quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Sendo Feliz (Parte 2)



Volto a falar sobre o pintor suíço Félix Vallotton. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, No Mercado. 1887. Uma cena um tanto parisiense, pitoresca, nos pequenos prazeres franceses, como numa feira de frutas e cafeterias, no prazer de sentar, beber um café e olhar o movimento, em momentos de Paz, nos quais esquecemos do fato do Mundo estar sempre em pé de Guerra, havendo no papo diplomático a promessa de um Mundo melhor, superior, metafísico, onde só há gente boa. É um quadro de identidade feminina, só com mulheres e uma menininha, inclusive mulheres belas, arrumadas, com autoestima, numa pessoa que vê prazer no arrumar-se, só saindo de caso se estiver com uma aparência muito boa, quiçá mulheres deixando pelo ar um fino perfume francês. Bem, só que vemos mulheres aqui mais arrumadas, outras menos... As mais arrumadas têm elegantes chapéus, no modo como Paris pulsa em novidade, em novas modas, numa cidade que, já ouvi dizer, é maravilhosa e, também já ouvi dizer, é uma cidade provinciana, pois o Provincianismo é universal na Humanidade. As frutas e verduras são coloridas e frescas, no prazer de se fazer feira, como na atrapalhada Bridget Jones, a qual faz feira e tenta cozinhar para os amigos, mas cozinheiro de primeira viagem comete lá seus erros, no fato como o Ser Humano foi feito para errar, como num grande tenista, o qual, por mais glorioso que seja, comete lá seus erros na quadra. Podemos ouvir o som de Rua, com carros passando e pessoas conversando, no modo vibrante de Paris, com mulheres exuberantes, no nervo do Mundo Ocidental, com museus absolutamente supremos. Aqui, é uma cena corriqueira, com as demandas do dia sendo cumpridas, num momento de rotina. Algumas mulheres aqui se vestem com roupas pretas, na discrição fúnebre do preto, na cor do Umbral, o lugar no qual só vagam pobres coitados bagaceiros e vulgares, num ambiente grosseiro, em que qualquer intenção fina e polida desaparece, no modo como, na Terra, as pessoas más e as pessoas boas estão misturadas, sendo necessário um exercício de discernimento, como separar o joio do trigo. Podemos ouvir o som dos sapatos caminhando, no eterno fascínio que os sapatos exercem sobre as mulheres, como numa mulher num shopping, entrando numa loja de calçados e experimentando vários modelos, num momento de lazer, em que a mulher está como uma índia fazendo o trabalho de coleta numa floresta, na universalidade do Feminino, pois as diferenças culturais são superficiais, havendo uma indiscutível Universalidade. O chão é cinzento, discreto, incerto, na dúvida cinzenta que acomete nossos dias na Terra: Será que há Céu? Será que há Inferno? O cinza é uma cor que exige Fé, pois não há garantias científicas sobre o pós-morte, pois Tao está acima de qualquer intenção humana definidora, como na frase que abre o livro oracular: “O Tao sobre o qual é possível falar não é o Tao de verdade”. E isto é a Eternidade, pois passaremos por esta, inteira, tentando definir Tao, e jamais obteremos sucesso com essa tentativa! Duas mulheres aqui parecem conversar, talvez fofocando, talvez falando sobre a qualidade dos produtos, numa identidade muito feminina, como mulheres estranhas em um supermercado, pois, apesar de estranhas, podem trocar algumas ideias sobre as frutas e verduras que estão à venda. Em algumas mulheres vemos motivos florais, como numa lembrança que tenho quando visitei o gabinete da então deputada estadual gaúcha Maria do Carmo, com uma mesa cheia de flores ofertadas à deputada, a qual, de certa forma, é extremamente feminina, apesar de masculinamente firme em algumas questões, no modo como cada pessoa tem que partir em busca, dentro de si, de seu próprio oposto – se tenho Sensibilidade, e isso é natural em mim, devo partir em busca de Agressividade, como numa guerra mercadológica entre dois laboratório de análises clínicas.


