Natural da França e lá
educado, o pintor suíço Félix Vallotton (1865 – 1925) pertenceu a grupos
artísticos modernistas e pós-impressionistas, tendo sido também crítico de Arte
e de romances. Entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, o poderoso Met de Nova
York fez uma grande retrospectiva sobre Vallotton. Os textos e análises
semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!
Acima, O Quarto Vermelho. 1898. Há uma certa identidade feminina no
quarto, com cores femininas como derivados de rosa, como me descreveu certa vez
um senhor, que fora a um bordel, e disse todas as cores interiores do
prostíbulo remetiam a sexo, como na sedutora marca feminina internacional
Victoria’s Secret, como diz um personagem de Woody Allen, quase gaguejando de luxúria:
“Algumas mulheres fazem compras na Victoria’s Secret”, ou seja, traduzindo do
Inglês, o segredo da vitória da sedução, com Yang se rendendo a Yin, a força
feminina perfumada, como uma Marilyn Monroe usando o perfume Chanel n. 5, no
irresistível perfume uterino do Sagrado Ventre que nos gerou, num jogo erótico
entre castidão e desejo. Aqui, o ambiente é quieto, digno de uma imersiva
sessão de Psicoterapia, com segredos remexidos no interior de um consultório
silencioso, no qual um simples farfalhar é ouvido. Um casal conversa
quietamente, talvez trocando um segredo íntimo, com um sussurro de intimidade,
num relacionamento construído por décadas. Apesar da rubra mesa quente, como
uma chapa grelhando carnes, a lareira está apagada, sem qualquer sinal de vida,
como um frio túmulo, numa sala que carece de aquecimento, talvez no FV
catarseando um sentimento de abandono e desolação. A fria lareira tem cores
azuladas, masculinas, na fria razão do pensamento lógico, esta espada, esta
ferramenta psíquica que abrevia caminhos e vai direto ao ponto, no modo como o
pensamento racional rechaça impiedosamente malícias, nos alvos pés de Nossa
Senhora esmagando a serpente Maliciosa do Éden, livrando Adão e Eva do Pecado
Original. Repousando sobre a mesa, uma fálica bengala, na rapidez lógica que
une dois pontos pelo caminho mais curto, como num cabelo curto masculino,
rechaçando os encantos femininos de tortuosos cabelos longos, no jogo de
sedução entre Marte e Vênus. Acima da lareira, um impávido busto, formal,
rígido, cheio de dignidade, num homem que, apesar de falecido, está eternizado
em homenagem, no modo como, na Dimensão Metafísica, todas as honras estão
preservadas, e o grande homem não precisa se preocupar se sua memória está
garantida para todo o sempre, como num grande brasileiro que, depois de morrer,
continua tendo glória no plano acima, na eternidade da virtude, uma força que
vence o tempo e perdura indefinidamente, no poder implacável da Eternidade, no
terrível e maravilhoso fato de que nossas vidas não terão um ponto final, no
maior presente que Tao é capaz de dar aos próprios filhos, pois qual seria o
sentido de tudo se não houvesse o poder imenso da Eternidade? A porta está
negra, envolvendo os amantes, talvez num casal que está começando a perceber
que o relacionamento não tem futuro, num homem triste, que leva vida dupla, não
tendo os culhões para ter uma vida só – como é triste um relacionamento sem
respeito! A luz entra e banha a sala, e as confortáveis poltronas estão vazias,
talvez no desconforto de um caso extraconjugal, com duas pessoas que, apesar de
amantes, não são de fato amigas uma da outra, como diz a letra de uma certa estrela
pop: Não fique de mera amante, pois se for para ser mera amante, então é melhor
que você fique sozinha”. Um armário abriga livros, que representam o uso da
cabeça, da inteligência, numa pessoa que está sendo um tanto burra, achando que
há futuro, virtude e dignidade em um caso extraconjugal, num mundo que faz com
que tenhamos cabeça acima de tudo, pois quem só ouve o coração, é constantemente
traído por tais sentimentos – um relacionamento amoroso tem que começar pela
cabeça, e só depois o coração entra em jogo. O espelho acima da lareira fria é a falta
de reflexão, talvez numa pessoa que não está conseguindo ver qual é o seu lugar
no Mundo, no desafio do autoencontro.
