A pintora americana Alice Neel (1900 – 1984) é “uma das maiores retratistas do século XX”, diz Barry Walker, curador de uma retrospectiva de NA no Museu de Belas Artes de Houston, Texas, um dos maiores dos EUA. Deste momento até agosto próximo, está havendo uma grande retrospectiva de Alice no mágico museu Met, de Nova York. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!
Acima, Madona Degenerada. 1930. São fascinantes estas releituras de coisas clássicas, como a banda U2 regravando um clássico de Cole Porter, o deus do Jazz. Os seios da Madona estão caídos, exauridos, como numa cachorra que já amamentou várias ninhadas, num sinal de passagem do Tempo, como numa rainha Vitória, que tantos filhos colocou no Mundo, ficando com o problema de útero caído. As crianças aqui parecem ter hidrocefalia, estranhas, não muito belas, num quadro não muito belo, o que não é ruim, pois a sabedoria popular diz que “Beleza não põe à mesa”. Temos aqui duas crianças, sendo uma a preferida e outra a preterida, como numa pessoa tendo que fazer uma dura escolha, como em A Escolha de Sofia, na crueldade dos campos de concentração nazistas, numa grande amostra da inclinação do Ser Humano à crueldade, como na bomba de Hiroshima, a qual foi detonada antes de tocar no solo para, assim, ter mais efeitos destrutivo – para o Homem, quanto mais desumano, melhor. A Madona aqui é sombria, com roupa e cabelos negros, misteriosa, imprevisível, numa toca negra cheia de meandros traiçoeiros, como no terrível labirinto do psicopata de O Silêncio dos Inocentes, ou como no terrível caso de um pai que aprisionou por anos a própria filha, tendo até filhos com esta – até que ponto pode ir o Mal... Aqui é como uma lista de espera, como numa linha de sucessão ao trono, como no célebre sociopata regente Calígula, assassinado pelo próprio tio em uma trama palaciana, ou como no ditador nortecoreano, mandando executar o próprio tio, numa cruel dança de cadeiras que traduz a obsessão humana por poder, havendo no Umbral o plano dos espíritos mundanos, que não querem dizer adeus à prisão do corpo carnal – é a Loucura. A criança preterida é a subestima, no modo como não canso de evocar o conto do Patinho Feio, sempre subestimado, sempre desprezado, sempre esquecido para, então, dar o “bote” e mostrar ao Mundo com quantos paus se faz uma canoa... A criança preferida é mimada, bajulada, assim como são bajuladas as celebridades, pessoas narcisistas que só sabem falar de si mesmas, desinteressantes, com as quais você senta para conversar e, no frigir dos ovos, vão se tornando pessoas pessoalmente desinteressantes, na eterna inclinação humana ao Ego, colocando este no centro e no meio de tudo, na arrogância do termo: “Não nasci para esperar; nasci para ser esperado”. Ao fundo, atrás da Madona, uma porção rubra, vinho, como no interior do útero, na dor de uma Evita morrendo de Câncer de Útero, numa época em que não havia radioquimioterapia – coisa boa viver no nosso próprio tempo de avanços médicos! Este útero está prestes a ruir na menstruação, num eterno trabalho de recomeço, como num artista que, após uma turnê mundial, tem que sentar e pensar no que fará em seu próximo álbum, no fato de que o novo dia sempre vem, numa página em branco implorando para ser preenchida com o Bem, com algo de bom e positivo. Esta criança no colo usa vestes brancas, virgens, na linda pele imaculada de bebê, no feto no fim de 2001, dando a mensagem de que a Humanidade é ainda tão jovem que sequer nasceu, no retorno ao Lar, ao Útero Imaculado Metafísico, nossa mãe Maria que tanto nos ama incondicionalmente, jamais fazendo diferença entre seus filhos. Os seios aqui têm aspecto pontiagudo, agressivo, perigoso, exigindo que mantenhamos distância; exigindo que tenhamos respeito. O negro respalda o claro, como na Primavera de Botticelli, com as belas divindades em frente de árvores escuras, fazendo assim, uma evidência, um contraste, como nos contrastes entre claro e escuro no Barroco. O colo da Madona é a base, a referência, o respaldo de uma estrutura sólida de família, como um rapaz que conheci certa vez, uma pessoa que veio ao Mundo sem pai nem mãe, sem identidade de berço, numa dureza.
