quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Sendo Feliz (Parte 2)



Volto a falar sobre o pintor suíço Félix Vallotton. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, No Mercado. 1887. Uma cena um tanto parisiense, pitoresca, nos pequenos prazeres franceses, como numa feira de frutas e cafeterias, no prazer de sentar, beber um café e olhar o movimento, em momentos de Paz, nos quais esquecemos do fato do Mundo estar sempre em pé de Guerra, havendo no papo diplomático a promessa de um Mundo melhor, superior, metafísico, onde só há gente boa. É um quadro de identidade feminina, só com mulheres e uma menininha, inclusive mulheres belas, arrumadas, com autoestima, numa pessoa que vê prazer no arrumar-se, só saindo de caso se estiver com uma aparência muito boa, quiçá mulheres deixando pelo ar um fino perfume francês. Bem, só que vemos mulheres aqui mais arrumadas, outras menos... As mais arrumadas têm elegantes chapéus, no modo como Paris pulsa em novidade, em novas modas, numa cidade que, já ouvi dizer, é maravilhosa e, também já ouvi dizer, é uma cidade provinciana, pois o Provincianismo é universal na Humanidade. As frutas e verduras são coloridas e frescas, no prazer de se fazer feira, como na atrapalhada Bridget Jones, a qual faz feira e tenta cozinhar para os amigos, mas cozinheiro de primeira viagem comete lá seus erros, no fato como o Ser Humano foi feito para errar, como num grande tenista, o qual, por mais glorioso que seja, comete lá seus erros na quadra. Podemos ouvir o som de Rua, com carros passando e pessoas conversando, no modo vibrante de Paris, com mulheres exuberantes, no nervo do Mundo Ocidental, com museus absolutamente supremos. Aqui, é uma cena corriqueira, com as demandas do dia sendo cumpridas, num momento de rotina. Algumas mulheres aqui se vestem com roupas pretas, na discrição fúnebre do preto, na cor do Umbral, o lugar no qual só vagam pobres coitados bagaceiros e vulgares, num ambiente grosseiro, em que qualquer intenção fina e polida desaparece, no modo como, na Terra, as pessoas más e as pessoas boas estão misturadas, sendo necessário um exercício de discernimento, como separar o joio do trigo. Podemos ouvir o som dos sapatos caminhando, no eterno fascínio que os sapatos exercem sobre as mulheres, como numa mulher num shopping, entrando numa loja de calçados e experimentando vários modelos, num momento de lazer, em que a mulher está como uma índia fazendo o trabalho de coleta numa floresta, na universalidade do Feminino, pois as diferenças culturais são superficiais, havendo uma indiscutível Universalidade. O chão é cinzento, discreto, incerto, na dúvida cinzenta que acomete nossos dias na Terra: Será que há Céu? Será que há Inferno? O cinza é uma cor que exige Fé, pois não há garantias científicas sobre o pós-morte, pois Tao está acima de qualquer intenção humana definidora, como na frase que abre o livro oracular: “O Tao sobre o qual é possível falar não é o Tao de verdade”. E isto é a Eternidade, pois passaremos por esta, inteira, tentando definir Tao, e jamais obteremos sucesso com essa tentativa! Duas mulheres aqui parecem conversar, talvez fofocando, talvez falando sobre a qualidade dos produtos, numa identidade muito feminina, como mulheres estranhas em um supermercado, pois, apesar de estranhas, podem trocar algumas ideias sobre as frutas e verduras que estão à venda. Em algumas mulheres vemos motivos florais, como numa lembrança que tenho quando visitei o gabinete da então deputada estadual gaúcha Maria do Carmo, com uma mesa cheia de flores ofertadas à deputada, a qual, de certa forma, é extremamente feminina, apesar de masculinamente firme em algumas questões, no modo como cada pessoa tem que partir em busca, dentro de si, de seu próprio oposto – se tenho Sensibilidade, e isso é natural em mim, devo partir em busca de Agressividade, como numa guerra mercadológica entre dois laboratório de análises clínicas.


Acima, La Blanche et la Noire. 1913. A linda jovem está entorpecida, profundamente imersa num sono, alheia a tudo ao seu redor, no modo como todos morremos e renascemos todos os dias. Esta mulher é uma Vênus de linda, e seu corpo é de uma perfeição digna de uma Garota de Ipanema. Seus seios caem sutilmente cada um para um lado, num busto natural, sem a berrante artificialidade dos bustos siliconados, numa sociedade misógina, que impõe padrões de beleza os quais agridem a mulher, como no terrível pós-operatório da cirurgia plástica de inserção de próteses mamárias, como em rostos botocados, os quase perdem a naturalidade. Esta Vênus nua está saudável, com bochechas rosadas, como na embalagem da aveia Oetker, com o patriarca protestante com maçãs do rosto saudáveis. O lençol é branco, da cor da pureza e da Paz, no modo como a moça está num tranquilo sono infantil, sem qualquer pesadelo, sem qualquer aresta dolorosa, na profunda paz de um bebezinho dormindo. Este lençol é como o majestoso manto de Maria na Pietà de Michelangelo, como num vale exuberante, povoado por árvores que vestem roupas maravilhosas, inacreditavelmente ricas. Este corpo é natural, numa nudez que não agride nem choca, mas fascina. Ao lado da moça dormente, uma mulher negra, talvez uma aia, ou uma escrava. A negra é a vigília, como na Vênus de Botticelli observando um Marte dormente. A negra fuma silenciosamente, nos pequenos prazeres da Vida, como uma taça de vinho acompanhada por um bom prato de comida, nas demandas materiais, com pessoas preocupadas com o que reserva o amanhã, como disse Dercy Gonçalves: “Ninguém morre de fome. Ninguém vai negar a você um prato de comida”. A negra está acorrentada ao duro dia a dia da senzala, num continente africano destruído pelas levas e levas de negros arrancados de suas vidas, na crueldade em nome da ambição materialista do homem branco, no eterno talento humano para a estupidez, desculpe meu desabafo, pois não são saudáveis os desabafos? A parede é de um verde esmeralda, como num mar em algum dia, com águas claras. A cor da parede entra em harmonia com as vestes azuis da escrava, a qual não pode se dar ao luxo de descansar, numa impiedosa rotina de labor. É a veste de Iemanjá, no modo como o escravo, numa tentativa de resistência, formulou toda uma cultura afrobrasileira, marcando para sempre a cultura do Brasil, uma nação negra, mulata, mestiça. A negra fuma tranquilamente, com calma, como se soubesse que de nada adianta se afobar ou se precipitar. É o modo como a pessoa pacata vive seus dias com calma, na metáfora do Super-Homem, vivido pelo discreto e pacato Clark Kent – seja uma pessoa pacata e serás um gigante, ou seja, viva seus dias com simplicidade, pois o que é simples coloca nossos pés no chão. A negra usa um lenço laranja, da cor de uma majestosa aurora. E a negra também usa joia rubras, da cor da brasa, com a cruel execução de protestantes hereges no terrível reinado de Mary Tudor – pode deixar, pois o Ser Humano se encarrega de ser o mais cruel e estúpido possível, no modo como Tao só inventa a Paz, sendo a Guerra um capricho humano. A negra está zelosa, e não pode se dar ao luxo de dividir a cama com a ama. A negra é a pessoa que sente na carne o racismo, numa pessoa que optou por encarnar negra e pobre para, nesse contexto de vulnerabilidade social, evoluir como espírito e mortificar ilusões, pois quanto mais mortificado estou, menos os sinais auspiciosos vão me iludir ou enganar. A negra está num breve momento de pausa, de folga, não tendo algo específico para fazer, como em padres ou freiras de algum colégio, dando graças a Deus pelas férias terem chegado! Aqui, entre a branca e a negra, existe um abismo social, como no Brasil, com luxuosos condomínios tendo vista para favelas, neste duro mundo de desigualdades, pois, na dimensão metafísica, não há classes sociais, pois a hierarquia de lá funciona conforme a superioridade moral do espírito. Aqui, temos o dia e a noite.