Acima, Le Bois de la Gruerie
et le ravin des Meurissons. 1917. Tendo passado pela I Guerra Mundial, FV
nos traz um árido cenário de desolação, como numa região que foi devastada por
fogo florestal. Aqui, a Vida luta para se reerguer, talvez numa pessoa que
tomou um tombo existencial, numa crise, deparando-se com um cenário de miséria
na própria vida, tendo que empreender esforço e paciência para se erguer
novamente, como numa Europa, que teve que se reerguer depois de dois conflitos
mundiais, como num Japão, humilhado e arrasado depois de bombardeios atômicos,
ou como numa pessoa que se viciou em cocaína, tendo que trilhar um caminho
árduo para se livrar de um vício que sempre se insinua a voltar, no modo como
conheço uma pessoa de um histórico deprimente, uma pessoa que vai ter que
passar o resto de seus dias em uma clínica psiquiátrica, numa vida reduzida a
pó, sem qualquer chance de reconstrução. Aqui, há uma esperança, pois a Vida
luta para se restabelecer. Os troncos de árvore estão sem galhos ou folhas,
sobrando só um vestígio, um traço de morte, nos horrores bélicos que chocam o
Mundo: Tao só inventa a Paz, pois a Guerra é um capricho humano, ou seja, Tao é
o Pai do Bem, sendo o Mal um capricho humano, na lamentável tendência do Ser
Humano em ingressar em conflitos, havendo a nobre intenção diplomática de
diálogo e respeito, num Mundo que, infelizmente, não mudará. Aqui, podemos
ouvir o som de pássaros, ressuscitando, como se estivessem despertando de um
longo sono, de uma hibernação, no modo como a Vida, milagrosamente, sempre
encontra meios de sobreviver e renascer, na promessa de um Mundo melhor após o
Desencarne. Aqui, são como fotos de satélite denunciando queimadas na Amazônia,
causando comoções ambientais Mundo afora. O verde luta para renascer, como
Tolkien em seus livros, vendo com maus olhos a devastação ambiental, numa época
em que o discurso ecológico sequer existia. A Natureza aqui foi explorada,
sugada e vampirizada, como num Brasil Colônia, mandando para a Coroa Portuguesa
as riquezas minerais encontradas em terras brasileiras, no talento humano em
vampirizar uns aos outros. Aqui, parece que um letal agrotóxico foi ministrado
nessas plantações, ou como num vinhedo arrasado por uma praga implacável. Ou,
aqui, podemos ver uma plantação que, depois de uma safra, foi “zerada” e
preparada para receber outra safra, no modo como a Agricultura, segundo o
intelectual Hariri, tornou-se um assoberbante trabalho para o Ser Humano, como
num colono italiano no Rio Grande do Sul, trabalhando de Sol a Sol arduamente,
quase como um escravo da terra. Aqui, o Bem luta contra o Mal, e há nesgas de
Sol lutando para vencer a escuridão devastadora. É como um rapaz cabeludo que
foi se alistar no Exército, recebendo um rente corte de cabelo, fazendo
metáfora com a Disciplina, o controle emocional, com tantos e tantos jovens com
vidas ceifadas em guerras, num Mundo que sacrifica sua própria juventude.
Lamentável. Na Dimensão Metafísica há Paz, e lá a Guerra nada significa, como
numa vizinhança na qual não há espaço algum para qualquer desavença. Aqui, é
como uma ferida sendo sarada, como no personagem Wolverine, um mutante que
tinha o poder de se regenerar de forma absurdamente rápida, no modo como temos
que sarar nossas próprias feridas e seguir em frente. Nesta terra
vasta, e devastação é vasta também, na dizimação de uma bomba atômica, até hoje
causando preocupação na Comunidade Mundial, com nações pouco democráticas desenvolvendo
armistício nuclear, pois, como diz Tao, as armas são coisas horríveis, e nenhum
homem de Tao terá algo a ver com estas, ou seja, nenhuma pessoa da Paz pegará
em armas, pois a espada representa o Pensamento Racional, e não uma lâmina que
pode matar. Há muita confusão no Mundo.