Acima, Geoffrey Hendricks e Brian. 1978. Aqui temos a amizade, o companheirismo. O homem crespo está bem à vontade, com a camisa aberta – é a familiaridade, o estar confortável, no modo como um bom amigo faz com que nos sintamos em casa, sem cerimônias ou formalidades, longe de uma sessão solene de formatura, por exemplo. O peito peludo é a masculinidade, num homem confortável em sua própria pele, gostando de ser homem, havendo o oposto do transexual, um homem que odeia ser homem. A fruteira é o chapéu tuttifrutti de Carmen Miranda, a diva que encantou o Mundo nos sombrios tempos de Guerra, no fascínio que os trópicos exercem sobre zonas mais frias do planeta, como nos longevos invernos escandinavos. A mesa é a conversa, a troca de ideias, como num bar, com pessoas com interesses em comum, como Futebol ou Videogames. É o glorioso momento do happy hour, num drink para aliviar a sisudez do dia, num recreio, numa libertação, numa pausa entre encarnações, com longos períodos de descanso metafísico, até o momento em que o espírito começa a planejar a reencarnação, como num estudante se matriculando numa faculdade, selecionando as cadeiras que deseja cursar – o Universo é uma grande universidade. O homem de camisa aberta é crespo, como nos cabelos de cobras de Medusa, no mito misógino que exige que a mulher seja bela e jovem para sempre, em contraste com a feiúra do monstro mítico, nas loucuras que uma mulher é capaz de fazer em nome da Beleza, havendo, no Homem, um alívio, num Mundo que não exige propriamente Beleza do homem, mas Agressividade, no fato de que o indivíduo sequer saiu da barriga da mãe e já está sendo inundado em meio aos preconceitos do Mundo, algo abaixo da superioridade dos anjos, os quais não têm sexo, pois estão desencarnados, livres em suas asas de livre arbítrio, no consolo espírita de que cada um de nós tem, sim, um anjo da guarda, no modo como tudo, no frigir dos ovos, resume-se a Amor, esta força tão subestimada pela odiosidade humana. A mesa aqui é de um amarelo vibrante, solar, na bênção de um dia de Sol em meio ao frio invernal, no consolo de raios de Sol num Mundo tão frio e escuro. O amarelo é o ouro da Amizade, da Irmandade, de espíritos que se identificam entre si, tendo similaridades; tendo algo em comum, que é Tao, o Deus que existe dentro de cada um de nós, sendo esta “cola” que mantém unida uma família. O homem de óculos é a intelectualidade, na fragilidade de uma armação de óculos, na sutileza de um bom garçom servindo gentil e delicadamente um vinho fino, inspirando-nos a saborear cada gole, ao contrário do pobre coitado alcoólatra, o qual só quer injetar álcool para dentro de si, mal se importando com as camadas de sabores e odores de um vinho. O homem de óculos está menos desnudado do que o outro ao lado, e tem um aspecto de nerd, de homem de alta erudição e conhecimento, nos brilhantes talentos diabólicos de hackers, pessoas equivocadas, que usam a inteligência em nome do Mal, como num Bin Laden planejando seu ataque infame. Esta fruteira é a fertilidade de uma mente artística, fértil, pulsante, inventando coisas e fazendo associações inéditas e inusitadas, no caminho de cada artista em estabelecer uma identidade, uma marca registrada, como nas bolas e círculos de Yayoi Kusama ou na nababesca grandiosidade de Christo e Jeanne-Claude, até chegar a um ponto em que o Mundo passa a me ver como eu realmente sou, sem que eu precise ser apresentado. A fruteira é o perfume tropical, no sabor inconfundível de uma manga, a fruta adotiva do Brasil. O falo da banana é a coragem, num artista que tem que ter coragem para conquistar seu espaço, neste grande desafio da conquista de um espaço em um Mundo tão blasé e indiferente. O homem de óculos tem dedos magros, esqueléticos, magérrimos, numa escassez ou num minimalismo, como se soubesse que o importante é se ater ao essencial, ao indispensável, numa preguiçosa ação limpa, com num homem sem frescuras.