Acima, La Blanche et la Noire. 1913. A linda jovem está entorpecida, profundamente imersa num sono, alheia a tudo ao seu redor, no modo como todos morremos e renascemos todos os dias. Esta mulher é uma Vênus de linda, e seu corpo é de uma perfeição digna de uma Garota de Ipanema. Seus seios caem sutilmente cada um para um lado, num busto natural, sem a berrante artificialidade dos bustos siliconados, numa sociedade misógina, que impõe padrões de beleza os quais agridem a mulher, como no terrível pós-operatório da cirurgia plástica de inserção de próteses mamárias, como em rostos botocados, os quase perdem a naturalidade. Esta Vênus nua está saudável, com bochechas rosadas, como na embalagem da aveia Oetker, com o patriarca protestante com maçãs do rosto saudáveis. O lençol é branco, da cor da pureza e da Paz, no modo como a moça está num tranquilo sono infantil, sem qualquer pesadelo, sem qualquer aresta dolorosa, na profunda paz de um bebezinho dormindo. Este lençol é como o majestoso manto de Maria na Pietà de Michelangelo, como num vale exuberante, povoado por árvores que vestem roupas maravilhosas, inacreditavelmente ricas. Este corpo é natural, numa nudez que não agride nem choca, mas fascina. Ao lado da moça dormente, uma mulher negra, talvez uma aia, ou uma escrava. A negra é a vigília, como na Vênus de Botticelli observando um Marte dormente. A negra fuma silenciosamente, nos pequenos prazeres da Vida, como uma taça de vinho acompanhada por um bom prato de comida, nas demandas materiais, com pessoas preocupadas com o que reserva o amanhã, como disse Dercy Gonçalves: “Ninguém morre de fome. Ninguém vai negar a você um prato de comida”. A negra está acorrentada ao duro dia a dia da senzala, num continente africano destruído pelas levas e levas de negros arrancados de suas vidas, na crueldade em nome da ambição materialista do homem branco, no eterno talento humano para a estupidez, desculpe meu desabafo, pois não são saudáveis os desabafos? A parede é de um verde esmeralda, como num mar em algum dia, com águas claras. A cor da parede entra em harmonia com as vestes azuis da escrava, a qual não pode se dar ao luxo de descansar, numa impiedosa rotina de labor. É a veste de Iemanjá, no modo como o escravo, numa tentativa de resistência, formulou toda uma cultura afrobrasileira, marcando para sempre a cultura do Brasil, uma nação negra, mulata, mestiça. A negra fuma tranquilamente, com calma, como se soubesse que de nada adianta se afobar ou se precipitar. É o modo como a pessoa pacata vive seus dias com calma, na metáfora do Super-Homem, vivido pelo discreto e pacato Clark Kent – seja uma pessoa pacata e serás um gigante, ou seja, viva seus dias com simplicidade, pois o que é simples coloca nossos pés no chão. A negra usa um lenço laranja, da cor de uma majestosa aurora. E a negra também usa joia rubras, da cor da brasa, com a cruel execução de protestantes hereges no terrível reinado de Mary Tudor – pode deixar, pois o Ser Humano se encarrega de ser o mais cruel e estúpido possível, no modo como Tao só inventa a Paz, sendo a Guerra um capricho humano. A negra está zelosa, e não pode se dar ao luxo de dividir a cama com a ama. A negra é a pessoa que sente na carne o racismo, numa pessoa que optou por encarnar negra e pobre para, nesse contexto de vulnerabilidade social, evoluir como espírito e mortificar ilusões, pois quanto mais mortificado estou, menos os sinais auspiciosos vão me iludir ou enganar. A negra está num breve momento de pausa, de folga, não tendo algo específico para fazer, como em padres ou freiras de algum colégio, dando graças a Deus pelas férias terem chegado! Aqui, entre a branca e a negra, existe um abismo social, como no Brasil, com luxuosos condomínios tendo vista para favelas, neste duro mundo de desigualdades, pois, na dimensão metafísica, não há classes sociais, pois a hierarquia de lá funciona conforme a superioridade moral do espírito. Aqui, temos o dia e a noite.