Acima, The Laundress. 1900. Um majestoso manto cobre o chão da sala, e
crianças brincam enquanto suas mães laboram. É um cenário de paciência e
dedicação, com as senhoras trabalhando, disciplinadas, com seus cabelos
comportados, presos, impondo também disciplina às crianças, as quais precisam
não fazer muito barulho para que não atrapalhem o trabalho das senhoras. Tons
de sisudo azul predominam na peça: o uniforme do menino, a colcha, as cortinas,
a parede. A cama está arrumada, e agora não é hora de descanso, mas de trabalho,
na rotina do dia, com as crianças buscando sair um pouco da rotina
disciplinada, na porção criança que mora em cada um de nós, na inocência infantil,
a qual só quer brincar, no modo como somos todos crianças de Tao, o grande Lar
Acolhedor, na divina mansão da Vida Eterna, num lugar em que temos a gloriosa
sensação de que tudo está nos trilhos. Este manto que cobre cada todo o chão
remete à Nossa Senhora de Caravaggio, de Aldo Locatelli, na igreja caxiense de
São Pelegrino, com o manto mostrando a glória e a majestade da Virgem, cercada
de uma multidão de anjos louvando-a, num tecido fino, digno de rainha. Essas
comadres costurando estão costurando nos dois sentidos: no literal e no
figurado, na gíria para apontar uma conversa, um colóquio, fazendo com que a
jornada fique mais leve, em meio a um prazeroso papo, nas comadres que se
reúnem na tarde, fazendo com que haja produtividade e, assim mesmo, prazer,
visto que trabalho não pode ser sinônimo de sofrimento ou tortura. As comadres
estão aproveitando a luz natural que invade a sala, mas parece que a
luminosidade não invade a sala por completo, no modo como, na Encarnação, nunca
há certezas olímpicas, mas dúvidas cinzentas: Será que sou especial tal qual um
grande príncipe? Na Dimensão Metafísica, as dúvidas se dissipam, e, lá, temos a
certeza de que somos extremamente especiais, com o pai zeloso e amoroso que é
Tao, a cola invisível que mantém tudo e todos unidos. Este grande manto remete
às vestes da cantora Rihana em uma edição passada do baile de gala do Met em Nova York, quando a
estrela arrastou metros de tecido fino pelas escadarias vermelhas do evento de
luxo, no modo como a Natureza, como filha de Tao, é majestosa por si só, e as
florestas vestem vestes maravilhosas, de riqueza incalculável, no modo como é
necessário que admiremos menos os palácios e admiremos mais a Natureza, a Vida
ao Ar livre, a saúde de Tao. Ao fundo na cena, um pequeno detalhe – fios de
costura vermelhos. São os laços de sangue, unindo famílias, no modo como os
vínculos de família, em sua importância, não se desfazem com o Desencarne, na
eternidade das relações amorosas, fazendo de todas as casas uma casa só, com
Tao, o unificador, no talento de um patriarca em reunir toda a família em uma
noite de Natal. A cama parece ser fofinha e acolhedora, convidando-nos ao delicioso
pecadinho da Preguiça, como vejo, todos os anos em Capão da Canoa, uma loja que
vende colchões e travesseiros, com uma majestosa cama à vitrine, uma cama que
nos convida a tirar a roupa, ali deitar e simplesmente esquecer do Mundo,
fugindo do estresse do dia a dia, abraçando um estilo de vida mais pacífico e
calmo, pois quando perdemos a calma, perdemos tudo. Este manto flui como um
grande rio, como nas formas tortuosas do Rio dos Sinos, como uma bandeira
tremulando, buscando unificar um povo heterogêneo sob uma mesma bandeira, no
modo como a diversidade cultural brasileira é uma colcha de retalhos, como na
Itália ou nos EUA, como numa família em que os filhos são tão diferentes uns
dos outros, apesar de terem sido criados debaixo do mesmo teto, sob os mesmos
valores, na questão de respeito às individualidades, ao jeito particular de
cada um – não quero que você concorde comigo; quero que você me respeite. O
chão da casa é meio terroso, numa casa simples, na beleza das coisas que vêm da
terra germinada. A janela é um olho aberto para o Mundo, no modo como é
insuportável a vida de uma pessoa que não produz.