Acima, Max White. 1935. Uma das provas do talento retratista de AN. Max nos olha desconfiado, como se soubesse que algo está sendo elucubrado e planejado. Seus lábios opulentos são a fartura, a abundância, como no chapéu farto de uma Carmen Miranda, como num país ou reino abundante, como no Canadá – o que faz uma nação ser tão rica, limpa e organizada, como no Japão? É uma nação que vive sob Tao, o próspero. Max está aprumado para o retrato, barbeado e com o cabelo aparado, nos rituais de aprumação, na pessoa que se arruma antes de sair de casa, no caminho da autoestima, numa pessoa que se gosta e que se cuida. O quadro é todo sombrio, escuro, num mistério que Max carrega consigo, numa Alice buscando revelar tal enigma, no momento de intimidade num atelier, no qual o modelo se entrega ao artista, num esforço de paciência, num artista tentando captar o it, o charme, o encanto pessoal do modelo. Os dedos de Max são magros e delgados, com mãos grandes e fortes. As mãos são o que nos faz humanos, não havendo em outros primatas o polegar opositor. É o poder transformador do artista, manipulando elementos para produzir algo novo, como na idosa Rose em Titanic, fazendo vasos de cerâmica, no modo como Tao é este vazio, este prato que serve ao Mundo, e o homem de Tao é isto, este copo que tanto serve ao Mundo, no caminho da humildade, no discurso de posse de Elizabeth II: “Longa ou curta, minha vida servirá ao Povo”, pois como posso ser um líder se nada faço pelo Mundo? A totalidade de preto aqui traz o fato de que o quadro foi pintado nos anos 1930, décadas antes do preto se tornar moda, nos anos 1990 – antes disso, o preto era a cor do luto, da discrição respeitosa. O modelo está sedimentado, confortavelmente sentado, esperando por algo, sabiamente esperando a vez do “bote”, numa pessoa que está na “tocaia”, de olho numa oportunidade para mostrar a que veio ao Mundo. Uma das unhas de Max é negra, obscura, no termo “ovelha negra da família”, num sociopata que leva vida dupla, um lobo disfarçado de cordeiro, ou seja, uma pessoa má disfarçada de pessoa boa, conseguindo enganar meio Mundo – proteja-se dos sociopatas, sabendo que no coração destes não há espaço para Amor, numa pessoa infeliz e sofredora, a qual odeia tudo e todos. Aqui, a barba feita é como um campo recém colhido, com máquinas colhendo toneladas de soja, nos avanços tecnológicos que trouxeram os latifúndios, as grandes plantações, em contraste com a árdua vida de imigrante italiano no RS, num minifúndio que tanto trabalho dava ao humilde imigrante. O modelo sentado é a pausa, a espera por algum sinal, alguma brecha, numa pessoa cuja porção de si está nessa espreita, sabendo que água parada começa e feder e se deteriorar... Aqui é um doloroso momento de luto, e Max não esboça qualquer sinalzinho de sorriso. Max já não é um gurizote, e a calvície começa e a se insinuar em sua cabeça, com duas grandes entradas – é a passagem do Tempo, na Juventude sendo substituída pela Velhice, na sabedoria de uma pessoa que, mesmo idosa e aposentada, jamais pode deixar de produzir, pois, realmente, fora do Trabalho não há salvação, como no Plano Metafísico, o Reino dos Céus, no qual o ente desencarnado se depara com a necessidade de se continuar produtivo – a Eternidade não são anjinhos loiros tocando harpa. Este quadro todo se fecha, numa dúvida cinzenta, própria da Encarnação, neste momento em que só a Fé pode nos dizer que somos especiais, que somos príncipes filhos do Grande Rei, no modo como a Ciência tem tanta dificuldade em provar se há Vida após o óbito carnal. As mãos sobre os joelhos são comedidas, domesticadas, numa pessoa que parou de ser arisca e passou a ser mais receptiva ao Mundo, no momento maravilhoso que é uma pessoa se abrir ao Mundo, tratando cada cidadão com respeito, desde os ricos até os pobres. O fundo cinza aqui é um vestígio que um fogo que já morreu, como num Sol se desligando, com o frio retornando à sala cinzenta. O cinza é uma tarde fechada de Inverno, comendo pinhões quentinhos, no consolo do fogo em meio a uma Vida tão dura e fria, num consolo.