Acima, Autorretrato. 1923. Aqui, Vallotton olha para o Mundo, e olha de um modo um tanto desacreditado, pessimista, talvez lamentando pelo Mundo ser um lugar tão duro e cruel. Metade de sua face está envolta em sombras, como no lado negro da Lua, numa face que nunca é revelada ao Ser Humano, nos mistérios do Universo que nos cerca – qual será o plano de Tao para conosco, neste Universo tão vasto e enigmático? O artista se aprumou devidamente para o momento de autoimagem, fazendo a barba e penteando os cabelos, num cavalheiro pronto para um momento de interação social, num momento em que buscamos respeitar nosso cocidadão, nosso irmão. Aqui, as costas do quadro são mostradas, na feiúra daquilo que é necessário, porém não belo propriamente. Os percevejos são aparentes, numa espécie de backstage, nos bastidores de um palco, onde o artista não é assediado, mas visto como um colega de trabalho, como numa Xuxa nos bastidores, nunca assediada pelas pessoas que trabalham em tal backstage. Aqui, Vallotton está devidamente vestido e aprumado, numa pessoa que passou por um ritual de aprumação, como numa pessoa com autoestima, uma pessoa que se arruma antes de sair de casa, vendo como sagrado o momento de interação social. A gravata é o siso, a disciplina, quase uma forca para o pescoço, na obrigatoriedade de certas formalidades, como num paraninfo numa formatura, com tal professor comprando sapatos novos para a solenidade. A gravata é o garbo civilizatório, num momento sem grandes descontrações, piadas ou informalidades, como na tensão entre os indicados ao Oscar, no tenso momento em que o famoso envelope é aberto e o vencedor é proclamado. Aqui, temos um senhor que, já maduro, testemunhou os horrores da I Guerra Mundial, no modo como são lamentáveis as brigas e guerras. E a expressão seríssima de Vallotton nos traz o fato de que, infelizmente, o Ser Humano, enquanto encarnado na Terra, jamais deixará de ser aguerrido, só havendo inabalável Paz na Dimensão Metafísica, a vizinhança sagrada onde não há algo a ser ambicionado, pois se não estou o tempo todo querendo mais e mais, posso ter Paz. Aqui, temos um homem no limiar entre Idade Adulta e Velhice, num senhor que morreria apenas dois anos após pintar esta obra. Aqui, Esperança e Amargura travam uma luta no pensamento deste homem, parecendo um homem que, apesar de morrer bem antes da II Guerra Mundial, já previa tal horrendo conflito, pois qual conflito não é horrendo? Atrás do artista, uma porta fechada, uma mortificação, como uma ilusão que foi revelada e decomposta, fazendo com que ouçamos o violento bater da porta, como explosões de bomba, numa mortificação, numa desilusão, numa pessoa que entende que os problemas do Mundo nunca acabarão, só havendo Liberdade de fato no Desencarne. A pálida luz entra no atelier, e não é um intenso e feliz raio de Sol tropical, mas um Sol fraco, suave, como se estivesse lutando para brilhar através de uma camada grossa de nuvens, no modo como a Encarnação é essa obstrução, numa Vida que nunca nos permite que enxerguemos com perfeita nitidez, só havendo certeza naquilo que não corresponde ao Físico, ao mundano. Seu terno escuro é sisudo, talvez ainda em luto pela I Grande Guerra, como se entes queridos de Vallotton tivessem caído em combate, com levas e mais levas de jovens rapazes sendo assassinados, tudo em nome das ambições humanas, pois como pode ser feliz um rei que não está satisfeito com o próprio reino? Certamente, não temos aqui um quadro colorido ou vibrante, mas um cenário cinzento, incerto, no modo como um artista tenta, com grande esforço, saber qual é no Mundo o lugar desse mesmo artista. As costas da tela retratada ameaçam entrar no quadro e obstruir tudo, como se estivessem competindo com o artista. É como se a tela estivesse caindo, num acidente, como numa vida desabando, empobrecendo-se, numa pessoa que notou que é necessário um longo e árduo serviço de reconstrução existencial, pois, como me disse uma médium, sem vontade não há como.