Acima, A Paciente. 1892. Aqui, é uma cena de cuidado, pois a moça doente
está sendo assistida. A coberta vermelha é como a carne vida, doendo, ardendo,
tendo que tomar colheradas de um remédio ardido e doloroso, mas um remédio que
acabará fazendo um maravilhoso efeito, curando, pois por trás de um amargo
remédio pode estar a bondade que cura, no modo como não podemos reclamar se a
Vida nos dá colheradas de um remédio amargo, e temos que ser gratos por tais
colheradas, no grande plano divino para conosco. Não podemos ver a paciente, e
ela está reservada, como numa pessoa tímida, que foge de flashes fotográficos.
Já, a enfermeira está saudável e produtiva, corada, trabalhando dedicadamente.
Seu branco avental é impecavelmente limpo, num hospital muito limpo, mostrando
que a paciente está num lugar limpo e acolhedor. Ao lado da cama, uma mesa com
diversos remédios, e a enfermeira está ciente de que está na hora de uma nova
dose, quer a paciente queria, quer não, como numa dolorosa injeção, a qual vai
acabar por curar e libertar, portanto não devemos temer a agulha quando esta
vem, pois quando esta vem, é para o Bem. A agulha é a precisão do pensamento,
como num psiquiatra audaz, que detecta precisamente qual é o problema do
paciente, no poder do pensamento lógico e científico, na universalidade do
Conhecimento. Podemos ouvir o ranger da abertura da porta, e a paciente já vai
se levantando para tomar a medicação. Como já me disseram, é terrível quando a
pessoa contrai dengue, fazendo com que o paciente fique duas semanas inteiras
imprestável numa cama, inspirando cuidados. O quarto é limpo e organizado, e há
uma voz dizendo à enferma: “Vai passar”. É como na rainha da Festa da Uva de
1934, Odila Zatti, a qual enfrentou uma febre tifóide severa, sobrevivendo, no
modo como, na Vida, o importante é sobreviver, como baratas, sobrevivendo a
hecatombes nucleares, e o Mundo não é dos fortes? Há uma cadeira ao lado da
cama, mas a enferma não se sente com forças para sair da cama e sentar, estando
ainda muito vulnerável. A roupa negra da enfermeira é a indefinição, a incerteza,
pois não sabemos se a enferma terá as forças para vencer a doença, como na
força que é exigida da pessoa que enfrenta um câncer e precisa passar pelo
momento difícil que é a radioquimioterapia. A paciente é um mistério, pois não
vemos seu belo rosto, como se a enferma estivesse se escondendo do olhar de
Vallotton, tímida. Já, a enfermeira olha fixamente para o espectador, com um
semblante calmo, de alguém que gosta de desempenhar tal função. Podemos ouvir
os silenciosos passos da enfermeira adentrando o cômodo. A cama é o útero
acolhedor, recebendo os pobres e miseráveis, no modo como, conta a lenda do
Negrinho do Pastoreio, quando o negrinho morre de forma cruel e excruciante, o
menino é recebido no Céu pelos braços abertos de Nossa Senhora, numa espécie de
retorno, numa espécie de aposentadoria, só que numa vida produtiva, cheia de
significado, como um bom recheio de pastel de carne. Esta cena tem uma
luminosidade muito bonita, natural, num Félix que provavelmente usava a luz
natural em estúdio. A
mesinha é muito bem constituída, e as pinceladas hábeis brancas nos mostram que
se trata de um móvel envernizado. Também as estruturas da cama e da cadeira
trazem este aspecto lustroso, num mestre que sabe o que faz. Quando a
enfermeira entra do quarto, há um desvelo, uma revelação, com cortinas teatrais
que se abrem e mostram a magia de um palco. É como na revelação do véu sendo
tirado da personagem Ana do Véu, vivida por Patricia Pillar, revelando graça e
beleza, numa atriz que soube se tornar deusa. Aqui, quando a paciente se
levanta, sabendo que é hora do remédio, podemos ver a cama de molas trepidando,
causando um certo ruído, no discreto silêncio que deve haver dentro de um
hospital, sendo proibido sequer tocar buzina de carros nas imediações do
hospital, na inscrição de centros espíritas: “Silêncio é prece”. Ou seja, como
diz Tao, ficar quieto, porém produtivo, é uma virtude.
