quarta-feira, 31 de março de 2021

No País das Maravilhas

 

 

A pintora americana Alice Neel (1900 – 1984) é “uma das maiores retratistas do século XX”, diz Barry Walker, curador de uma retrospectiva de NA no Museu de Belas Artes de Houston, Texas, um dos maiores dos EUA. Deste momento até agosto próximo, está havendo uma grande retrospectiva de Alice no mágico museu Met, de Nova York. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!

 


Acima, Madona Degenerada. 1930. São fascinantes estas releituras de coisas clássicas, como a banda U2 regravando um clássico de Cole Porter, o deus do Jazz. Os seios da Madona estão caídos, exauridos, como numa cachorra que já amamentou várias ninhadas, num sinal de passagem do Tempo, como numa rainha Vitória, que tantos filhos colocou no Mundo, ficando com o problema de útero caído. As crianças aqui parecem ter hidrocefalia, estranhas, não muito belas, num quadro não muito belo, o que não é ruim, pois a sabedoria popular diz que “Beleza não põe à mesa”. Temos aqui duas crianças, sendo uma a preferida e outra a preterida, como numa pessoa tendo que fazer uma dura escolha, como em A Escolha de Sofia, na crueldade dos campos de concentração nazistas, numa grande amostra da inclinação do Ser Humano à crueldade, como na bomba de Hiroshima, a qual foi detonada antes de tocar no solo para, assim, ter mais efeitos destrutivo – para o Homem, quanto mais desumano, melhor. A Madona aqui é sombria, com roupa e cabelos negros, misteriosa, imprevisível, numa toca negra cheia de meandros traiçoeiros, como no terrível labirinto do psicopata de O Silêncio dos Inocentes, ou como no terrível caso de um pai que aprisionou por anos a própria filha, tendo até filhos com esta – até que ponto pode ir o Mal... Aqui é como uma lista de espera, como numa linha de sucessão ao trono, como no célebre sociopata regente Calígula, assassinado pelo próprio tio em uma trama palaciana, ou como no ditador nortecoreano, mandando executar o próprio tio, numa cruel dança de cadeiras que traduz a obsessão humana por poder, havendo no Umbral o plano dos espíritos mundanos, que não querem dizer adeus à prisão do corpo carnal – é a Loucura. A criança preterida é a subestima, no modo como não canso de evocar o conto do Patinho Feio, sempre subestimado, sempre desprezado, sempre esquecido para, então, dar o “bote” e mostrar ao Mundo com quantos paus se faz uma canoa... A criança preferida é mimada, bajulada, assim como são bajuladas as celebridades, pessoas narcisistas que só sabem falar de si mesmas, desinteressantes, com as quais você senta para conversar e, no frigir dos ovos, vão se tornando pessoas pessoalmente desinteressantes, na eterna inclinação humana ao Ego, colocando este no centro e no meio de tudo, na arrogância do termo: “Não nasci para esperar; nasci para ser esperado”. Ao fundo, atrás da Madona, uma porção rubra, vinho, como no interior do útero, na dor de uma Evita morrendo de Câncer de Útero, numa época em que não havia radioquimioterapia – coisa boa viver no nosso próprio tempo de avanços médicos! Este útero está prestes a ruir na menstruação, num eterno trabalho de recomeço, como num artista que, após uma turnê mundial, tem que sentar e pensar no que fará em seu próximo álbum, no fato de que o novo dia sempre vem, numa página em branco implorando para ser preenchida com o Bem, com algo de bom e positivo. Esta criança no colo usa vestes brancas, virgens, na linda pele imaculada de bebê, no feto no fim de 2001, dando a mensagem de que a Humanidade é ainda tão jovem que sequer nasceu, no retorno ao Lar, ao Útero Imaculado Metafísico, nossa mãe Maria que tanto nos ama incondicionalmente, jamais fazendo diferença entre seus filhos. Os seios aqui têm aspecto pontiagudo, agressivo, perigoso, exigindo que mantenhamos distância; exigindo que tenhamos respeito. O negro respalda o claro, como na Primavera de Botticelli, com as belas divindades em frente de árvores escuras, fazendo assim, uma evidência, um contraste, como nos contrastes entre claro e escuro no Barroco. O colo da Madona é a base, a referência, o respaldo de uma estrutura sólida de família, como um rapaz que conheci certa vez, uma pessoa que veio ao Mundo sem pai nem mãe, sem identidade de berço, numa dureza.

 