Acima, Nancy e Olivia. 1967. Uma Madona e criança. A mãe está com um olhar assustado, como se pega de surpresa por Alice Neel. É o choque, num choque de realidade, como num paciente sendo internado psiquiatricamente, deparando-se com a dureza da verdade, no modo como as crises, as desilusões, são positivas, pois o Mundo só pertence aos que têm os pés no chão, longe de tolos e vazios sinais auspiciosos, como na ala vip de alguma boate. A mãe agarra a filha com força, protegendo-a, no instinto materno de proteção, com algumas mães superprotetoras, que mimam em excesso um filho, despreparando este para a dureza inevitável do Mundo, numa mãe massageando o Ego do filho, como já ouvi de uma mãe superprotetora: “Meu filho não merece dez; meu filho merece onze”. A menininha aqui tem pouca noção do que está acontecendo, na passividade infantil, no modo como é trabalhoso criar alguém, como ouvi de uma jovem mãe: “Dá trabalho, mas vale a pena”. A cadeira aqui é o refúgio do Lar, na mãe zelosa que coloca fitas adesivas nas tomadas elétricas, para impedir que a criança tome algum choque, num trabalho quase neurótico, proporcionando um ambiente seguro para que as crianças sejam a luz que são, na bênção de uma criança chegando a uma família. A mãe está com pernas cruzadas, elegantes, remetendo à cruzada de pernas mais famosa do Cinema, revelando uma Sharon Stone que, até então, era uma starlet, uma estrelinha aspirante a estrela, nas viradas de mesa da Vida, numa pessoa que, subestimada, pode, assim, pegar todos de surpresa, como num Jô Soares se revelando um talento entrevistador – ninguém previra, ao contrário da pessoa superestimada, a qual, assim, fica de “mãos atadas”, descobrindo o valor da discrição. A nudez dos joelhos da Madona é a exposição, a vulnerabilidade, a timidez, como na tímida Vênus de Botticelli, expondo parcialmente os seios, na célebre atriz pornô Cicciolina, expondo um dos seios para chamar a atenção da Mídia para algum assunto político, na capacidade de uma pessoa em atrair tal atenção, como numa Diana, amando e odiando a Imprensa Mundial, numa mulher que, ao mesmo passo de que gostava de aparecer, sentia-se muito invadida pelo assédio dos fotógrafos. A cadeira é o repouso, numa pessoa de férias, desligando-se momentaneamente, como uma pessoa que se obriga a NÃO trabalhar em fins de semana ou feriados, como se soubesse que um workaholic não sabe viver a Vida, numa pessoa viciada em trabalho, desrespeitando a si mesma. O foco aqui é nas modelos, pois a parte do fundo, da casa das modelos, é rapidamente delineada, sem muito esmero ou preocupação em retratar o ambiente, numa espécie de foco, num fotógrafo ajustando foco exato para destacar aquilo que quer destacar, remetendo ao boom da Fotografia Digital, derrubando o império de empresas como a Kodak. Aqui, o nenê é o novo, que sempre vem, numa linha de sucessão, como num príncipe Charles, a vida toda esperando para a mãe morrer e deixar vago tal poderoso trono. O nenê é a inocência, na pureza da criança, a qual não entende os preconceitos do Mundo, como o antissemitismo, por exemplo. Podemos ouvir grunhidos e choros da criança, com pais acordando de madrugada para acudir uma criança chorando; com pais cujo dia começa ainda de madrugada, num trabalho de doação e dedicação, como numa Alice Neel, debruçada com amor de mãe. A criancinha está de pés descalços – é a simplicidade, numa casa acarpetada, confortável, na criança que vai aos poucos descobrindo o Mundo, sendo preparada para se tornar um adulto forte, que saiba lidar com tamanhas vicissitudes, e a Vida não exige que sejamos fortes? Há um detalhe em bordado na manga da mãe – é a busca pela Beleza, pela Sofisticação, pelo enfeite feminino, como em sofisticados papéis de parede, num bom gosto aristocrático, elegante, na beleza que vem de dentro, havendo no homem de Tao esta revelação, como no personagem Conan, do Cinema, um homem sem berço nobre que acabou se revelando um grande rei. Neste quadro há uma conexão.
