quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Emilio Emocionando

 

O pintor argentino Emilio Pettoruti (1892 – 1971) escandalizou a Buenos Aires do ano de 1924 com uma exposição cubista, algo como o impacto do Modernismo Brasileiro nas próprias terras brazucas. EP expôs muito também na Europa. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!

 


Acima, Duas Figuras. Temos aqui uma hierarquia, com uma figura se curvando perante a outra, fazendo uma oferenda, talvez para uma divindade, como se estivesse pagando promessa, agradecendo por uma graça ou por um milagre. É como uma humilde aia ajudando a patroa a se arrumar, numa relação de dependência, numa perua que não faz muitas coisas sozinha. Este quadro tem um aspecto acarpetado, com uma parede macia e um confortável tapete, num anfitrião fino e agradável, que deixa os convidados com uma deliciosa sensação de leveza e segurança, num anfitrião que sabe que o Bem é o único caminho. O tapete é a base, a segurança, a referência, pois meu lar está naqueles quem amo, e não numa construção de cimento e tijolos. O colar sendo oferecido é o elo entre todos nós, na grande Internet psíquica, que atravessa o Universo numa velocidade absolutamente mais veloz do que a da Luz, no maravilhoso modo como todos nós, irmãos, estamos conectados, só que cada um em uma etapa diferente de depuração, como numa faculdade, onde há alunos que estão recém ingressando e alunos que estão se preparando para a formatura. O pano de fundo é floral e feminino, como no espetáculo de uma calçada cheia de flores caídas, no frescor de Primavera, num dia ameno, ideal, no qual não se sente frio ou calor, fazendo com que nos sintamos dentro de uma pintura renascentista, num mundo tão belo, distante do poço de vicissitudes que é a Terra, havendo no Plano Metafísico apenas uma exigência – manter-se produtivo. Aqui vemos roupas garbosas, elegantes, esbanjando estilo e ousadia, na ousadia do próprio Pettoruti, impactando uma Buenos Aires provinciana, no murro de frescor que é o ímpeto do artista que quer impactar e ser um agente de renovação, pois, como dizia Elis Regina, o novo sempre vem. As moças aqui calçam sapatos finos, quase cortantes, como na precisão cirúrgica de um fino bisturi, como numa psicoterapeuta que conheço, uma pessoa de inteligência precisa, fazendo diagnósticos precisos, indo direto ao ponto da mente do paciente, na tarefa do psicoterapeuta, que é “dar espetadas” no paciente. Aqui temos uma hierarquia como na Festa da Uva – a rainha está acima das princesas, as quais estão acima das embaixatrizes. A mulher de branco é a classe dominante, quase assustadora, nas classes sociais que se organizam numa espécie de pirâmide, havendo na base o maior peso, oprimindo os humildes com o peso da construção, no modo como, a nível metafísico, a hierarquia não funciona na base do dinheiro e do poder mundano, mas na base do apuro moral – o Bem está sempre acima do Mal; o Bem sempre triunfa; o Bem é o caminho lógico e eterno, fazendo do Mal uma fruta com prazo de validade, prazo o qual sempre, sempre chega. A mulher superior tem unhas bem afiadas, que são a agressividade, uma pessoa com fome de poder e sucesso, numa obsessão, uma fixação, nas mazelas universais do Ser Humano – desejar poder, muito poder. As unhas fincam fundo, dolorosamente, como tomar uma injeção, nas inevitáveis dores encarnatórias, uma dor que, apesar de presente, pode ou não pode causar sofrimento – tudo depende da pessoa; depende de eu sentir ou não sentir pena de mim mesmo... O vestido da mulher dominante tem um terrível contraste, num raio de tempestade, no modo humano de impor brutalmente a hierarquia, afastando-se decididamente de Cristo, o qual se impôs suavemente, irresistivelmente, sempre humilde, sempre oferecendo a outra face, sempre chic. O vestido rubro da aia é como uma acalentadora lareira, num vibrante ritual de Umbanda ou Candomblé. O cabelo da mulher dominante arde como fogo, como numa Elizabeth I, uma rainha autoritária, que aprendeu a importância de um líder ter uma boa aparência em público. O cabelo negro da aia é a incerteza, num mundo duro, o qual nos joga na dúvida cinzenta entre Luz e Escuridão – será que sou especial?

 