Acima, Autorretrato. 1923. Aqui, Vallotton olha para o Mundo, e olha de um modo um tanto desacreditado, pessimista, talvez lamentando pelo Mundo ser um lugar tão duro e cruel. Metade de sua face está envolta em sombras, como no lado negro da Lua, numa face que nunca é revelada ao Ser Humano, nos mistérios do Universo que nos cerca – qual será o plano de Tao para conosco, neste Universo tão vasto e enigmático? O artista se aprumou devidamente para o momento de autoimagem, fazendo a barba e penteando os cabelos, num cavalheiro pronto para um momento de interação social, num momento em que buscamos respeitar nosso cocidadão, nosso irmão. Aqui, as costas do quadro são mostradas, na feiúra daquilo que é necessário, porém não belo propriamente. Os percevejos são aparentes, numa espécie de backstage, nos bastidores de um palco, onde o artista não é assediado, mas visto como um colega de trabalho, como numa Xuxa nos bastidores, nunca assediada pelas pessoas que trabalham em tal backstage. Aqui, Vallotton está devidamente vestido e aprumado, numa pessoa que passou por um ritual de aprumação, como numa pessoa com autoestima, uma pessoa que se arruma antes de sair de casa, vendo como sagrado o momento de interação social. A gravata é o siso, a disciplina, quase uma forca para o pescoço, na obrigatoriedade de certas formalidades, como num paraninfo numa formatura, com tal professor comprando sapatos novos para a solenidade. A gravata é o garbo civilizatório, num momento sem grandes descontrações, piadas ou informalidades, como na tensão entre os indicados ao Oscar, no tenso momento em que o famoso envelope é aberto e o vencedor é proclamado. Aqui, temos um senhor que, já maduro, testemunhou os horrores da I Guerra Mundial, no modo como são lamentáveis as brigas e guerras. E a expressão seríssima de Vallotton nos traz o fato de que, infelizmente, o Ser Humano, enquanto encarnado na Terra, jamais deixará de ser aguerrido, só havendo inabalável Paz na Dimensão Metafísica, a vizinhança sagrada onde não há algo a ser ambicionado, pois se não estou o tempo todo querendo mais e mais, posso ter Paz. Aqui, temos um homem no limiar entre Idade Adulta e Velhice, num senhor que morreria apenas dois anos após pintar esta obra. Aqui, Esperança e Amargura travam uma luta no pensamento deste homem, parecendo um homem que, apesar de morrer bem antes da II Guerra Mundial, já previa tal horrendo conflito, pois qual conflito não é horrendo? Atrás do artista, uma porta fechada, uma mortificação, como uma ilusão que foi revelada e decomposta, fazendo com que ouçamos o violento bater da porta, como explosões de bomba, numa mortificação, numa desilusão, numa pessoa que entende que os problemas do Mundo nunca acabarão, só havendo Liberdade de fato no Desencarne. A pálida luz entra no atelier, e não é um intenso e feliz raio de Sol tropical, mas um Sol fraco, suave, como se estivesse lutando para brilhar através de uma camada grossa de nuvens, no modo como a Encarnação é essa obstrução, numa Vida que nunca nos permite que enxerguemos com perfeita nitidez, só havendo certeza naquilo que não corresponde ao Físico, ao mundano. Seu terno escuro é sisudo, talvez ainda em luto pela I Grande Guerra, como se entes queridos de Vallotton tivessem caído em combate, com levas e mais levas de jovens rapazes sendo assassinados, tudo em nome das ambições humanas, pois como pode ser feliz um rei que não está satisfeito com o próprio reino? Certamente, não temos aqui um quadro colorido ou vibrante, mas um cenário cinzento, incerto, no modo como um artista tenta, com grande esforço, saber qual é no Mundo o lugar desse mesmo artista. As costas da tela retratada ameaçam entrar no quadro e obstruir tudo, como se estivessem competindo com o artista. É como se a tela estivesse caindo, num acidente, como numa vida desabando, empobrecendo-se, numa pessoa que notou que é necessário um longo e árduo serviço de reconstrução existencial, pois, como me disse uma médium, sem vontade não há como.