Acima, Geoffrey Hendricks e Brian. 1978. Aqui temos a amizade, o companheirismo. O homem crespo está bem à vontade, com a camisa aberta – é a familiaridade, o estar confortável, no modo como um bom amigo faz com que nos sintamos em casa, sem cerimônias ou formalidades, longe de uma sessão solene de formatura, por exemplo. O peito peludo é a masculinidade, num homem confortável em sua própria pele, gostando de ser homem, havendo o oposto do transexual, um homem que odeia ser homem. A fruteira é o chapéu tuttifrutti de Carmen Miranda, a diva que encantou o Mundo nos sombrios tempos de Guerra, no fascínio que os trópicos exercem sobre zonas mais frias do planeta, como nos longevos invernos escandinavos. A mesa é a conversa, a troca de ideias, como num bar, com pessoas com interesses em comum, como Futebol ou Videogames. É o glorioso momento do happy hour, num drink para aliviar a sisudez do dia, num recreio, numa libertação, numa pausa entre encarnações, com longos períodos de descanso metafísico, até o momento em que o espírito começa a planejar a reencarnação, como num estudante se matriculando numa faculdade, selecionando as cadeiras que deseja cursar – o Universo é uma grande universidade. O homem de camisa aberta é crespo, como nos cabelos de cobras de Medusa, no mito misógino que exige que a mulher seja bela e jovem para sempre, em contraste com a feiúra do monstro mítico, nas loucuras que uma mulher é capaz de fazer em nome da Beleza, havendo, no Homem, um alívio, num Mundo que não exige propriamente Beleza do homem, mas Agressividade, no fato de que o indivíduo sequer saiu da barriga da mãe e já está sendo inundado em meio aos preconceitos do Mundo, algo abaixo da superioridade dos anjos, os quais não têm sexo, pois estão desencarnados, livres em suas asas de livre arbítrio, no consolo espírita de que cada um de nós tem, sim, um anjo da guarda, no modo como tudo, no frigir dos ovos, resume-se a Amor, esta força tão subestimada pela odiosidade humana. A mesa aqui é de um amarelo vibrante, solar, na bênção de um dia de Sol em meio ao frio invernal, no consolo de raios de Sol num Mundo tão frio e escuro. O amarelo é o ouro da Amizade, da Irmandade, de espíritos que se identificam entre si, tendo similaridades; tendo algo em comum, que é Tao, o Deus que existe dentro de cada um de nós, sendo esta “cola” que mantém unida uma família. O homem de óculos é a intelectualidade, na fragilidade de uma armação de óculos, na sutileza de um bom garçom servindo gentil e delicadamente um vinho fino, inspirando-nos a saborear cada gole, ao contrário do pobre coitado alcoólatra, o qual só quer injetar álcool para dentro de si, mal se importando com as camadas de sabores e odores de um vinho. O homem de óculos está menos desnudado do que o outro ao lado, e tem um aspecto de nerd, de homem de alta erudição e conhecimento, nos brilhantes talentos diabólicos de hackers, pessoas equivocadas, que usam a inteligência em nome do Mal, como num Bin Laden planejando seu ataque infame. Esta fruteira é a fertilidade de uma mente artística, fértil, pulsante, inventando coisas e fazendo associações inéditas e inusitadas, no caminho de cada artista em estabelecer uma identidade, uma marca registrada, como nas bolas e círculos de Yayoi Kusama ou na nababesca grandiosidade de Christo e Jeanne-Claude, até chegar a um ponto em que o Mundo passa a me ver como eu realmente sou, sem que eu precise ser apresentado. A fruteira é o perfume tropical, no sabor inconfundível de uma manga, a fruta adotiva do Brasil. O falo da banana é a coragem, num artista que tem que ter coragem para conquistar seu espaço, neste grande desafio da conquista de um espaço em um Mundo tão blasé e indiferente. O homem de óculos tem dedos magros, esqueléticos, magérrimos, numa escassez ou num minimalismo, como se soubesse que o importante é se ater ao essencial, ao indispensável, numa preguiçosa ação limpa, com num homem sem frescuras.

 


Acima, Max White. 1935. Uma das provas do talento retratista de AN. Max nos olha desconfiado, como se soubesse que algo está sendo elucubrado e planejado. Seus lábios opulentos são a fartura, a abundância, como no chapéu farto de uma Carmen Miranda, como num país ou reino abundante, como no Canadá – o que faz uma nação ser tão rica, limpa e organizada, como no Japão? É uma nação que vive sob Tao, o próspero. Max está aprumado para o retrato, barbeado e com o cabelo aparado, nos rituais de aprumação, na pessoa que se arruma antes de sair de casa, no caminho da autoestima, numa pessoa que se gosta e que se cuida. O quadro é todo sombrio, escuro, num mistério que Max carrega consigo, numa Alice buscando revelar tal enigma, no momento de intimidade num atelier, no qual o modelo se entrega ao artista, num esforço de paciência, num artista tentando captar o it, o charme, o encanto pessoal do modelo. Os dedos de Max são magros e delgados, com mãos grandes e fortes. As mãos são o que nos faz humanos, não havendo em outros primatas o polegar opositor. É o poder transformador do artista, manipulando elementos para produzir algo novo, como na idosa Rose em Titanic, fazendo vasos de cerâmica, no modo como Tao é este vazio, este prato que serve ao Mundo, e o homem de Tao é isto, este copo que tanto serve ao Mundo, no caminho da humildade, no discurso de posse de Elizabeth II: “Longa ou curta, minha vida servirá ao Povo”, pois como posso ser um líder se nada faço pelo Mundo? A totalidade de preto aqui traz o fato de que o quadro foi pintado nos anos 1930, décadas antes do preto se tornar moda, nos anos 1990 – antes disso, o preto era a cor do luto, da discrição respeitosa. O modelo está sedimentado, confortavelmente sentado, esperando por algo, sabiamente esperando a vez do “bote”, numa pessoa que está na “tocaia”, de olho numa oportunidade para mostrar a que veio ao Mundo. Uma das unhas de Max é negra, obscura, no termo “ovelha negra da família”, num sociopata que leva vida dupla, um lobo disfarçado de cordeiro, ou seja, uma pessoa má disfarçada de pessoa boa, conseguindo enganar meio Mundo – proteja-se dos sociopatas, sabendo que no coração destes não há espaço para Amor, numa pessoa infeliz e sofredora, a qual odeia tudo e todos. Aqui, a barba feita é como um campo recém colhido, com máquinas colhendo toneladas de soja, nos avanços tecnológicos que trouxeram os latifúndios, as grandes plantações, em contraste com a árdua vida de imigrante italiano no RS, num minifúndio que tanto trabalho dava ao humilde imigrante. O modelo sentado é a pausa, a espera por algum sinal, alguma brecha, numa pessoa cuja porção de si está nessa espreita, sabendo que água parada começa e feder e se deteriorar... Aqui é um doloroso momento de luto, e Max não esboça qualquer sinalzinho de sorriso. Max já não é um gurizote, e a calvície começa e a se insinuar em sua cabeça, com duas grandes entradas – é a passagem do Tempo, na Juventude sendo substituída pela Velhice, na sabedoria de uma pessoa que, mesmo idosa e aposentada, jamais pode deixar de produzir, pois, realmente, fora do Trabalho não há salvação, como no Plano Metafísico, o Reino dos Céus, no qual o ente desencarnado se depara com a necessidade de se continuar produtivo – a Eternidade não são anjinhos loiros tocando harpa. Este quadro todo se fecha, numa dúvida cinzenta, própria da Encarnação, neste momento em que só a Fé pode nos dizer que somos especiais, que somos príncipes filhos do Grande Rei, no modo como a Ciência tem tanta dificuldade em provar se há Vida após o óbito carnal. As mãos sobre os joelhos são comedidas, domesticadas, numa pessoa que parou de ser arisca e passou a ser mais receptiva ao Mundo, no momento maravilhoso que é uma pessoa se abrir ao Mundo, tratando cada cidadão com respeito, desde os ricos até os pobres. O fundo cinza aqui é um vestígio que um fogo que já morreu, como num Sol se desligando, com o frio retornando à sala cinzenta. O cinza é uma tarde fechada de Inverno, comendo pinhões quentinhos, no consolo do fogo em meio a uma Vida tão dura e fria, num consolo.