Acima, Julie Grávida e Algis. 1967. Aqui temos uma pose ginecológica, impactante, arrebatadora. Julie está completamente à vontade na frente de Alice. Julie está grávida, barriguda. A gravidez é a perspectiva, a transformação, como uma mãe celebridade já disse: a gravidez e o parto são grandes piadas de Deus para com as mães. A depressão pós parto aguarda Julie, no termo “ser mãe é padecer no paraíso”, ou seja, o nascimento de um filho seria para encher de alegria uma mãe, mas é ao contrário, deprimindo tal mãe. Julie é alva, de aparência virgem, remetendo a um anúncio de perfume de grife, o Opium, numa modelo nua branca se contorcendo na euforia da droga, num anúncio que causou muita polêmica quando lançado internacionalmente. A nudez é a entrega, como num filme com Amy Adams, no qual sua personagem se desnuda frente ao homem que ela ama, na entrega existencial, num momento de intimidade e entrega que nenhum, nenhum dinheiro compra – é de se ter pena de quem acha que pode vender Amor ou quem acha pode comprar Amor. Julie está com um semblante indeciso, sem poder ver muito adiante, com dificuldade para vislumbrar a Vida; vislumbrar o que acontecerá quando a criança nascer. Sua genitália é como uma entrada de igreja, com o útero imaculado interior, no qual só podemos entrar se purificarmo-nos com água benta, na divertida cena de O Advogado do Diabo, no qual o Diabo coloca o dedo na água benta e esta ferve! Em contraste, Algis está completamente vestido, para causar um impacto e, assim, realçar ainda mais a nudez de Julie. Algis está aprumado para sair de casa, talvez num advogado indo trabalhar; Algis está menos incerto do que Julie, e ambos olham para Alice, pacientes, dispostos a posar, num trabalho de paciência grande, remetendo à época em que a pintura era o único retrato possível, antes do advento da Fotografia. A colcha aqui é bem feminina, com estampas florais, na feminilidade, no poder da Mulher em trazer Vida ao Mundo, pois, sem as mulheres, neste mundo de homens, o Mundo não seria possível. O homem aqui está discreto e coadjuvante, e a grande estrela, o grande destaque, é Julie em seu poder de mulher de trazer Vida ao duro Mundo em que vivemos. Esta colcha parece sangrar, nas dores do sangramento mensal uterino, no divertido modo como amigas íntimas passam a menstruar no mesmo ritmo! Julie está aqui se espreguiçando, dobrando suavemente a perna, numa ginástica, num movimento, não sabendo se isto aborrecerá Alice. O homem está semioculto, retirado, quase anexado ao pano de fundo. Ele é magro e elegante. Seus sapatos são o momento de sair de casa, num cidadão que sabe que se vestir dentro de casa é diferente do que usar algo para sair de casa. Sua sisuda calça cinza contrasta com o escândalo estampado da colcha sangrando. A colcha é uma relva, uma floreira, um paraíso para insetos polinizadores, na força da Vida que ressuscita na Primavera, nos ciclos de estações ascendendo e descendendo, havendo no homem de Tao esta capacidade de observar a Vida deste modo, atemporal, nos ritmos cósmicos que fazem derreter os relógios de Dalí, num Universo cheio de ritmos, de percussões. A gravidez aqui está na fase final, e Julie está prestes a sentir as dores do parto, como na terrível historia da Princesa Isabel, encarando 48 horas de parto, num momento em que a mulher tem que ser mais forte do que qualquer homem, nos gritos de dor. Aqui é como a Vênus e o Marte de Botticelli – o Yin está desperto e pleno, escravizando o Yang, que está retirado e ausente. É um casal bonito, na beleza do Amor, no momento em que um entrega suas tristezas para o outro, num momento entre quatro paredes, numa pausa, num momento em que o Mundo todinho é deixado do lado de fora, com duas esferas – a social e a íntima. A barriga aqui parece estar prestes a estourar, como um balão inflado, na beleza de uma Angelina Jolie grávida, numa explosão de Vida, de abundância, tendo em Tao este útero que sempre gera, sempre cria, sempre deslumbra com sua impecabilidade.
