está devidamente exposto devido ao trabalho como ator, estando exposto nos Meios de Comunicação de Massa, como a Televisão – se sei quando tenho o bastante, estou livre das instabilidades da Ambição. O zero é a Disciplina, no espartano corte de cabelo do soldado, numa vida absolutamente disciplinada, como fazer corrida em um rigoroso dia de Inverno vestindo uma simples camisa regata. É o esforço de uma pessoa que sabe que tem que se doar ao trabalho, mas sem aspirações de workaholic, na tênue linha que separa autoestima de disciplina. Os zeros aqui ficam em evidência frente ao fundo negro, num Almir querendo chamar nossa atenção para algo, no deleito que sente o artista que vê que está recebendo a devida atenção, sendo insuportável ser ignorado. O zero com o texto dentro é mais rico, mais privilegiado, nas regalias sociais em torno de poder e dinheiro, sendo que os “bancos” metafísicos só guardam uma coisa – Amor incondicional, havendo no dinheiro uma cópia brutalmente tosca do Amor, pois o Ser Humano é obcecado em obter mais e mais poder, e nisso se inclui o Dinheiro. O numeral zero sem o texto é mais leve e elevado, como se soubesse do poder do desprendimento, no modo como o Dinheiro pode trazer muita miséria existencial ao homem rico. Aqui, são dois sistemas solares, duas galáxias, só que uma é rica e outra é pobre, nas inevitáveis diferenças sociais, no modo como o Comunismo falhou em tentar dizimar tais diferenças – sim, vivemos em um Mundo desigual, infelizmente. Então, a depuração espiritual se torna necessária para o abrandamento, entrando em cena a Hierarquia Espiritual – os de maior Moralidade regem os de menor, e é só fazer o teste: finja que você deixou cair uma cédula de dinheiro na Rua, e se a pessoa que viu o dinheiro cair não lhe avisar, essa pessoa não tem muito apuro moral. É a seriedade da Encarnação. Aqui, temos uma conta bancária zerada, pobre, no modo como o Desencarne despe a pessoa de todas as suas posses mundanas, havendo no Umbral a pessoa que simplesmente não aceita o Desencarne, o que é um absurdo, pois o desencarnado tem que estar absolutamente feliz com tal libertação – quanto mais mundano sou, mais sofro, como um pobre diabo sociopata, uma pessoa que não vê algo além da Matéria. Aqui, um zero está horizontal e o outro está vertical, como se quisessem se diferenciar um do outro, num esforço para se obter individualidade e identidade, diferenciação, no fato de que não há duas pessoas iguais, pois qual seria o motivo de haver mais de uma pessoa como eu? Um desses zeros é feliz; o outro, nem tanto. Um deles é centrado; o outro, vazio. É como se fossem Yin e Yang, abraçando um ao outro, na tradição social de casais heterossexuais dançando num baile, num momento social de beleza e alegria, nas tentativas do Ser Humano em entender e magia rica da agenda social metafísica, o lugar onde a Beleza é avassaladora e irrefreável. Almir nos coloca opostos aqui, para que possamos ver a contrastante oposição entre significado e a ausência deste.

Referências bibliográficas:

Almir Mavignier. Disponível em <www.bolsadearte.com>. Acesso 28 ago. 2019.
Almir Mavignier. Disponível em <www.catalogodasartes.com.br>. Acesso 28 ago. 2019.
Almir Mavignier. Disponível em <www.enciclopedia.itaucultural.org.br>. Acesso 28 ago. 2019.
Almir Mavignier. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>. Acesso 28 ago. 2019.