 


Acima, Nancy e Olivia. 1967. Uma Madona e criança. A mãe está com um olhar assustado, como se pega de surpresa por Alice Neel. É o choque, num choque de realidade, como num paciente sendo internado psiquiatricamente, deparando-se com a dureza da verdade, no modo como as crises, as desilusões, são positivas, pois o Mundo só pertence aos que têm os pés no chão, longe de tolos e vazios sinais auspiciosos, como na ala vip de alguma boate. A mãe agarra a filha com força, protegendo-a, no instinto materno de proteção, com algumas mães superprotetoras, que mimam em excesso um filho, despreparando este para a dureza inevitável do Mundo, numa mãe massageando o Ego do filho, como já ouvi de uma mãe superprotetora: “Meu filho não merece dez; meu filho merece onze”. A menininha aqui tem pouca noção do que está acontecendo, na passividade infantil, no modo como é trabalhoso criar alguém, como ouvi de uma jovem mãe: “Dá trabalho, mas vale a pena”. A cadeira aqui é o refúgio do Lar, na mãe zelosa que coloca fitas adesivas nas tomadas elétricas, para impedir que a criança tome algum choque, num trabalho quase neurótico, proporcionando um ambiente seguro para que as crianças sejam a luz que são, na bênção de uma criança chegando a uma família. A mãe está com pernas cruzadas, elegantes, remetendo à cruzada de pernas mais famosa do Cinema, revelando uma Sharon Stone que, até então, era uma starlet, uma estrelinha aspirante a estrela, nas viradas de mesa da Vida, numa pessoa que, subestimada, pode, assim, pegar todos de surpresa, como num Jô Soares se revelando um talento entrevistador – ninguém previra, ao contrário da pessoa superestimada, a qual, assim, fica de “mãos atadas”, descobrindo o valor da discrição. A nudez dos joelhos da Madona é a exposição, a vulnerabilidade, a timidez, como na tímida Vênus de Botticelli, expondo parcialmente os seios, na célebre atriz pornô Cicciolina, expondo um dos seios para chamar a atenção da Mídia para algum assunto político, na capacidade de uma pessoa em atrair tal atenção, como numa Diana, amando e odiando a Imprensa Mundial, numa mulher que, ao mesmo passo de que gostava de aparecer, sentia-se muito invadida pelo assédio dos fotógrafos. A cadeira é o repouso, numa pessoa de férias, desligando-se momentaneamente, como uma pessoa que se obriga a NÃO trabalhar em fins de semana ou feriados, como se soubesse que um workaholic não sabe viver a Vida, numa pessoa viciada em trabalho, desrespeitando a si mesma. O foco aqui é nas modelos, pois a parte do fundo, da casa das modelos, é rapidamente delineada, sem muito esmero ou preocupação em retratar o ambiente, numa espécie de foco, num fotógrafo ajustando foco exato para destacar aquilo que quer destacar, remetendo ao boom da Fotografia Digital, derrubando o império de empresas como a Kodak. Aqui, o nenê é o novo, que sempre vem, numa linha de sucessão, como num príncipe Charles, a vida toda esperando para a mãe morrer e deixar vago tal poderoso trono. O nenê é a inocência, na pureza da criança, a qual não entende os preconceitos do Mundo, como o antissemitismo, por exemplo. Podemos ouvir grunhidos e choros da criança, com pais acordando de madrugada para acudir uma criança chorando; com pais cujo dia começa ainda de madrugada, num trabalho de doação e dedicação, como numa Alice Neel, debruçada com amor de mãe. A criancinha está de pés descalços – é a simplicidade, numa casa acarpetada, confortável, na criança que vai aos poucos descobrindo o Mundo, sendo preparada para se tornar um adulto forte, que saiba lidar com tamanhas vicissitudes, e a Vida não exige que sejamos fortes? Há um detalhe em bordado na manga da mãe – é a busca pela Beleza, pela Sofisticação, pelo enfeite feminino, como em sofisticados papéis de parede, num bom gosto aristocrático, elegante, na beleza que vem de dentro, havendo no homem de Tao esta revelação, como no personagem Conan, do Cinema, um homem sem berço nobre que acabou se revelando um grande rei. Neste quadro há uma conexão.

 