Acima, A Visita. 1899. Talvez sejam amantes, em um caso extraconjugal, num
encontro íntimo, enquanto a Vida lá fora, fora da silenciosa sala, segue em frente. Bem ao fundo
da cena, num cômodo sombrio, um relógio, e podemos ouvir o tiquetaque invadindo
minimamente o silêncio enquanto os enamorados se envolvem. Na cena, vemos um
quadro retangular, sombrio, talvez sendo o imprevisível destino do casal, sem
saber se o caso se tornará um casamento digno de respeito, com o casal se
assumindo publicamente. São colinas sombrias e cruéis, talvez numa perspectiva
pessimista, num caso de amor que não tem muito futuro, como em um drama de
filme dos anos 80, na amante psicótica, vivida pela diva Glenn Close, que é por
fim assassinada pelo próprio amante, no modo como há pessoas que não têm o
mínimo de respeito para com os próprios amantes, como numa pessoa infeliz, que
leva vida dupla, com o coração dividido entre dois mundos diferentes, sempre em
cima de um muro de indefinição, não tendo a coragem de ter uma vida só. A casa
está arrumada e limpa, talvez a casa da mulher, no desejo desta em fazer com
que o relacionamento se torne limpo e digno de respeito. A lapela da mulher é
rosa pastel, na cor do amor, da intimidade física. Mas é um caso sem muito
futuro, talvez com fofocas já se disseminando, no eterno talento indiscreto
humano em perder o tempo com fofocas, pois se cuido da vida dos outros, quem
estará cuidando da minha? Quanta perda de tempo. Aqui, Vallotton mostra a
maestria em cômodos inundados por luz natural, uma luz pálida, suave, nunca
sendo um inclemente Sol tropical. Aqui, sofás, carpete e o vestido parecem ser
de macio veludo, num toque de sedução, de irresistível delicadeza, de
feminilidade, seduzindo o homem, o qual, provavelmente, saiu mais cedo do
trabalho para, em segredo, fazer tal visita. Talvez a amante seja uma ardilosa
prostituta, esperando alguém para que a quenga possa subir na vida e ser esposa
de um homem rico e poderoso, na dança de sedução entre masculino e feminino,
com Yin e Yang se beijando ardorosamente. Vemos um tapete de estampa floral,
delicado e feminino, como as flores trazidas pelo amante, no modo como flores
podem ser muito românticas, mas e o resto, como fica? Onde está o uso da
cabeça, da razão? Pois se só ouço meu próprio coração, logo serei enganado pelo
mesmo. A porta do cômodo ao fundo está aberta, na mulher abrindo as pernas para
o amante, aceitando em sua vida um homem que não tem intenções extremamente
nobres, pois como é triste a vida de amantes cujo caso não tem futuro! A
estante de livros está fechada e sombreada, numa pessoa que não quer ouvir a
fria razão dos “números”, no modo como é importante, sábio e maduro colocar
essas “células” debaixo de uma lente de microscópio, no uso racional de
pensamento, rechaçando a tortuosa e traiçoeira serpente da Malícia. O casal
parece dançar docemente, numa valsa sedutora, pois a Valsa, em seu início e
dissiminação, foi considerada vulgar e libertina, assim como o Rock iniciou sendo
considerado vulgar. Só que neste encontro os minutos estão contados, e o amante
tem que retomar sua sisuda vida lá fora, nos versos da canção: “Ai, ai, ai, ai!
Está chegando a hora. O dia já vem raiando, meu bem. Eu tenho que ir embora”. A
luz que entra na sala são os olhos da Sociedade, no modo como as pessoas
conseguem observar nuances entre amantes, como no filme icônico A Época da Inocência, com Newland e
Ellen num ardoroso caso de amor, com duas pessoas que amavam cada célula do
corpo uma da outra, mas num amor sem futuro, sem perspectivas de ser bem visto
pela Sociedade, num caso de amor que poderia trazer um grande incômodo a toda
uma família, num caso de amor que foi alvo de intermináveis fofocas. O homem
está de preto, discreto, na cor do luto, no modo como o homem está enterrando
sua própria felicidade, pois, em sua vida dupla, não está bem aqui; não está
bem ali.