Acima, O Presunto. 1918. Temos aqui algo morto, como numa decepção, numa mortificação, numa desilusão, numa pessoa que teve sonhos frustrados. É o nojo que os veganos têm em relação a alimentos de origem animal; é como os veganos protestam contra produtos que foram testados em animais, num posicionamento mais político do que alimentar. O presunto aqui é subestimado, pois tem uma aparência feia. Porém, ao comermos, sentimos prazer em um bom pedaço de presunto, como na paixão obsessiva do personagem Chaves por sanduíches de presunto, na inevitável crueldade dos abatedouros, executando brutalmente um animal para servir em mesas de restaurantes finos, dando-nos a impressão de que, em tal ambiente fino, não houve sofrimento na mortificação do animal. Um papel branco envolvia e protegia o pedaço de carne, e o gosto salgadinho de um salame conquista do gosto de quem aprecia a cozinha colonial italiana. Este presunto tem a forma de um coração, como se fosse uma mortificação de sentimentos, talvez numa pessoa que, em seu próprio progresso espiritual, viu-se muito enganada e traída pelo próprio coração, resolvendo mortificar este, passando a consultar mais a mente do que o coração, pois tudo perece onde não há perspectiva racional. Podemos ouvir o coração batendo, no mistério da Vida que pulsa, como numa frenética bateria de escola de Samba, herdando da África o sabor brasileiro dos tambores tupiniquins. O presunto aqui parece fresquinho, pronto para ser lasqueado por um cozinheiro que quer, talvez, fazer um macarrão ao molho de salame. Algumas partes deste presunto são amarelas, douradas, na cor do metal dos campeões, como na agressividade carnívora do leão, o rei da floresta, nas necessidades da Vida Material, com presas sendo devoradas para satisfazer um estômago de carne e osso, nas demandas materiais do dia a dia, algo distante do Metafísico, sendo esta a dimensão onde as necessidades materiais desaparecem, fazendo com que o desencarnado abrace uma vida mais simples, na plenitude da falta de fadiga ou cansaço, no espírito desencarnado que se vê livre de necessidades como comer ou dormir – é a Glória. Podemos ouvir o som do papel sendo desembrulhado, e vem à tona o odor da carne de porco, uma carne saborosa e salgadinha, no modo como um cardiopata sofre ao ser tolhido pelo médico em relação a alimentos salgados, pois, como diz a personagem Gema de José Clemente Pozenato, comer é a melhor coisa do Mundo, num bom salame – uma colona da gema. Aqui, temos um tanto de Frankestein, com partes de um organismo sendo dissociadas, num trabalho de desmantelamento, assim como a cidade construída pelo herege faraó Aquenaton foi desmontada depois da morte do rei transgressor, dito como o primeiro indivíduo da História. Aqui, é a força que move a fome de um carnívoro, com felinos africanos tendo que se esforçar para garantir uma refeição, nas vicissitudes da Vida, do dia a dia, no termo “matar um leão por dia”, pois, como diz o Hino Nacional Brasileiro, verás que filho teu não foge à luta, sendo necessário que a pessoa tenha uma alma de guerreiro, partindo em busca de conquistas e realizações, pois é sempre uma luta concretizar um sonho. Aqui, o presunto é revelado, desvelado, descoberto, como nas naus portuguesas descobrindo o selvagem Brasil, na euforia renascentista dos descobrimentos, com terras devolutas sendo competidas pelas principais potências europeias de então, no eterno jogo competitivo entre reinos rivais, no imortal talento humano para a Guerra, em guerras movidas por caprichos, por ambições de reis insatisfeitos. Aqui, este “coração” parece bater sozinho, mesmo que dissociado do organismo original, no milagre da Vida que perdura após o Desencarne, no milagre da Ressurreição de Cristo, rechaçando a mundana matéria e abraçando uma Vida mais desapegada, mais simples, mais limpa e perfumada – é a gloriosa libertação de quem renuncia ao mundano.


Acima, A Mentira. 1898. Temos aqui uma cena muito acalorada, quente, intensa. Os enamorados estão em pleno momento de amor, de envolvimento, com duas almas que se amam profundamente. O vestido da mulher é bem vermelho, sangue, como no majestoso manto rubro em Drácula da Bram Stoker. É a cor da Vida, como tenho uma lembrança de uma feiticeira em Porto Alegre, uma mulher de uma beleza arrebatadora, vestindo um traje vermelho, na beleza da juventude eterna, com uma linda hera brotando poeticamente. Aqui, os enamorados se envolvem e formam um corpo só, numa dança de envolvimento, na intimidade entre duas pessoas que, acima de tudo, amam-se, tendo em suas vidas um quente momento de compreensão e envolvimento, pois o que vale não é a quantidade de Tempo, mas a qualidade, pois, convenhamos, o Desencarne vem a todos, havendo nos enamorados um momento mágico existencial, na beleza que é se entregar nos braços do outro, numa entrega cheia de emoção e desabafo, numa espécie de Psicoterapia sem custo financeiro, pois o melhor da Vida é grátis. Aqui, temos um ambiente luxuoso, aveludado, confortável, num beijo íntimo, com um enamorado recebendo o outro em casa, no conceito erótico de entrar um na casa do outro, com o hálito da casa de cada um. Aqui, o Amor se sobrepõe à Guerra, e temos um momento, uma lacuna harmoniosa, com duas pessoas abrindo a Vida uma para a outra. O homem está todo de negro, na sisudez contrastando com tal cena escarlate. Talvez seja o uso da Razão, com dois enamorados examinando se podem, de fato, viver felizes para sempre, pois como é medrosa a pessoa que não sabe se abrir para o Amor, para a entrega. Um confortável sofá cor vinho abraça os enamorados, na embriaguez do Amor, sendo este a melhor droga de todas, pois é uma droga que não destrói, bem pelo contrário. Aqui, pode ser um dia gelado lá fora, na dureza do Mundo. Mas, aqui dentro, é um ninho cálido, com duas pessoas que simplesmente se esqueceram do Mundo lá fora, desligando-se por um momento, tendo uma espécie de trégua, pois quando a pessoas está feliz e apaixonada, nada significam poderes ambiciosos ou talheres de ouro maciço – a pessoa só quer viver. Esta parede é elegante, listrada, aristocrática, e tem um aspecto dourado, como no dourado salão de baile de O Iluminado, num belo momento harmônico de festa, num momento social em que a dureza do dia a dia é colocada de lado. E por que o quadro se chama A Mentira? Talvez seja porque se trata de amantes cujo namoro não tem futuro. Talvez um esteja mentindo para o outro, tentando ludibriar, explorar ou trair – enganar. Talvez seja uma mulher sociopata, dissimulada, só querendo obter dinheiro do homem. Talvez a “aranha” esteja montando sua teia, querendo fisgar algum mosquitinho desavisado, como o personagem George, do seriado Seinfeld, seduzido por uma mulher no metrô e sendo assaltado pela mesma. É como um sociopata que tenta capturar “pescoços” desavisados, no modo como os vampiros existem, mas vampiros de almas. Um vaso de flores enfeita a cena, talvez num presente do homem para a mulher. As flores são a beleza romântica, um regalo, um mimo, um galanteio, como no professor Girafalez presenteando Dona Florinda, com uma paixão muito clara de ser observada pelas pessoas em volta, como Trinity e Neo em Matrix, num amor fácil de ser observados por todos em volta. O vaso é transparente, talvez na transparência das emoções do homem, talvez num homem sendo ludibriado, acreditando estar namorando uma pessoa boa e virtuosa. Só que estas flores são um tanto escuras, como no terno homem – é o imprevisível, talvez num homem que não está percebendo que está sendo enganado por mentiras. A mulher lhe fala coisas ao ouvido, e talvez um deles dois esteja levando vida dupla, ou então ambos estejam o fazendo, sem haver espaço para que tal paixão se torne digna de respeito, de aprovação social. As cores douradas da parede são o sentimento majestoso de se estar apaixonado, um sentimento de que a Vida está na mais completa ordem.