Acima, Julie Grávida e Algis. 1967. Aqui temos uma pose ginecológica, impactante, arrebatadora. Julie está completamente à vontade na frente de Alice. Julie está grávida, barriguda. A gravidez é a perspectiva, a transformação, como uma mãe celebridade já disse: a gravidez e o parto são grandes piadas de Deus para com as mães. A depressão pós parto aguarda Julie, no termo “ser mãe é padecer no paraíso”, ou seja, o nascimento de um filho seria para encher de alegria uma mãe, mas é ao contrário, deprimindo tal mãe. Julie é alva, de aparência virgem, remetendo a um anúncio de perfume de grife, o Opium, numa modelo nua branca se contorcendo na euforia da droga, num anúncio que causou muita polêmica quando lançado internacionalmente. A nudez é a entrega, como num filme com Amy Adams, no qual sua personagem se desnuda frente ao homem que ela ama, na entrega existencial, num momento de intimidade e entrega que nenhum, nenhum dinheiro compra – é de se ter pena de quem acha que pode vender Amor ou quem acha pode comprar Amor. Julie está com um semblante indeciso, sem poder ver muito adiante, com dificuldade para vislumbrar a Vida; vislumbrar o que acontecerá quando a criança nascer. Sua genitália é como uma entrada de igreja, com o útero imaculado interior, no qual só podemos entrar se purificarmo-nos com água benta, na divertida cena de O Advogado do Diabo, no qual o Diabo coloca o dedo na água benta e esta ferve! Em contraste, Algis está completamente vestido, para causar um impacto e, assim, realçar ainda mais a nudez de Julie. Algis está aprumado para sair de casa, talvez num advogado indo trabalhar; Algis está menos incerto do que Julie, e ambos olham para Alice, pacientes, dispostos a posar, num trabalho de paciência grande, remetendo à época em que a pintura era o único retrato possível, antes do advento da Fotografia. A colcha aqui é bem feminina, com estampas florais, na feminilidade, no poder da Mulher em trazer Vida ao Mundo, pois, sem as mulheres, neste mundo de homens, o Mundo não seria possível. O homem aqui está discreto e coadjuvante, e a grande estrela, o grande destaque, é Julie em seu poder de mulher de trazer Vida ao duro Mundo em que vivemos. Esta colcha parece sangrar, nas dores do sangramento mensal uterino, no divertido modo como amigas íntimas passam a menstruar no mesmo ritmo! Julie está aqui se espreguiçando, dobrando suavemente a perna, numa ginástica, num movimento, não sabendo se isto aborrecerá Alice. O homem está semioculto, retirado, quase anexado ao pano de fundo. Ele é magro e elegante. Seus sapatos são o momento de sair de casa, num cidadão que sabe que se vestir dentro de casa é diferente do que usar algo para sair de casa. Sua sisuda calça cinza contrasta com o escândalo estampado da colcha sangrando. A colcha é uma relva, uma floreira, um paraíso para insetos polinizadores, na força da Vida que ressuscita na Primavera, nos ciclos de estações ascendendo e descendendo, havendo no homem de Tao esta capacidade de observar a Vida deste modo, atemporal, nos ritmos cósmicos que fazem derreter os relógios de Dalí, num Universo cheio de ritmos, de percussões. A gravidez aqui está na fase final, e Julie está prestes a sentir as dores do parto, como na terrível historia da Princesa Isabel, encarando 48 horas de parto, num momento em que a mulher tem que ser mais forte do que qualquer homem, nos gritos de dor. Aqui é como a Vênus e o Marte de Botticelli – o Yin está desperto e pleno, escravizando o Yang, que está retirado e ausente. É um casal bonito, na beleza do Amor, no momento em que um entrega suas tristezas para o outro, num momento entre quatro paredes, numa pausa, num momento em que o Mundo todinho é deixado do lado de fora, com duas esferas – a social e a íntima. A barriga aqui parece estar prestes a estourar, como um balão inflado, na beleza de uma Angelina Jolie grávida, numa explosão de Vida, de abundância, tendo em Tao este útero que sempre gera, sempre cria, sempre deslumbra com sua impecabilidade.

 


Acima, Síntese de Nova York. 1933. Temos aqui uma urbe sombria, opaca, como na neblina londrina, cheia de dúvidas, de indefinições, na sedução das Brumas de Avalon, na Grande Deusa Mãe que foi substituída pela Virgem Maria. É divertido observar aqui que as pessoas têm rostos de caveira, mortas, aterrorizantes, no destino inevitável do Desencarne, este momento em que abandonamos um corpo que começa e se decompor, no verso da canção: “No fim, todos perdemos nosso charme”, na piada que é o envelhecimento. Aqui é como uma garoa paulistana, na cidade cinza dos negócios, muito longe da exuberância ensolarada do Rio de Janeiro, nos cariocas que, diz uma canção, odeiam de dias nublados, como numa ensolarada Los Angeles, no verso da canção: “Nunca chove na Califórnia”. Aqui é um cenário melancólico, e podemos ouvir os barulhos urbanos, como veículos passando, jogando sua pestilenta poluição, naquele cheio de poluição que um turista percebe em Nova York, uma cidade que, apesar de bela e artística, pode ser bem dura e cruel. Uma menininha aqui veste um vestido vermelho, quebrando um pouco com a sisudez cinzenta, remetendo à menininha de vermelho de A Lista de Schindler, mostrando tal criança morta, numa esteira de descarte que transforma seres humanos em fezes, numa pessoa que conheci, uma pessoa que simpatizava com Hitler – que pessoa equivocada. As pessoas aqui passam indiferentes, mortas, cadavéricas, como no Umbral, a terrível dimensão subterrânea de sofrimento, com espíritos se arrastando em um lugar escuro e fétido, como na toca de Laracna, o monstro de Tolkien, num sociopata armando suas ardilosas teias para capturar “moscas”, no modo como devemos construir um “faro” para detectar sociopatas. Na porção inferior do quadro vemos estação de metrô, fazendo a metáfora com o Umbral, na recomendação de que não devemos conversar com estranhos no metrô, como no episódio do seriado Seinfeld, no qual uma sociopata, disfarçada de mulher elegante e polida, acaba pregando um golpe no personagem George Costanza, o qual se enamorou ao ver a mulher no metrô. O metrô são os bastidores, o basckstage, ambiente no qual uma Xuxa pode trafegar sem ser assediada, num plano em que todos são profissionais que ali estão a serviço. O metrô é o trabalho enorme que existe em torno da realização de eventos grandes como a Festa da Uva caxiense. Aqui a fuligem corre solta, e tudo é assim, meio sujo, havendo nos garis estes heróis que mantém nossas calçadas impecáveis. Na porção superior esquerda, vemos uma Lua minguante ou crescente, que é a Esperança de uma cidade melhor, menos feia e menos suja, numa vida maravilhosa que nos espera após nossa “faculdade” aqui na Terra, na beleza de se observar a Lua, símbolo dos enamorados. Ao redor da Lua vemos duas manequins de vitrine nuas, aladas, na beleza, na liberdade, no Amor que tanto falta ao Mundo. São como anjos, num lugar limpo e iluminado, leve, no fascínio de lustres de cristal, na transparência dos grandes amigos, os quais nos conhecem com a palma da mão. Os ritmos naturais lunares buscam quebrar a monotonia cinzenta, trazendo a beleza do ciclo das estações climáticas, como na majestosa Primavera portoagrense, com suas calçadas cobertas por tapetes de flores roxas de jacarandás pela cidade, no modo como a Vida vai exigindo um pouco de contemplação, e não só sofrido labor – temos que contemplar o labor de outrem. Os veículos aqui vão passando indiferentes, insensíveis, no paradoxo depressivo, no qual, apesar da pessoa estar cercada de estranhos, esta se sente muito sozinha, numa pessoa vagando ao léu pelas ruas de uma cidade dura, dura como qualquer outro lugar, numa pessoa que, num estilo de vida solitário, começa a “tomar uma surra” da Vida, numa pessoa que acha que pode se esconder da Vida. Aqui temos uma nesguinha de Esperança, como num artista querendo fazer sucesso na sedutora Nova York, um lugar que pulsa tanto Arte quanto indiferença.