Acima, O Presunto. 1918. Temos aqui algo morto, como numa decepção, numa mortificação, numa desilusão, numa pessoa que teve sonhos frustrados. É o nojo que os veganos têm em relação a alimentos de origem animal; é como os veganos protestam contra produtos que foram testados em animais, num posicionamento mais político do que alimentar. O presunto aqui é subestimado, pois tem uma aparência feia. Porém, ao comermos, sentimos prazer em um bom pedaço de presunto, como na paixão obsessiva do personagem Chaves por sanduíches de presunto, na inevitável crueldade dos abatedouros, executando brutalmente um animal para servir em mesas de restaurantes finos, dando-nos a impressão de que, em tal ambiente fino, não houve sofrimento na mortificação do animal. Um papel branco envolvia e protegia o pedaço de carne, e o gosto salgadinho de um salame conquista do gosto de quem aprecia a cozinha colonial italiana. Este presunto tem a forma de um coração, como se fosse uma mortificação de sentimentos, talvez numa pessoa que, em seu próprio progresso espiritual, viu-se muito enganada e traída pelo próprio coração, resolvendo mortificar este, passando a consultar mais a mente do que o coração, pois tudo perece onde não há perspectiva racional. Podemos ouvir o coração batendo, no mistério da Vida que pulsa, como numa frenética bateria de escola de Samba, herdando da África o sabor brasileiro dos tambores tupiniquins. O presunto aqui parece fresquinho, pronto para ser lasqueado por um cozinheiro que quer, talvez, fazer um macarrão ao molho de salame. Algumas partes deste presunto são amarelas, douradas, na cor do metal dos campeões, como na agressividade carnívora do leão, o rei da floresta, nas necessidades da Vida Material, com presas sendo devoradas para satisfazer um estômago de carne e osso, nas demandas materiais do dia a dia, algo distante do Metafísico, sendo esta a dimensão onde as necessidades materiais desaparecem, fazendo com que o desencarnado abrace uma vida mais simples, na plenitude da falta de fadiga ou cansaço, no espírito desencarnado que se vê livre de necessidades como comer ou dormir – é a Glória. Podemos ouvir o som do papel sendo desembrulhado, e vem à tona o odor da carne de porco, uma carne saborosa e salgadinha, no modo como um cardiopata sofre ao ser tolhido pelo médico em relação a alimentos salgados, pois, como diz a personagem Gema de José Clemente Pozenato, comer é a melhor coisa do Mundo, num bom salame – uma colona da gema. Aqui, temos um tanto de Frankestein, com partes de um organismo sendo dissociadas, num trabalho de desmantelamento, assim como a cidade construída pelo herege faraó Aquenaton foi desmontada depois da morte do rei transgressor, dito como o primeiro indivíduo da História. Aqui, é a força que move a fome de um carnívoro, com felinos africanos tendo que se esforçar para garantir uma refeição, nas vicissitudes da Vida, do dia a dia, no termo “matar um leão por dia”, pois, como diz o Hino Nacional Brasileiro, verás que filho teu não foge à luta, sendo necessário que a pessoa tenha uma alma de guerreiro, partindo em busca de conquistas e realizações, pois é sempre uma luta concretizar um sonho. Aqui, o presunto é revelado, desvelado, descoberto, como nas naus portuguesas descobrindo o selvagem Brasil, na euforia renascentista dos descobrimentos, com terras devolutas sendo competidas pelas principais potências europeias de então, no eterno jogo competitivo entre reinos rivais, no imortal talento humano para a Guerra, em guerras movidas por caprichos, por ambições de reis insatisfeitos. Aqui, este “coração” parece bater sozinho, mesmo que dissociado do organismo original, no milagre da Vida que perdura após o Desencarne, no milagre da Ressurreição de Cristo, rechaçando a mundana matéria e abraçando uma Vida mais desapegada, mais simples, mais limpa e perfumada – é a gloriosa libertação de quem renuncia ao mundano.