Acima, Tulipas. 1920. As flores estão meio murchas, agonizando, morrendo, como no melancólico falecimento de uma pessoa que sofreu por meses em uma cama de hospital. É a finitude da Matéria, no fato de que o beijo da Morte sempre chega, cedo ou tarde. É como se as flores estivessem envelhecendo, nas leis naturais que regem a Vida na Terra, com os ciclos de Vida entre nascer, crescer, envelhecer e morrer. Vallotton mostra aqui sua magistral pincelada, com traços em branco ilustrando objetos lustrosos, como as duas garrafas ao lado do vaso. Uma tangerina também envelhece aqui, e não sabemos se ela está boa para o consumo, no fato de que os momentos passam, exigindo que façamos escolhas de Vida, pois já me disse uma grande amiga psicóloga: “A Vida é feita de escolhas”. Muitos livros amontoados ao fundo, com registros um tanto desorganizados, no modo como é inevitável a imperfeição da Vida, pois é uma ilusão achar que tudo está na mais perfeita ordem, havendo sempre uma manchinha preta sobre o Sol. Aqui, não temos uma cena de apolínea ordem, mas uma desordem gostosa, saborosa, numa pessoa no conforto de seu próprio lar, encontrando-se em meio a tal pitoresca desordem, como numa pessoa que chega em casa e calça um par de chinelos ou pantufas, no prazer de estar à vontade, na sensação deliciosa de liberdade e livre arbítrio. Esta cena é um pouco sombria, nas luzes esmaecidas de Vallotton. Talvez seja um melancólico fim de tarde, com chuva, com engarrafamentos nas ruas, numa pessoa ansiosa por chegar em casa e vestir roupas menos belas, porém mais confortáveis. Este vaso está um tanto esquecido e desassistido, numa pessoa que ainda não está percebendo que o Tempo passou e que novos capítulos de Vida estão se desdobrando, pois pobre da pessoa que acha que mais nada precisa aprender. A toalha é de um elegante vermelho escuro, com decoração em dourado, como num majestoso manto de Nossa Senhora em alguma obra renascentista, numa veste digna da Rainha das rainhas, no modo como os entes queridos já falecidos nos cobrem com este manto metafísico, mostrando-nos que, a nível metafísico, ou seja, a nível de Verdade, somos todos príncipes da mesma Rainha, o Imaculado Útero de Virtude que nos gerou e nos amará para sempre, na infinitude do Amor. Vemos aqui papéis de anotações, com uma pessoa tomando notas, talvez para escrever alguma obra, ou um estudo erudito, num lar silencioso, onde a pessoa encontra Paz para produzir sem pressa ou pressões, pois não é insuportável sofrer pressões? Como num artista que, depois de atingir um doce momento de êxito, sofre pressão para se manter em tal nível, o que é impossível, pois, não canso de dizer, o Sucesso é um amante infiel. Talvez aqui esteja parada, estagnada a água do vaso, passando a nutrir a planta com água suja, envenenando as flores. Talvez seja um sentimento de estagnação, de progresso estacionado, catarseando um sentimento de impotência, de inconstância. Nesta bagunça caseira, a própria pessoa se sente organizada, pois consegue se encontrar em meio a um aparente caos, diferente de um acumulador compulsivo, que se perde em meio a mais e mais objetos inúteis, quiçá insalubres. Talvez nesta cena haja um pouco de poeira acumulada, numa estagnação, acumulando poeira. E as duas garrafas, enfeitadas com estampa azul, estejam fazendo companhia uma à outra, numa relação de companheirismo, com duas pessoas que estão muito bem estando juntas, encontrando prazer no simples convívio, numa relação de respeito, pois o que é de um casamento sem respeito entre os cônjuges? Uma discreta cortina esverdeada se coloca ao fundo, num ato de recato, impedindo que as intimidades venham ao Mundo, num pudor, numa discrição, como numa pessoa que não quer trazer algo a público, como num caso extraconjugal, sem futuro. Então, cedo ou tarde, cada um faz suas escolhas, e é alto demais o preço de se fugir da Vida. Neste cômodo há aquele mortal silêncio que dá um zunidinho em nossos ouvidos, no prazer da Paz.

Referências bibliográficas:

Félix Vallotton. Disponível em <www.en.wikipedia.org>. Acesso 18 dez. 2019.