 

Referências bibliográficas:

 

Alice Neel. Disponível em: <www.en.wikipedia.org>. Acesso em: 24 mar. 2021.

Alice Neel: People Come First. Disponível em: <www.metmuseum.org/exhibitions>. Acesso em: 24 mar. 2021.

Works/Paintings. Disponível em: <www.aliceneel.com>. Acesso em: 24 mar. 2021.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Feliz Talento

 

 

Caxiense de 1964, Felix Bressan se formou em Artes pela UFRGS, é fã de Duchamp, produziu cenários e figurinos para Teatro, foi professor de Modelagem Industrial e criou o Prêmio Multicultural Estadão, em São Paulo. Uma das obras de FB foi capa de uma edição da revista Casa Vogue Brasil. Chic. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!

 


Acima, Espartilho. Coleção Gilberto Chateaubriand. Aqui é como um esqueleto, uma sobra, um vestígio, atraindo as aves carniceiras. É como uma estrutura de prédio, pronta para ser preenchida de carne a vísceras. É como um escritor concebendo uma trama, fazendo tal esqueleto e depois preenchendo com uma trama descrita. Estas formas remetem um pouco aos filmes de terror de Hellraiser, a entidade do Inferno, cheio de correntes e ganchos doloridos, numa pessoa vagando pelo Umbral, levando uma vida pior do que vida de mendigo, com espíritos bondosos que passam pelo Umbral, querendo salvar seus entes queridos, seus irmãos, estendendo a mão, exigindo que a pessoa seja humilde e aceite que precisa de uma ajudinha, na concepção da Caridade, a qual não é dar esmolas, mas dar um empurrãozinho para quem precisa, como no título de um centro espírita caxiense: “Fora da Caridade não há salvação”. Bressan leva a cabo a função do artista plástico, que é associar elementos dissociados e produzir coisas novas, conquistando o respeito das pessoas, neste grande desafio que é ir ao Mundo e procurar ser visto, amado e respeitado, como o homem de Tao, um líder excessivamente polido, um bruxo de uma tribo, um príncipe com P maiúsculo. Estas formas exóticas de Feliz remetem ao assustador e maravilhoso ser da franquia Alien, numa raça feroz, agressiva, espalhando terror por naves espaciais, alimentando-se vorazmente de seres humanos, com seu sangue ácido, feroz, como nos homens que entram num ringue para lutar, no fascínio que as competições exercem sobre o Ser Humano: dois homens entram; só um homem sai. Aqui é como um fóssil de dinossauro, numa era tão distante, com estes seres assustadores e maravilhosos, na comoção global de um filme sobre um parque com dinossauros recriados a partir de material genético de um mosquito pré histórico preso num âmbar, nas ficções científicas: poderemos algum dia recriar animais há muito extintos? Este alien é sedento, nos artistas sedentos por se realizar e ser considerados pessoas sérias e dignas de respeito, no desafio de uma pessoa que nunca se viu muito respeitada, tendo que partir em busca do preenchimento desta lacuna, como no homem de Tao, o qual trata o Mundo com todo o respeito, cumprimentando as pessoas na Rua, tratando de tratar todos com igualdade, desde de um presidente até um gari varrendo uma calçada. Aqui é como um bicho de vários braços, como num deus hindu, cheio de atributos, na questão de chamar Deus por “Vós”. É como uma flor carnívora, aprisionando ardilosamente um inseto desavisado, processando lentamente o seu lanche do dia, como no divertido filme dos anos 80, com gigantescas e famintas plantas carnívoras numa loja, nesta fome do artista em se realizar, encarando com seriedade e disciplina a lida necessária para se alcançar tais metas existenciais, na questão da pessoa se encontrar e se descobrir uma pessoa especial, muito amada pela Divina Providência, esta força governamental que, de tão poderosa, mal é percebida na Terra, tendo o homem de Tao um representante desta força sobrenatural, com hierarquias nunca impostas brutalmente, ao contrário do eterno modo humano em impor tudo da força mais cruel e violenta possível... Aqui é como um espartilho, na crueldade dos padrões de beleza, atingindo em cheio a autoestima da Mulher, com manequins numa vitrine, beirando a Anorexia, naquela magreza em que nota o relevo de costelas na parte superior do peito – que horror. Aqui é como um exame de raio x, com aparelhos detectando drogas ilícitas em aeroportos. É a capacidade de uma pessoa em observar o Mundo da forma mais realista possível, entendendo que o Mundo não muda; o que muda é o modo da pessoa de observar tal Mundo, num pensamento encorajador.

 