Acima, Síntese de Nova York. 1933. Temos aqui uma urbe sombria, opaca, como na neblina londrina, cheia de dúvidas, de indefinições, na sedução das Brumas de Avalon, na Grande Deusa Mãe que foi substituída pela Virgem Maria. É divertido observar aqui que as pessoas têm rostos de caveira, mortas, aterrorizantes, no destino inevitável do Desencarne, este momento em que abandonamos um corpo que começa e se decompor, no verso da canção: “No fim, todos perdemos nosso charme”, na piada que é o envelhecimento. Aqui é como uma garoa paulistana, na cidade cinza dos negócios, muito longe da exuberância ensolarada do Rio de Janeiro, nos cariocas que, diz uma canção, odeiam de dias nublados, como numa ensolarada Los Angeles, no verso da canção: “Nunca chove na Califórnia”. Aqui é um cenário melancólico, e podemos ouvir os barulhos urbanos, como veículos passando, jogando sua pestilenta poluição, naquele cheio de poluição que um turista percebe em Nova York, uma cidade que, apesar de bela e artística, pode ser bem dura e cruel. Uma menininha aqui veste um vestido vermelho, quebrando um pouco com a sisudez cinzenta, remetendo à menininha de vermelho de A Lista de Schindler, mostrando tal criança morta, numa esteira de descarte que transforma seres humanos em fezes, numa pessoa que conheci, uma pessoa que simpatizava com Hitler – que pessoa equivocada. As pessoas aqui passam indiferentes, mortas, cadavéricas, como no Umbral, a terrível dimensão subterrânea de sofrimento, com espíritos se arrastando em um lugar escuro e fétido, como na toca de Laracna, o monstro de Tolkien, num sociopata armando suas ardilosas teias para capturar “moscas”, no modo como devemos construir um “faro” para detectar sociopatas. Na porção inferior do quadro vemos estação de metrô, fazendo a metáfora com o Umbral, na recomendação de que não devemos conversar com estranhos no metrô, como no episódio do seriado Seinfeld, no qual uma sociopata, disfarçada de mulher elegante e polida, acaba pregando um golpe no personagem George Costanza, o qual se enamorou ao ver a mulher no metrô. O metrô são os bastidores, o basckstage, ambiente no qual uma Xuxa pode trafegar sem ser assediada, num plano em que todos são profissionais que ali estão a serviço. O metrô é o trabalho enorme que existe em torno da realização de eventos grandes como a Festa da Uva caxiense. Aqui a fuligem corre solta, e tudo é assim, meio sujo, havendo nos garis estes heróis que mantém nossas calçadas impecáveis. Na porção superior esquerda, vemos uma Lua minguante ou crescente, que é a Esperança de uma cidade melhor, menos feia e menos suja, numa vida maravilhosa que nos espera após nossa “faculdade” aqui na Terra, na beleza de se observar a Lua, símbolo dos enamorados. Ao redor da Lua vemos duas manequins de vitrine nuas, aladas, na beleza, na liberdade, no Amor que tanto falta ao Mundo. São como anjos, num lugar limpo e iluminado, leve, no fascínio de lustres de cristal, na transparência dos grandes amigos, os quais nos conhecem com a palma da mão. Os ritmos naturais lunares buscam quebrar a monotonia cinzenta, trazendo a beleza do ciclo das estações climáticas, como na majestosa Primavera portoagrense, com suas calçadas cobertas por tapetes de flores roxas de jacarandás pela cidade, no modo como a Vida vai exigindo um pouco de contemplação, e não só sofrido labor – temos que contemplar o labor de outrem. Os veículos aqui vão passando indiferentes, insensíveis, no paradoxo depressivo, no qual, apesar da pessoa estar cercada de estranhos, esta se sente muito sozinha, numa pessoa vagando ao léu pelas ruas de uma cidade dura, dura como qualquer outro lugar, numa pessoa que, num estilo de vida solitário, começa a “tomar uma surra” da Vida, numa pessoa que acha que pode se esconder da Vida. Aqui temos uma nesguinha de Esperança, como num artista querendo fazer sucesso na sedutora Nova York, um lugar que pulsa tanto Arte quanto indiferença.
Referências bibliográficas:
Alice Neel. Disponível em: <www.en.wikipedia.org>. Acesso em: 24 mar. 2021.
Alice Neel: People Come First. Disponível em: <www.metmuseum.org/exhibitions>. Acesso em: 24 mar. 2021.
Works/Paintings. Disponível em: <www.aliceneel.com>. Acesso em: 24 mar. 2021.