Félix Vallotton. Disponível em <www.metmuseum.org>. Acesso 18 dez. 2019.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Sendo Feliz



Natural da França e lá educado, o pintor suíço Félix Vallotton (1865 – 1925) pertenceu a grupos artísticos modernistas e pós-impressionistas, tendo sido também crítico de Arte e de romances. Entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, o poderoso Met de Nova York fez uma grande retrospectiva sobre Vallotton. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, O Quarto Vermelho. 1898. Há uma certa identidade feminina no quarto, com cores femininas como derivados de rosa, como me descreveu certa vez um senhor, que fora a um bordel, e disse todas as cores interiores do prostíbulo remetiam a sexo, como na sedutora marca feminina internacional Victoria’s Secret, como diz um personagem de Woody Allen, quase gaguejando de luxúria: “Algumas mulheres fazem compras na Victoria’s Secret”, ou seja, traduzindo do Inglês, o segredo da vitória da sedução, com Yang se rendendo a Yin, a força feminina perfumada, como uma Marilyn Monroe usando o perfume Chanel n. 5, no irresistível perfume uterino do Sagrado Ventre que nos gerou, num jogo erótico entre castidão e desejo. Aqui, o ambiente é quieto, digno de uma imersiva sessão de Psicoterapia, com segredos remexidos no interior de um consultório silencioso, no qual um simples farfalhar é ouvido. Um casal conversa quietamente, talvez trocando um segredo íntimo, com um sussurro de intimidade, num relacionamento construído por décadas. Apesar da rubra mesa quente, como uma chapa grelhando carnes, a lareira está apagada, sem qualquer sinal de vida, como um frio túmulo, numa sala que carece de aquecimento, talvez no FV catarseando um sentimento de abandono e desolação. A fria lareira tem cores azuladas, masculinas, na fria razão do pensamento lógico, esta espada, esta ferramenta psíquica que abrevia caminhos e vai direto ao ponto, no modo como o pensamento racional rechaça impiedosamente malícias, nos alvos pés de Nossa Senhora esmagando a serpente Maliciosa do Éden, livrando Adão e Eva do Pecado Original. Repousando sobre a mesa, uma fálica bengala, na rapidez lógica que une dois pontos pelo caminho mais curto, como num cabelo curto masculino, rechaçando os encantos femininos de tortuosos cabelos longos, no jogo de sedução entre Marte e Vênus. Acima da lareira, um impávido busto, formal, rígido, cheio de dignidade, num homem que, apesar de falecido, está eternizado em homenagem, no modo como, na Dimensão Metafísica, todas as honras estão preservadas, e o grande homem não precisa se preocupar se sua memória está garantida para todo o sempre, como num grande brasileiro que, depois de morrer, continua tendo glória no plano acima, na eternidade da virtude, uma força que vence o tempo e perdura indefinidamente, no poder implacável da Eternidade, no terrível e maravilhoso fato de que nossas vidas não terão um ponto final, no maior presente que Tao é capaz de dar aos próprios filhos, pois qual seria o sentido de tudo se não houvesse o poder imenso da Eternidade? A porta está negra, envolvendo os amantes, talvez num casal que está começando a perceber que o relacionamento não tem futuro, num homem triste, que leva vida dupla, não tendo os culhões para ter uma vida só – como é triste um relacionamento sem respeito! A luz entra e banha a sala, e as confortáveis poltronas estão vazias, talvez no desconforto de um caso extraconjugal, com duas pessoas que, apesar de amantes, não são de fato amigas uma da outra, como diz a letra de uma certa estrela pop: Não fique de mera amante, pois se for para ser mera amante, então é melhor que você fique sozinha”. Um armário abriga livros, que representam o uso da cabeça, da inteligência, numa pessoa que está sendo um tanto burra, achando que há futuro, virtude e dignidade em um caso extraconjugal, num mundo que faz com que tenhamos cabeça acima de tudo, pois quem só ouve o coração, é constantemente traído por tais sentimentos – um relacionamento amoroso tem que começar pela cabeça, e só depois o coração entra em jogo. O espelho acima da lareira fria é a falta de reflexão, talvez numa pessoa que não está conseguindo ver qual é o seu lugar no Mundo, no desafio do autoencontro.


Acima, Le Bois de la Gruerie et le ravin des Meurissons. 1917. Tendo passado pela I Guerra Mundial, FV nos traz um árido cenário de desolação, como numa região que foi devastada por fogo florestal. Aqui, a Vida luta para se reerguer, talvez numa pessoa que tomou um tombo existencial, numa crise, deparando-se com um cenário de miséria na própria vida, tendo que empreender esforço e paciência para se erguer novamente, como numa Europa, que teve que se reerguer depois de dois conflitos mundiais, como num Japão, humilhado e arrasado depois de bombardeios atômicos, ou como numa pessoa que se viciou em cocaína, tendo que trilhar um caminho árduo para se livrar de um vício que sempre se insinua a voltar, no modo como conheço uma pessoa de um histórico deprimente, uma pessoa que vai ter que passar o resto de seus dias em uma clínica psiquiátrica, numa vida reduzida a pó, sem qualquer chance de reconstrução. Aqui, há uma esperança, pois a Vida luta para se restabelecer. Os troncos de árvore estão sem galhos ou folhas, sobrando só um vestígio, um traço de morte, nos horrores bélicos que chocam o Mundo: Tao só inventa a Paz, pois a Guerra é um capricho humano, ou seja, Tao é o Pai do Bem, sendo o Mal um capricho humano, na lamentável tendência do Ser Humano em ingressar em conflitos, havendo a nobre intenção diplomática de diálogo e respeito, num Mundo que, infelizmente, não mudará. Aqui, podemos ouvir o som de pássaros, ressuscitando, como se estivessem despertando de um longo sono, de uma hibernação, no modo como a Vida, milagrosamente, sempre encontra meios de sobreviver e renascer, na promessa de um Mundo melhor após o Desencarne. Aqui, são como fotos de satélite denunciando queimadas na Amazônia, causando comoções ambientais Mundo afora. O verde luta para renascer, como Tolkien em seus livros, vendo com maus olhos a devastação ambiental, numa época em que o discurso ecológico sequer existia. A Natureza aqui foi explorada, sugada e vampirizada, como num Brasil Colônia, mandando para a Coroa Portuguesa as riquezas minerais encontradas em terras brasileiras, no talento humano em vampirizar uns aos outros. Aqui, parece que um letal agrotóxico foi ministrado nessas plantações, ou como num vinhedo arrasado por uma praga implacável. Ou, aqui, podemos ver uma plantação que, depois de uma safra, foi “zerada” e preparada para receber outra safra, no modo como a Agricultura, segundo o intelectual Hariri, tornou-se um assoberbante trabalho para o Ser Humano, como num colono italiano no Rio Grande do Sul, trabalhando de Sol a Sol arduamente, quase como um escravo da terra. Aqui, o Bem luta contra o Mal, e há nesgas de Sol lutando para vencer a escuridão devastadora. É como um rapaz cabeludo que foi se alistar no Exército, recebendo um rente corte de cabelo, fazendo metáfora com a Disciplina, o controle emocional, com tantos e tantos jovens com vidas ceifadas em guerras, num Mundo que sacrifica sua própria juventude. Lamentável. Na Dimensão Metafísica há Paz, e lá a Guerra nada significa, como numa vizinhança na qual não há espaço algum para qualquer desavença. Aqui, é como uma ferida sendo sarada, como no personagem Wolverine, um mutante que tinha o poder de se regenerar de forma absurdamente rápida, no modo como temos que sarar nossas próprias feridas e seguir em frente. Nesta terra vasta, e devastação é vasta também, na dizimação de uma bomba atômica, até hoje causando preocupação na Comunidade Mundial, com nações pouco democráticas desenvolvendo armistício nuclear, pois, como diz Tao, as armas são coisas horríveis, e nenhum homem de Tao terá algo a ver com estas, ou seja, nenhuma pessoa da Paz pegará em armas, pois a espada representa o Pensamento Racional, e não uma lâmina que pode matar. Há muita confusão no Mundo.