Acima, sem título (1). As vassouras são a limpeza, como numa pessoa muito limpa, que varre a casa diariamente, nos rituais de limpeza que buscam fazer com que nos aproximemos da impecável limpeza metafísica, a dimensão onde não há uma só felpa de pó, num lugar onde estamos sempre limpos e perfumados. Podemos ouvir o som das vassouras passando, na árdua vida de gari, “enxugando gelo”, num trabalho que nunca cessa. As cerdas das vassouras são louras, no desejo de tantas morenas em ser louras, como numa Evita, querendo se parecer com uma mulher europeia. É como um comercial de escova dental, com aqueles dentes perfeitos e maravilhosos, ultrassaudáveis, muito longe das imperfeições do Plano Material, com cáries, placa bacteriana, tratamentos de canal, escurecimento do dente etc., na eterna mentira publicitária de que um produto mero resolverá todos os nossos problemas – como é duro ser ético! Aqui é como a escravidão de uma dona de casa, doando-se ao máximo para manter uma casa limpa e organizada, num trabalho que não é reconhecido. Aqui temos uma metalinguagem, pois é trabalho falando de trabalho – o trabalho da dona de casa e o trabalho do artista plástico. Aqui é como uma dama arrastando seu vestido por um pomposo baile, num momento de interação social no qual tentamos entender a rica agenda social metafísica, com bailes maravilhosos e pessoas depuradas, civilizadas e bondosas. Estas cerdas são como o enigmático cãozinho de Cebolinha, um bicho no qual não podemos dizer onde é o focinho e onde é o rabo, como ficamos quando confrontamos Tao, o enigma eterno – enfrente a frente e não verá rosto; enfrente a traseira e não verá traseira, pois o Cebolinha sobre o qual podemos falar não é o verdadeiro Cebolinha... E existe algo mais poderoso do que algo que sempre ficará em maravilhoso e instigante mistério? Vemos aqui arcos, como numa pessoa numa posição social vulnerável, pobre, como uma faxineira, passando os dias de sua vida limpando as casas de outrem, no modo como a Vida pode ser tão dura. Nesta estrutura de Felix Bressan, vemos arcos, como arcos romanos, na forma geométrica da humildade, sempre se curvando, nunca sendo insuportavelmente arrogante, como no esplêndido Papa Francisco, um homem que passa longe da arrogância, num grande líder clemente, que trata todos como seus irmãos – não é sempre que nos deparamos com homens de tamanha humildade. Estes arcos são a flexibilidade, numa pessoa que vai se adaptando, acostumando-se, como água escorrendo até o ponto mais baixo, na esperteza de sobrevivência de um camaleão, sempre discreto, sempre vindo imperceptivelmente para atacar um gafanhoto como lanche, e Tao é assim, invisível, imperceptível, como se soubesse que há perigo em exposições desnecessárias, atendo-se limpamente ao que é realmente necessário e vital, rechaçando sujas desnecessidades, como numa pessoa preguiçosa, que só faz o essencial. Aqui é como uma faxineira varrendo o chão de um supermercado, sempre ignorada pelos clientes – o que custa cumprimentar esta faxineira? A limpeza das vassouras é o critério, a exigência, como numa Elis Regina, altamente exigente na hora de selecionar repertório, numa pessoa que não se contenta com coisas simplórias ou medíocres. Estes cabos curvos são como se derretidos por um dia escaldante, em dias cariocas tão tórridos que os ovos cozinham sem ir ao forno! São os relógios derretidos de Dalí, no tempo se distorcendo entre dimensões, mostrando insignificantes, em termos cósmicos, as medidas humanas de Tempo, pois no Universo não há ontem, hoje ou amanhã. As vassouras são como um séquito de aias, rondando uma princesa, nas tentativas humanas em ver nas dinastias mundanas uma amostra ínfima da glória metafísica que nos aguarda, numa dimensão onde nos sentimos absolutamente especiais, num Pai que nunca faz diferença entre os filhos. O toque das vassouras é aveludado e macio, no modo como é sempre melhor optar pelo tato delicado diplomático, numa sala de negociações, havendo nas guerras o rompimento de tal polidez cavalheiresca – Tao nada tem a ver com conflitos.

 


Acima, sem título (2). Um emaranhado, uma confusão, assim como o caos que vem quando Tao é perdido, numa perda de relações diplomáticas, de casa de diálogo. É como uma explosão de lombrigas, conspirando contra a saúde de um organismo. É como no momento de uma explosão, numa granada, no modo como todo artista quer ser tal granada, tal estrela, tal supernova explodindo e deslumbrando o Mundo, como na revelação de uma Gisele, a top mais bem sucedida de toda a História, mas uma pessoa que não soube deslanchar como atriz – cada um com sua cruz. Aqui é como uma discussão acalorada, num debate político, no qual pode rolar baixaria e falta de respeito, como num Collor dizendo-se socialmente abaixo de Lula, buscando atacar este. Esta galeria, este espaço, é um beco, um corredor, uma passagem, na complicada função de se preencher um ambiente, na busca por tal expressão, por tal brilho, numa pessoa que prova ao Mundo ter talento, esta palavrinha mágica tão abstrata, num dom que simplesmente nasce com a pessoa – nenhum livro ou faculdade ensina como brilhar, infelizmente. Aqui são como teias de aranha preenchendo um espaço, na minha memória de Infância, com a empregada com uma vassoura de longo cabo, tirando as teias de alturas inalcançáveis aos braços uma pessoa. Aqui é um organismo complexo, num computador que só pode ser mexido por experts. É como o labirinto interior de um formigueiro. É como algo que foi, aos poucos, conquistando seu espaço, como hera, alastrando-se silenciosa e lentamente, sempre imperceptível, sempre subestimada, pegando todos de surpresa, como a Estrela Vespertina, anunciando um novo momento, no modo como os subestimados acabam sempre surpreendendo, como num Jô Soares, uma pessoa que se revelou um monstro entrevistador, algo que ninguém antes previra, nessas guinadas, nessas viradas de mesa, num Ronald Reagan, que de ator medíocre foi a monstro político, sendo uma das caras dos anos 1980. Aqui é uma farra, uma festa acontecendo, como uma festa proibida em tempos de pandemia, dando aquele gostinho de subversão aos participantes, como num fruto proibido, um fruto tão belo e doce. Aqui é como uma pessoa perdida, estilhaçada, em frangalhos por dentro, num processo de empobrecimento existencial, de derrocada, como numa Britney Spears, enfrentando um surto psicótico seguido de um tombo na carreira, numa Vida que exige que a pessoa tenha uma força enorme para devolver a si a estabilidade. Esta obra exige fisicamente do espectador, pois este tem que saber passear por este emaranhado de múltiplas opiniões, nesta confusão. É algo interativo, como nas geniais instalações digitais da artista plástica Diana Domingues, uma artista e curadora de uma imponência enorme, marcante. Aqui é como uma explosão de bomba, desconstruindo um organismo, analisando-o. Aqui é um complexo de direções, num adolescente que, ainda muito jovem e imaturo, tem que fazer a escolha de sua Vida, optando por algum curso universitário – ter dúvidas é humano, cair é humano e reerguer-se é humano. Aqui é este trabalho de reconstrução, paciente, na canção cantada por Simone: “Começar de novo. Vai valer a pena ter amanhecido”. Como um aluno que repete de ano e tem que encarar tudo de novo, numa experiência dura, exigente, quase humilhante. Aqui é como um emaranhado de fios de cabelo, caóticos, pedindo por um pente ou uma escova. Como em alguma parte da casa que há muito não é limpa, na acumulação de ressentimentos e dores, esta acumulação que é tão tóxica como reter sujeira para si. Aqui é um feliz momento de criatividade, como num artista que resolve dar uma guinada na carreira, fazendo coisas as quais as pessoa jamais esperariam de tal artista, fazendo de Tao este vazio sensual, este vazio tão útil e tão subestimado. Aqui é como uma casa cheia, com filhos, netos e visitas, na capacidade de um anfitrião em bem receber, num ato de generosidade.