Acima, Três Mulheres e uma Menininha Brincando na Água. 1907. Certamente,
um dos mais belos quadros de Vallotton. Aqui, a pureza nua se mostra sem
malícia. O Prazer desnudo se conecta com o prazer aquoso, numa brincadeira de
Verão, no prazer da fluidez, como na Experiência Extracorporal, as EECs, numa
deliciosa sensação de liberdade e bem estar, como numa cama absolutamente
confortável e acolhedora. A água é escura e discreta, como nas vastidões
oceânicas no Google Earth. Três moças estão com os cabelos pudorosamente
amarrados, enquanto a quarta moça está rebelde, com os cabelos soltos, numa
transgressão, numa agressão, talvez sendo impiedosamente criticada pelas demais
moças. Seus cabelos desamarrados são os mais negros do grupo, como nos cabelos
de Iracema – negros como a asa da graúna. É o desejo de se libertar, como num
presidiário que conta as horas e os dias para ser libertado, na indescritível
libertação que é o Desencarne. A menor e mais jovem menina do grupo está
reclusa na porção direita do quadro, alheia à brincadeira das outras três. É o
olhar distanciado, clínico, querendo ver as coisas num plano amplo, abrangente.
Parece que uma moça quer afogar a outra, talvez brincando, talvez numa
tentativa maldosa. O plano ao fundo é de um majestoso dourado de Aurora,
pintando os Céus de ouro, na beleza que teria Galadriel, de Tolkien, se esta
tivesse para si os poderes do Anel. Apesar do fundo iluminado, este não é um
quadro muito claro ou iluminado, e a mulher mais à esquerda está um tanto
envolta em sombras, avaliando a cena, com um certo pudor, tapando os próprios
seios, como numa pessoa que passeia pela primeira vez em uma praia de Nudismo –
é o jogo de sedução entre timidez e exibicionismo. Esta água não é
transparente, e há muito sendo ocultado debaixo desta cor tão fechada, nas
imprevisíveis esquinas da Vida, com acontecimentos que irrompem sem qualquer
aviso prévio, como na repentina e inesperada morte de um ente querido, num
desencarne sem dor, numa pessoa que simplesmente caiu no sono e morreu. As
mulheres se abraçando e brincando são a Competitividade, como num mercado
concorrido, com produtos nas gôndolas, produtos que competem pela atenção e
pelo gosto do consumidor, na inevitável arena de gladiadores que é a Vida, num
mundo competitivo, com tantas e tantas ambições em pé de guerra, na eterna
vocação humana para o Ódio de concorrência, como na perene guerra entre Pepsi e
Coca. Essas mulheres são as frações de um corpo só, num trabalho de análise,
como num consultório psiquiátrico, com aspectos da alma do paciente sendo
trazidos à tona, com anos de sessões semanais, numa pessoa buscando ver a si
mesma, no grande desafio que é para uma pessoa olhar para si mesma e, também,
olhar como os outros a veem. Neste quadro temos uma fluidia valsa, num contexto
erótico de belas donzelas se divertindo juntas e nuas, alimentando o pensamento
erótico de um homem que as espia sem que elas percebam, no prazer do voyeur em
olhar para as casa dos outros sem o voyeur ter sido propriamente convidado, no
prazer da violação, como abrir uma carta, no prazer desvirginante, como
europeus pioneiros explorando selvagens terras americanas. Estas mulheres têm corpos
voluptuosos, carnudos, fartos, mas não são exatamente obesas, mas numa fartura
digna de Monroe, o maior monstro feminino do Cinema. Aqui, as moças não estão
submetidas aos cruéis padrões estéticos contemporâneos, com moças beirando a Anorexia.
Aqui, há o prazer libertador, na gloriosa sensação de se chegar em Capão da
Canoa e calçar chinelos, deixando para lá, por um certo tempo, as formalidade
urbanas. E ouvimos o delicioso som da água, na enigmática fartura biológica
terrena, num Ser Humano que se pergunta se há esferas tão ricas quanto a nossa.
Uma das moças está com o rosto totalmente coberto, recluso, escondido. É o
mistério de Tao, o regente que coloca uma vida à nossa frente, num Pai que não
quer que seus filhos “atirem-se nas cordas”.
Referências bibliográficas:
Félix Vallotton.
Disponível em <www.en.wikipedia.org>. Acesso 18 dez. 2019.
Félix Vallotton.
Disponível em <www.metmuseum.org>. Acesso 18 dez. 2019.
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