Acima, The Laundress. 1900. Um majestoso manto cobre o chão da sala, e crianças brincam enquanto suas mães laboram. É um cenário de paciência e dedicação, com as senhoras trabalhando, disciplinadas, com seus cabelos comportados, presos, impondo também disciplina às crianças, as quais precisam não fazer muito barulho para que não atrapalhem o trabalho das senhoras. Tons de sisudo azul predominam na peça: o uniforme do menino, a colcha, as cortinas, a parede. A cama está arrumada, e agora não é hora de descanso, mas de trabalho, na rotina do dia, com as crianças buscando sair um pouco da rotina disciplinada, na porção criança que mora em cada um de nós, na inocência infantil, a qual só quer brincar, no modo como somos todos crianças de Tao, o grande Lar Acolhedor, na divina mansão da Vida Eterna, num lugar em que temos a gloriosa sensação de que tudo está nos trilhos. Este manto que cobre cada todo o chão remete à Nossa Senhora de Caravaggio, de Aldo Locatelli, na igreja caxiense de São Pelegrino, com o manto mostrando a glória e a majestade da Virgem, cercada de uma multidão de anjos louvando-a, num tecido fino, digno de rainha. Essas comadres costurando estão costurando nos dois sentidos: no literal e no figurado, na gíria para apontar uma conversa, um colóquio, fazendo com que a jornada fique mais leve, em meio a um prazeroso papo, nas comadres que se reúnem na tarde, fazendo com que haja produtividade e, assim mesmo, prazer, visto que trabalho não pode ser sinônimo de sofrimento ou tortura. As comadres estão aproveitando a luz natural que invade a sala, mas parece que a luminosidade não invade a sala por completo, no modo como, na Encarnação, nunca há certezas olímpicas, mas dúvidas cinzentas: Será que sou especial tal qual um grande príncipe? Na Dimensão Metafísica, as dúvidas se dissipam, e, lá, temos a certeza de que somos extremamente especiais, com o pai zeloso e amoroso que é Tao, a cola invisível que mantém tudo e todos unidos. Este grande manto remete às vestes da cantora Rihana em uma edição passada do baile de gala do Met em Nova York, quando a estrela arrastou metros de tecido fino pelas escadarias vermelhas do evento de luxo, no modo como a Natureza, como filha de Tao, é majestosa por si só, e as florestas vestem vestes maravilhosas, de riqueza incalculável, no modo como é necessário que admiremos menos os palácios e admiremos mais a Natureza, a Vida ao Ar livre, a saúde de Tao. Ao fundo na cena, um pequeno detalhe – fios de costura vermelhos. São os laços de sangue, unindo famílias, no modo como os vínculos de família, em sua importância, não se desfazem com o Desencarne, na eternidade das relações amorosas, fazendo de todas as casas uma casa só, com Tao, o unificador, no talento de um patriarca em reunir toda a família em uma noite de Natal. A cama parece ser fofinha e acolhedora, convidando-nos ao delicioso pecadinho da Preguiça, como vejo, todos os anos em Capão da Canoa, uma loja que vende colchões e travesseiros, com uma majestosa cama à vitrine, uma cama que nos convida a tirar a roupa, ali deitar e simplesmente esquecer do Mundo, fugindo do estresse do dia a dia, abraçando um estilo de vida mais pacífico e calmo, pois quando perdemos a calma, perdemos tudo. Este manto flui como um grande rio, como nas formas tortuosas do Rio dos Sinos, como uma bandeira tremulando, buscando unificar um povo heterogêneo sob uma mesma bandeira, no modo como a diversidade cultural brasileira é uma colcha de retalhos, como na Itália ou nos EUA, como numa família em que os filhos são tão diferentes uns dos outros, apesar de terem sido criados debaixo do mesmo teto, sob os mesmos valores, na questão de respeito às individualidades, ao jeito particular de cada um – não quero que você concorde comigo; quero que você me respeite. O chão da casa é meio terroso, numa casa simples, na beleza das coisas que vêm da terra germinada. A janela é um olho aberto para o Mundo, no modo como é insuportável a vida de uma pessoa que não produz.