 


Acima, sem título (3). Coleção Justo Werlang. Uma divertida obra, estranha, maravilhosa, fruto de uma imaginação tão feliz. Aqui temos uma “labirintite”, pois não sabemos onde é o Norte, no talento de um artista em associar objetos e produzir algo tão novo e inusitado, abrindo os olhos do Mundo para a perspectiva artística, no termo de uma canção de Carly Simon: “Deixe os sonhadores acordar a nação”. É uma obra leve, sem sedimentação, sustentada por um fio discreto, dando a impressão de que tal peso é sutilmente sustentado por uma das rodas de bicicleta. A cadeira é a sedimentação, o acomodamento, numa pessoa que decidiu ter disciplina, sentar e produzir, organizando sua própria Vida, como se soubesse que o caos ocioso nada produz de bom. As cadeiras remetem a um tradicional restaurante do Mercado Público de Porto Alegre, como uma cadeira antiga do estabelecimento pendurada na parede, como se desafiando a Lei da Gravidade, nesta distorção que mexe com a cabeça do espectador, estabelecendo esta conexão entre duas mentes – quem faz e quem assiste. As rodas são a locomoção, o movimento, nos ciclos da Vida, como numa roda gigante, desafiando quem tem medo de altura. As rodas são a natureza cíclica das estações do ano, este baile como em cidades de clima temperado, com verões tórridos e invernos gélidos, numa espécie de bipolaridade climática. A Roda é uma das maiores invenções da Humanidade, deslizando, servindo para quem tem a preguiça de carregar coisas nas costas, fazendo da Preguiça a mãe de tantas maravilhosas invenções. A roda é a placidez deslizando, suavemente, nas ambições de se construir um carro que nada de barulho faça ao funcionar, como na imbatível suavidade dos transportes metafísicos, deslizando pelo ar tais quais gaivotas plainando, na sensação de liberdade do espírito desencarnado, abraçando novamente a plena e maravilhosa vida metafísica, esta vida em que temos a certeza de que somos príncipes filhos do mesmo Rei, na infinita família metafísica, fazendo com que as dinastias mundanas sejam só cópias, promessas de um amanhã bem melhor. Aqui é como um motoqueiro exibido, showman, fazendo manobras para chamar a atenção, numa carência, numa pessoa que pouco, de fato, tem a mostrar. Que bela invenção a bicicleta! As cadeiras são o descanso, as férias, a aposentadoria, a pausa, no fato de que ninguém, nem os idosos, devem parar de produzir, pois a dignidade não existe no ócio. A roda é o caminho da Vida, numa estrada sendo percorrida, solitária, no modo como cada um tem que saber conviver consigo mesmo. E como posso ter Paz se não me gosto nem me curto? Aí entra a importância da autoestima. Aqui é uma bicicleta estranha, maravilhosa, alienígena, como nas estranhas gravações sonoras do vento de Marte, fazendo da Terra um lugar tão único e farto em Vida. As cadeiras são um artista sentado, pensando no que vai fazer, como num cantor, selecionando repertório e entrando em estúdio para gravar, pensando no visual da próxima turnê de shows, num eterno recomeço, tendo a força para virar as páginas e abraçar uma nova página em branco, no caminho da Humildade, de quem sabe de que a Perfeição não é alcançável, ao menos por enquanto. Aqui é como se fosse a fotografia de um acidente de carro, remetendo-me ao terrível acidente rodoviário que sofri com minha família, num momento em que tudo, de modo repentino, muda na vida de alguém, num grande susto. As rodas são como relógios, como em civilizações antigas fazendo relógios de Sol, na eterna tentativa humana em medir o Tempo e trazer um pouco de ordem ao caos atemporal. As rodas giram como galáxias, como água indo ralo abaixo, como mecanismos tão complexos, tão além da compreensão humana. A roda girando é um mecanismo funcionando, como numa empresa harmônica, na qual todos trabalham felizes, compenetrados em suas próprias funções específicas, como num ecossistema. Como é feliz o artista que traz o novo, a novidade, o frescor, o inusitado. Como são felizes as mãos transformadoras.

 


Acima, sem título (4). Acervo do Museu de Arte de Brasília. Um carrinho de supermercado ou uma cadeira de rodas. As rodas são a fluidez, o líquido, como numa energia fluindo, na capacidade de certas pessoas em produzir tal aura, tal it, tal charme. Bressan gosta de estruturas nuas, esqueletos, como numa radiografia, atendo-se ao que é estritamente necessário e importante, como é Tao, limpo em sua ação minimalista – quando você precisa tomar ação, faça só o que é necessário. Aqui é como um sisudo e rígido quadriculado subvertido em aquosidade, como a distorção gráfica de azulejos debaixo da água, numa piscina, no modo como a Água é esta coisa engraçada, divertida, agradável, incolor como Tao, o invisível que, subestimado, pode agir, como uma pessoa que evita exposições desnecessárias na Mídia, sendo o oposto do exposto, do narcisista que ama se ver – a Arrogância é insuportável, como um cafezinho queimado, horrivelmente intragável. Aqui são como curvas de uma modelo, como no frasco do perfume de Shakira, imitando as curvas do corpo latinoamericano da diva pop, uma artista que foi galgando seu caminho lenta e humildemente: iniciou na Colômbia, foi para a América Latina e depois, num terceiro momento, para o Mundo, no modo como a Vida exige que trabalhemos e sejamos produtivos, sem esperança para os desocupados. Aqui é um corpo maleável, manipulável, como divertida massinha de modelar, despertando a imaginação da Criança, inspirando a vocação de artista plástico, com mãos transformadoras. Aqui é como um robô pós moderno, avançadíssimo, digno de Ficção Científica, como no delgado andróide C3PO, numa inteligência artificial, num mordomo eletrônico, nos privilégios de se ter uma faxineira para limpar o apartamento ou a casa. Aqui vemos divisões, como em fases, em dias ordenados, na capacidade de uma pessoa disciplinada em regrar seu dia, exigindo de sua própria mente, numa fase de cada vez, na sabedoria de uma pessoa de que nem o Universo foi feito em um só dia, tendo Ele descansado no sétimo dia, como no workaholic imigrante italiano no RS, um colono que só não trabalhava nos domingos porque o padre e a religião não permitiam, fazendo do Domingo este lerdo dia interminável de indolência, no modo como Trabalho pode ser vicioso se mal dosado. Aqui são como próteses ósseas, na tentativa humana em imitar o inimitável, que é Tao, o Grande Engenheiro, pois o que Ele faz, o Ser Humano arremeda grotescamente, mesmo em plenos dias de plenitude digital. Aqui é como uma cadeira, uma poltrona esquelética, empenhada, com suas curvas, em acolher a pessoa que senta, num merecido descanso depois de um trabalho árduo de esforço e dedicação, no termo happy hour, ou seja, a hora feliz; a hora do descanso depois do labor, com gravatas afrouxadas, no merecido descanso metafísico após uma encarnação tão dura e exigente, no modo como nomes de clubes como “Juvenil” ou “Recreio da Juventude” fazem forte metáfora com o Plano Metafísico, em que somos todos jovens, belos, divertidos e produtivos – a luta não para, ou seja, nunca se aposente completamente. Aqui é como uma cobra da água, prendendo a respiração em busca de comida na água, no modo como tantas civilizações associavam a serpente à fertilidade e à sensualidade, muito longe do mito do Éden, colocando a serpente como a malícia, trazendo o Pomo da Discórdia, nesse misógino mito que coloca a Mulher como a raiz de todos os males, havendo no mito de Nossa Senhora o modo como o Mundo impede que a Mulher seja feliz sexualmente, num ícone feminista como Madonna, uma mulher que paga o (alto) preço por ser uma mulher num mundo de homens. Aqui é como um prédio abalado num terremoto, desse desejo do artista em ser uma “força da Natureza”, sendo o “olho do furacão”, fazendo da Arte este instrumento de transformação social, abrindo os olhos do Mundo, inspirando-nos a ser mais modernos e não tão integralmente patriarcais.