Acima, A Mentira. 1898. Temos aqui uma cena muito acalorada, quente, intensa. Os enamorados estão em pleno momento de amor, de envolvimento, com duas almas que se amam profundamente. O vestido da mulher é bem vermelho, sangue, como no majestoso manto rubro em Drácula da Bram Stoker. É a cor da Vida, como tenho uma lembrança de uma feiticeira em Porto Alegre, uma mulher de uma beleza arrebatadora, vestindo um traje vermelho, na beleza da juventude eterna, com uma linda hera brotando poeticamente. Aqui, os enamorados se envolvem e formam um corpo só, numa dança de envolvimento, na intimidade entre duas pessoas que, acima de tudo, amam-se, tendo em suas vidas um quente momento de compreensão e envolvimento, pois o que vale não é a quantidade de Tempo, mas a qualidade, pois, convenhamos, o Desencarne vem a todos, havendo nos enamorados um momento mágico existencial, na beleza que é se entregar nos braços do outro, numa entrega cheia de emoção e desabafo, numa espécie de Psicoterapia sem custo financeiro, pois o melhor da Vida é grátis. Aqui, temos um ambiente luxuoso, aveludado, confortável, num beijo íntimo, com um enamorado recebendo o outro em casa, no conceito erótico de entrar um na casa do outro, com o hálito da casa de cada um. Aqui, o Amor se sobrepõe à Guerra, e temos um momento, uma lacuna harmoniosa, com duas pessoas abrindo a Vida uma para a outra. O homem está todo de negro, na sisudez contrastando com tal cena escarlate. Talvez seja o uso da Razão, com dois enamorados examinando se podem, de fato, viver felizes para sempre, pois como é medrosa a pessoa que não sabe se abrir para o Amor, para a entrega. Um confortável sofá cor vinho abraça os enamorados, na embriaguez do Amor, sendo este a melhor droga de todas, pois é uma droga que não destrói, bem pelo contrário. Aqui, pode ser um dia gelado lá fora, na dureza do Mundo. Mas, aqui dentro, é um ninho cálido, com duas pessoas que simplesmente se esqueceram do Mundo lá fora, desligando-se por um momento, tendo uma espécie de trégua, pois quando a pessoas está feliz e apaixonada, nada significam poderes ambiciosos ou talheres de ouro maciço – a pessoa só quer viver. Esta parede é elegante, listrada, aristocrática, e tem um aspecto dourado, como no dourado salão de baile de O Iluminado, num belo momento harmônico de festa, num momento social em que a dureza do dia a dia é colocada de lado. E por que o quadro se chama A Mentira? Talvez seja porque se trata de amantes cujo namoro não tem futuro. Talvez um esteja mentindo para o outro, tentando ludibriar, explorar ou trair – enganar. Talvez seja uma mulher sociopata, dissimulada, só querendo obter dinheiro do homem. Talvez a “aranha” esteja montando sua teia, querendo fisgar algum mosquitinho desavisado, como o personagem George, do seriado Seinfeld, seduzido por uma mulher no metrô e sendo assaltado pela mesma. É como um sociopata que tenta capturar “pescoços” desavisados, no modo como os vampiros existem, mas vampiros de almas. Um vaso de flores enfeita a cena, talvez num presente do homem para a mulher. As flores são a beleza romântica, um regalo, um mimo, um galanteio, como no professor Girafalez presenteando Dona Florinda, com uma paixão muito clara de ser observada pelas pessoas em volta, como Trinity e Neo em Matrix, num amor fácil de ser observados por todos em volta. O vaso é transparente, talvez na transparência das emoções do homem, talvez num homem sendo ludibriado, acreditando estar namorando uma pessoa boa e virtuosa. Só que estas flores são um tanto escuras, como no terno homem – é o imprevisível, talvez num homem que não está percebendo que está sendo enganado por mentiras. A mulher lhe fala coisas ao ouvido, e talvez um deles dois esteja levando vida dupla, ou então ambos estejam o fazendo, sem haver espaço para que tal paixão se torne digna de respeito, de aprovação social. As cores douradas da parede são o sentimento majestoso de se estar apaixonado, um sentimento de que a Vida está na mais completa ordem.