Acima, A Paciente. 1892. Aqui, é uma cena de cuidado, pois a moça doente está sendo assistida. A coberta vermelha é como a carne vida, doendo, ardendo, tendo que tomar colheradas de um remédio ardido e doloroso, mas um remédio que acabará fazendo um maravilhoso efeito, curando, pois por trás de um amargo remédio pode estar a bondade que cura, no modo como não podemos reclamar se a Vida nos dá colheradas de um remédio amargo, e temos que ser gratos por tais colheradas, no grande plano divino para conosco. Não podemos ver a paciente, e ela está reservada, como numa pessoa tímida, que foge de flashes fotográficos. Já, a enfermeira está saudável e produtiva, corada, trabalhando dedicadamente. Seu branco avental é impecavelmente limpo, num hospital muito limpo, mostrando que a paciente está num lugar limpo e acolhedor. Ao lado da cama, uma mesa com diversos remédios, e a enfermeira está ciente de que está na hora de uma nova dose, quer a paciente queria, quer não, como numa dolorosa injeção, a qual vai acabar por curar e libertar, portanto não devemos temer a agulha quando esta vem, pois quando esta vem, é para o Bem. A agulha é a precisão do pensamento, como num psiquiatra audaz, que detecta precisamente qual é o problema do paciente, no poder do pensamento lógico e científico, na universalidade do Conhecimento. Podemos ouvir o ranger da abertura da porta, e a paciente já vai se levantando para tomar a medicação. Como já me disseram, é terrível quando a pessoa contrai dengue, fazendo com que o paciente fique duas semanas inteiras imprestável numa cama, inspirando cuidados. O quarto é limpo e organizado, e há uma voz dizendo à enferma: “Vai passar”. É como na rainha da Festa da Uva de 1934, Odila Zatti, a qual enfrentou uma febre tifóide severa, sobrevivendo, no modo como, na Vida, o importante é sobreviver, como baratas, sobrevivendo a hecatombes nucleares, e o Mundo não é dos fortes? Há uma cadeira ao lado da cama, mas a enferma não se sente com forças para sair da cama e sentar, estando ainda muito vulnerável. A roupa negra da enfermeira é a indefinição, a incerteza, pois não sabemos se a enferma terá as forças para vencer a doença, como na força que é exigida da pessoa que enfrenta um câncer e precisa passar pelo momento difícil que é a radioquimioterapia. A paciente é um mistério, pois não vemos seu belo rosto, como se a enferma estivesse se escondendo do olhar de Vallotton, tímida. Já, a enfermeira olha fixamente para o espectador, com um semblante calmo, de alguém que gosta de desempenhar tal função. Podemos ouvir os silenciosos passos da enfermeira adentrando o cômodo. A cama é o útero acolhedor, recebendo os pobres e miseráveis, no modo como, conta a lenda do Negrinho do Pastoreio, quando o negrinho morre de forma cruel e excruciante, o menino é recebido no Céu pelos braços abertos de Nossa Senhora, numa espécie de retorno, numa espécie de aposentadoria, só que numa vida produtiva, cheia de significado, como um bom recheio de pastel de carne. Esta cena tem uma luminosidade muito bonita, natural, num Félix que provavelmente usava a luz natural em estúdio. A mesinha é muito bem constituída, e as pinceladas hábeis brancas nos mostram que se trata de um móvel envernizado. Também as estruturas da cama e da cadeira trazem este aspecto lustroso, num mestre que sabe o que faz. Quando a enfermeira entra do quarto, há um desvelo, uma revelação, com cortinas teatrais que se abrem e mostram a magia de um palco. É como na revelação do véu sendo tirado da personagem Ana do Véu, vivida por Patricia Pillar, revelando graça e beleza, numa atriz que soube se tornar deusa. Aqui, quando a paciente se levanta, sabendo que é hora do remédio, podemos ver a cama de molas trepidando, causando um certo ruído, no discreto silêncio que deve haver dentro de um hospital, sendo proibido sequer tocar buzina de carros nas imediações do hospital, na inscrição de centros espíritas: “Silêncio é prece”. Ou seja, como diz Tao, ficar quieto, porém produtivo, é uma virtude.


Acima, A Visita. 1899. Talvez sejam amantes, em um caso extraconjugal, num encontro íntimo, enquanto a Vida lá fora, fora da silenciosa sala, segue em frente. Bem ao fundo da cena, num cômodo sombrio, um relógio, e podemos ouvir o tiquetaque invadindo minimamente o silêncio enquanto os enamorados se envolvem. Na cena, vemos um quadro retangular, sombrio, talvez sendo o imprevisível destino do casal, sem saber se o caso se tornará um casamento digno de respeito, com o casal se assumindo publicamente. São colinas sombrias e cruéis, talvez numa perspectiva pessimista, num caso de amor que não tem muito futuro, como em um drama de filme dos anos 80, na amante psicótica, vivida pela diva Glenn Close, que é por fim assassinada pelo próprio amante, no modo como há pessoas que não têm o mínimo de respeito para com os próprios amantes, como numa pessoa infeliz, que leva vida dupla, com o coração dividido entre dois mundos diferentes, sempre em cima de um muro de indefinição, não tendo a coragem de ter uma vida só. A casa está arrumada e limpa, talvez a casa da mulher, no desejo desta em fazer com que o relacionamento se torne limpo e digno de respeito. A lapela da mulher é rosa pastel, na cor do amor, da intimidade física. Mas é um caso sem muito futuro, talvez com fofocas já se disseminando, no eterno talento indiscreto humano em perder o tempo com fofocas, pois se cuido da vida dos outros, quem estará cuidando da minha? Quanta perda de tempo. Aqui, Vallotton mostra a maestria em cômodos inundados por luz natural, uma luz pálida, suave, nunca sendo um inclemente Sol tropical. Aqui, sofás, carpete e o vestido parecem ser de macio veludo, num toque de sedução, de irresistível delicadeza, de feminilidade, seduzindo o homem, o qual, provavelmente, saiu mais cedo do trabalho para, em segredo, fazer tal visita. Talvez a amante seja uma ardilosa prostituta, esperando alguém para que a quenga possa subir na vida e ser esposa de um homem rico e poderoso, na dança de sedução entre masculino e feminino, com Yin e Yang se beijando ardorosamente. Vemos um tapete de estampa floral, delicado e feminino, como as flores trazidas pelo amante, no modo como flores podem ser muito românticas, mas e o resto, como fica? Onde está o uso da cabeça, da razão? Pois se só ouço meu próprio coração, logo serei enganado pelo mesmo. A porta do cômodo ao fundo está aberta, na mulher abrindo as pernas para o amante, aceitando em sua vida um homem que não tem intenções extremamente nobres, pois como é triste a vida de amantes cujo caso não tem futuro! A estante de livros está fechada e sombreada, numa pessoa que não quer ouvir a fria razão dos “números”, no modo como é importante, sábio e maduro colocar essas “células” debaixo de uma lente de microscópio, no uso racional de pensamento, rechaçando a tortuosa e traiçoeira serpente da Malícia. O casal parece dançar docemente, numa valsa sedutora, pois a Valsa, em seu início e dissiminação, foi considerada vulgar e libertina, assim como o Rock iniciou sendo considerado vulgar. Só que neste encontro os minutos estão contados, e o amante tem que retomar sua sisuda vida lá fora, nos versos da canção: “Ai, ai, ai, ai! Está chegando a hora. O dia já vem raiando, meu bem. Eu tenho que ir embora”. A luz que entra na sala são os olhos da Sociedade, no modo como as pessoas conseguem observar nuances entre amantes, como no filme icônico A Época da Inocência, com Newland e Ellen num ardoroso caso de amor, com duas pessoas que amavam cada célula do corpo uma da outra, mas num amor sem futuro, sem perspectivas de ser bem visto pela Sociedade, num caso de amor que poderia trazer um grande incômodo a toda uma família, num caso de amor que foi alvo de intermináveis fofocas. O homem está de preto, discreto, na cor do luto, no modo como o homem está enterrando sua própria felicidade, pois, em sua vida dupla, não está bem aqui; não está bem ali.