 


Acima, sem título (5). Série O Corpo Ausente. O fascínio da forma feminina, com tantos transexuais que passam por um doloroso processo de transição para ter corpo aparentemente de mulher. Aqui é como uma armadura, blindada, numa Joana D’Arc guerreira, ou numa Elizabeth I no campo de guerra, na famosa vitória inglesa sobre a Invencível Armada Espanhola. É a armadura da Mulher Maravilha, forte e blindada como um carroforte, combinando Beleza e Feminilidade com superforça, numa dosagem entre Yin e Yang. Aqui é como um modelo, como roupas feitas sob medida para uma mulher, em épocas em que lojas de roupas não existiam. Abaixo deste tronco feminino de estruturas que parecem ser rodas, temos uma talentosa modelo desfilando e deslizando na passarela, num caminhar digno de deusa, como numa Naomi Campbell, no mistério de um sino tocando no campo na fluidez do Tempo. É a “vitória” do Feminino sobre o Masculino, como num Marte de Botticelli entorpecido em frente a uma lúcida Vênus, no termo da marca feminina Victoria’s Secret, o segredo de tal vitória de uma stripper enfeitiçando o homem espectador, fazendo este “babar”. Vemos aqui este arame de linhas delgadas, na fineza de um anfitrião tão polido, que faz com que nos sintamos numa maravilhosa sala metafísica, cheia de espíritos belos e elegantes, na vitória do fino sobre o grosso, indo na contramão do brutal e tosco método humano, o qual impõe as coisas à força, numa hierarquia terrível, muito longe da irresistível hierarquia espiritual, a qual se impõe suavemente, sempre deixando brechas de liberdade ao espírito moralmente inferior. Aqui são como linhas de costureira, bordando os destinos do Ser Humano, com vidas passando umas pelas outras, com lições de suma importância existencial, na perfeição das teias da Divina Providência, este forma de governo tão poderosa que mal é percebida na Terra, havendo no homem sábio de Tao um representante de carne e osso de tal poder metafísico, num príncipe digno de respeito, deixando de ser um príncipe apenas na teoria, como feiticeiros numa tribo, os brujos, cuja energia nos deixa perplexos. Aqui é como a estrutura de um vestido antigo, como na França do Rei Sol, numa nobreza indolente e frívola, aprisionada dentro de suas bolhas de privilégio enquanto o povo se revoltava com o preço do pão, pois o líder que mal se importa com o próprio Povo deixa de ser líder. Aqui é como um prédio “oco”, pronto para ser habitado, no paciente trabalho incorporador, construindo por anos um empreendimento imobiliário, numa cidade que vai sendo moldada, como numa Nova York, a qual, no passado, era uma mera cidade para, depois, ser a Capital do Mundo, com seus museus primorosos, pulsando Arte e sensibilidade, na sofisticação da ilha de Manhattan. Esta mulher aqui é dura, impenetrável, e exige que a observemos de longe, sendo arisca ao toque. É oca como um ovo de Páscoa, sendo aberto por uma criança ávida, hipnotizada pelas cores e pelos sabores de um ninho de chocolates, na magia de um Domingo de Páscoa, procurando pela casa o ninho escondido pelo coelho, com dias felizes de Infância, na promessa de dias metafísicos, nos quais nos aceitamos integralmente, numa autoestima suprema, longe das dúbias cores cinzentas da Encarnação. Vemos aqui algo como um espartilho, com suas rigorosas fitas apertadas, numa vida disciplinada, em que a pessoa sabe se organizar, sabendo que o Ócio é oficina do Diabo, no desperdício de uma pessoa talentosa que não produz, um desperdício como jogar fora pelo ralo um espumante de quinhentos reais, como uma certa atriz de TV e Cinema, a qual, até hoje, não tem as pelotas para pisar num palco, pois um ator deve explorar todos os meios de expressão. Imaginamos o trabalho de Bressan em levar todas essas obras para ser fotografadas num estúdio, num artista que foi conquistando o seu espaço. Aqui é como um papel pronto para ser assumido por um ator, preenchendo o personagem e desaparecendo perante este, pois ator bom é este ator invisível, que some perante o texto, esvaziando-se de vaidades e narcisismos, rechaçando bajulações auspiciosas, como se soubesse que estas podem corromper um caráter.

 

Referências bibliográficas:

 

BRESSAN, Felix. Visão Geral. Disponível em: <www.felixbressan.blogspot.com.br>. Acesso em: 14 mar. 2021.

Felix Bressan. Disponível em: <www.escritoriodearte.com>. Acesso em: 14 mar. 2021.