Acima, Tulipas. 1920. As flores estão meio murchas, agonizando, morrendo, como no melancólico falecimento de uma pessoa que sofreu por meses em uma cama de hospital. É a finitude da Matéria, no fato de que o beijo da Morte sempre chega, cedo ou tarde. É como se as flores estivessem envelhecendo, nas leis naturais que regem a Vida na Terra, com os ciclos de Vida entre nascer, crescer, envelhecer e morrer. Vallotton mostra aqui sua magistral pincelada, com traços em branco ilustrando objetos lustrosos, como as duas garrafas ao lado do vaso. Uma tangerina também envelhece aqui, e não sabemos se ela está boa para o consumo, no fato de que os momentos passam, exigindo que façamos escolhas de Vida, pois já me disse uma grande amiga psicóloga: “A Vida é feita de escolhas”. Muitos livros amontoados ao fundo, com registros um tanto desorganizados, no modo como é inevitável a imperfeição da Vida, pois é uma ilusão achar que tudo está na mais perfeita ordem, havendo sempre uma manchinha preta sobre o Sol. Aqui, não temos uma cena de apolínea ordem, mas uma desordem gostosa, saborosa, numa pessoa no conforto de seu próprio lar, encontrando-se em meio a tal pitoresca desordem, como numa pessoa que chega em casa e calça um par de chinelos ou pantufas, no prazer de estar à vontade, na sensação deliciosa de liberdade e livre arbítrio. Esta cena é um pouco sombria, nas luzes esmaecidas de Vallotton. Talvez seja um melancólico fim de tarde, com chuva, com engarrafamentos nas ruas, numa pessoa ansiosa por chegar em casa e vestir roupas menos belas, porém mais confortáveis. Este vaso está um tanto esquecido e desassistido, numa pessoa que ainda não está percebendo que o Tempo passou e que novos capítulos de Vida estão se desdobrando, pois pobre da pessoa que acha que mais nada precisa aprender. A toalha é de um elegante vermelho escuro, com decoração em dourado, como num majestoso manto de Nossa Senhora em alguma obra renascentista, numa veste digna da Rainha das rainhas, no modo como os entes queridos já falecidos nos cobrem com este manto metafísico, mostrando-nos que, a nível metafísico, ou seja, a nível de Verdade, somos todos príncipes da mesma Rainha, o Imaculado Útero de Virtude que nos gerou e nos amará para sempre, na infinitude do Amor. Vemos aqui papéis de anotações, com uma pessoa tomando notas, talvez para escrever alguma obra, ou um estudo erudito, num lar silencioso, onde a pessoa encontra Paz para produzir sem pressa ou pressões, pois não é insuportável sofrer pressões? Como num artista que, depois de atingir um doce momento de êxito, sofre pressão para se manter em tal nível, o que é impossível, pois, não canso de dizer, o Sucesso é um amante infiel. Talvez aqui esteja parada, estagnada a água do vaso, passando a nutrir a planta com água suja, envenenando as flores. Talvez seja um sentimento de estagnação, de progresso estacionado, catarseando um sentimento de impotência, de inconstância. Nesta bagunça caseira, a própria pessoa se sente organizada, pois consegue se encontrar em meio a um aparente caos, diferente de um acumulador compulsivo, que se perde em meio a mais e mais objetos inúteis, quiçá insalubres. Talvez nesta cena haja um pouco de poeira acumulada, numa estagnação, acumulando poeira. E as duas garrafas, enfeitadas com estampa azul, estejam fazendo companhia uma à outra, numa relação de companheirismo, com duas pessoas que estão muito bem estando juntas, encontrando prazer no simples convívio, numa relação de respeito, pois o que é de um casamento sem respeito entre os cônjuges? Uma discreta cortina esverdeada se coloca ao fundo, num ato de recato, impedindo que as intimidades venham ao Mundo, num pudor, numa discrição, como numa pessoa que não quer trazer algo a público, como num caso extraconjugal, sem futuro. Então, cedo ou tarde, cada um faz suas escolhas, e é alto demais o preço de se fugir da Vida. Neste cômodo há aquele mortal silêncio que dá um zunidinho em nossos ouvidos, no prazer da Paz.

Referências bibliográficas:

Félix Vallotton. Disponível em <www.en.wikipedia.org>. Acesso 18 dez. 2019.

Félix Vallotton. Disponível em <www.metmuseum.org>. Acesso 18 dez. 2019.

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