Acima, Três Mulheres e uma Menininha Brincando na Água. 1907. Certamente, um dos mais belos quadros de Vallotton. Aqui, a pureza nua se mostra sem malícia. O Prazer desnudo se conecta com o prazer aquoso, numa brincadeira de Verão, no prazer da fluidez, como na Experiência Extracorporal, as EECs, numa deliciosa sensação de liberdade e bem estar, como numa cama absolutamente confortável e acolhedora. A água é escura e discreta, como nas vastidões oceânicas no Google Earth. Três moças estão com os cabelos pudorosamente amarrados, enquanto a quarta moça está rebelde, com os cabelos soltos, numa transgressão, numa agressão, talvez sendo impiedosamente criticada pelas demais moças. Seus cabelos desamarrados são os mais negros do grupo, como nos cabelos de Iracema – negros como a asa da graúna. É o desejo de se libertar, como num presidiário que conta as horas e os dias para ser libertado, na indescritível libertação que é o Desencarne. A menor e mais jovem menina do grupo está reclusa na porção direita do quadro, alheia à brincadeira das outras três. É o olhar distanciado, clínico, querendo ver as coisas num plano amplo, abrangente. Parece que uma moça quer afogar a outra, talvez brincando, talvez numa tentativa maldosa. O plano ao fundo é de um majestoso dourado de Aurora, pintando os Céus de ouro, na beleza que teria Galadriel, de Tolkien, se esta tivesse para si os poderes do Anel. Apesar do fundo iluminado, este não é um quadro muito claro ou iluminado, e a mulher mais à esquerda está um tanto envolta em sombras, avaliando a cena, com um certo pudor, tapando os próprios seios, como numa pessoa que passeia pela primeira vez em uma praia de Nudismo – é o jogo de sedução entre timidez e exibicionismo. Esta água não é transparente, e há muito sendo ocultado debaixo desta cor tão fechada, nas imprevisíveis esquinas da Vida, com acontecimentos que irrompem sem qualquer aviso prévio, como na repentina e inesperada morte de um ente querido, num desencarne sem dor, numa pessoa que simplesmente caiu no sono e morreu. As mulheres se abraçando e brincando são a Competitividade, como num mercado concorrido, com produtos nas gôndolas, produtos que competem pela atenção e pelo gosto do consumidor, na inevitável arena de gladiadores que é a Vida, num mundo competitivo, com tantas e tantas ambições em pé de guerra, na eterna vocação humana para o Ódio de concorrência, como na perene guerra entre Pepsi e Coca. Essas mulheres são as frações de um corpo só, num trabalho de análise, como num consultório psiquiátrico, com aspectos da alma do paciente sendo trazidos à tona, com anos de sessões semanais, numa pessoa buscando ver a si mesma, no grande desafio que é para uma pessoa olhar para si mesma e, também, olhar como os outros a veem. Neste quadro temos uma fluidia valsa, num contexto erótico de belas donzelas se divertindo juntas e nuas, alimentando o pensamento erótico de um homem que as espia sem que elas percebam, no prazer do voyeur em olhar para as casa dos outros sem o voyeur ter sido propriamente convidado, no prazer da violação, como abrir uma carta, no prazer desvirginante, como europeus pioneiros explorando selvagens terras americanas. Estas mulheres têm corpos voluptuosos, carnudos, fartos, mas não são exatamente obesas, mas numa fartura digna de Monroe, o maior monstro feminino do Cinema. Aqui, as moças não estão submetidas aos cruéis padrões estéticos contemporâneos, com moças beirando a Anorexia. Aqui, há o prazer libertador, na gloriosa sensação de se chegar em Capão da Canoa e calçar chinelos, deixando para lá, por um certo tempo, as formalidade urbanas. E ouvimos o delicioso som da água, na enigmática fartura biológica terrena, num Ser Humano que se pergunta se há esferas tão ricas quanto a nossa. Uma das moças está com o rosto totalmente coberto, recluso, escondido. É o mistério de Tao, o regente que coloca uma vida à nossa frente, num Pai que não quer que seus filhos “atirem-se nas cordas”.

Referências bibliográficas:

Félix Vallotton. Disponível em <www.en.wikipedia.org>. Acesso 18 dez. 2019.

Félix Vallotton. Disponível em <www.metmuseum.org>. Acesso 18 dez. 2019.