Acima, Farfalla. Uma borboleta cubista voando em sua beleza e esplendor, na memória que tenho do casamento de minha irmã ao ar livre numa manhã de Sol de Outono, quando, na cerimônia, uma borboleta amarela voou entre os nubentes. A borboleta é a volta por cima, numa pessoa que foi humilde para, depois, colher os frutos de tal humildade, envolvendo-se no seu feio casulo, ressuscitando em esplendor, numa “vingança”, atingindo todos os que subestimavam a feia lagarta. Aqui é como uma janela com várias cores, numa casa sendo arejada num belo dia ensolarado, trazendo renovação, como se a casa fosse um jardim de piso de carpete fofo, com um perfume de limpeza, num sedutor odor de óleo de peroba, no modo como a limpeza é o essencial modo humano de se parecer ao máximo com as limpíssimas salas metafísicas, num lugar belo onde não há um só punhado de poeira ou fuligem, numa cidade limpa e bem administrada, com um prefeito que ama a cidade, um prefeito que não é obcecado em obter poder, mas um prefeito que ama seus irmãos que moram na cidade. Aqui temos um inevitável formato de cruz, no modo como os sociopatas vampiros temem a lição de Amor do Grande Educador, no modo como Drácula tem pavor de crucifixos, como no arrebatador estilo de Madonna nos anos 80, com seus brincos e pingentes de cruzes sexys, num desejo de revolução e renovação, na missão magna do artista, que é ser o vento de tal renovação. A cruz é a passagem, como numa etapa pela qual devemos passar, no itinerário de encarnação, com uma série de aprendizados, culminando com a Morte, o momento em que nos descolamos dessas vestes complicadas e dolorosas, na glória de libertação na qual nos damos conta de que tudo é o Amor, com as pessoas virando anjos, olhando para o Céu. Aqui temos um jogo complexo de sobreposições, com várias camadas, como num bolo com vários andares, com camadas de sabores e percepções, num sanduíche rico e nutritivo, na doce lembrança de Juventude, indo com os amigos a uma lanchonete para comer xisburguer, no modo como a Vida está nos momentos de maior simplicidade. Temos aqui uma grande base verde de um Jardim de Infância, a época da Vida em que temos a simplicidade de curtir o Mundo da forma mais inocente e espontânea, longe das sofisticadas exigências dos adultos, fazendo estes desembocar em guerras e competições por Poder – a simplicidade infantil faz metáfora com a simplicidade saudável e amorosa do Plano Metafísico. Insinuando-se no quadro vemos uma figura de ovo, no ovo de Páscoa, com seu vazio nos trazendo brindes dentro, na diversão que é encontrar o ninho escondido numa gloriosa manhã de Domingo de Páscoa, como na minha zelosa mãe, que arrumava cuidadosamente os ninhos de Páscoa para mim em minha irmã. Vemos aqui também uma certa porção negra, nos confins do Universo – o que há depois de tudo que podemos observar? Vemos uma janela dourada, na glória de Eos, a deusa grega da Aurora, como na estranha e bela Galadriel de Tolkien, a promessa da Terra da Estrela da Manhã, o lugar que atinge nossos corações com uma lança de Paz e Felicidade, num plano em que só levamos tudo o que somos, como num artista, sempre se reinventando, sempre criando, sempre tocando “o barco” para frente, pois não há enigma na Vida – tudo o que você tem que fazer é seguir em frente, com disciplina, a qual é o que coloca uma vida em ordem. Aqui é uma janela sendo aberta, deixando os raios da manhã entrar, como num túmulo sendo aberto, com a pessoa ressuscitando em um mundo livre, num mundo de luz, como num eterno casamento, com uma Lua brilhando como um prato de aço inox dados aos noivos de presente. Aqui é como um moinho sempre funcionando, como nos parques de energia eólica, no modo sábio de se aliar à Natureza para produzir prosperidade. Aqui é como um presente embrulhado, atiçando a imaginação do presenteado, no ato agressivo de rasgar o papel. Aqui as camadas vão dando espaço umas às outras, como numa peça de Teatro, na qual cada ator tem seu momento individual para brilhar, como na hilária Cinco Vezes Comédia, com cinco grandes comediantes, cada um com seu monólogo.

 


Acima, O Improvisador. Aqui é como num show, no qual a estrela recebe os holofotes e as atenções, no modo como, num monólogo de sátira, a atriz Ilana Kaplan diz que os atores têm um Ego monstruoso, como no tratamento de estrela, com o diretor chegando no Set dizendo: “Como vai, minha estrela?”. Aqui temos um capcioso jogo de luz e sombra, num cenário técnico de mortificação, no qual o espírito se vê livre das paixões sofredoras, passando a enxergar o Mundo e as pessoas do jeito que são, sabendo que nem o Mundo e nem as pessoas mudam... As máscaras são a magia circense, numa jovem Dercy Gonçalves, que decidiu fugir de casa para viajar com uma companhia circense, no modo como o artista tem que ter este espírito mambembe. Aqui é como um alegre carnaval de Veneza, com suas fantasias coloridas e suas divertidas máscaras, no modo como ganhei certa vez de presente de minha irmã uma máscara veneziana, com um nariz descomunal, o qual exigiu distância respeitosa, ao contrário de pessoas que ofendem a Inteligência dos outros, buscando que eu acredite em tolices improváveis – que feio que é o Desrespeito! Podemos ouvir aqui os sons da banda, no modo como as Artes estão umas dentro das outras, como cômodos interligados dentro da mesma casa. Aqui é como uma serenata para a donzela amada, numa amena noite de Verão, com os rapazes cortejando, e a moçoila, de camisola na sacada, suspirando pelo enamorado que se deu ao trabalho de organizar tal serenata, como num Romeu escalando até a sacada de Julieta, como no espermatozoide indo de encontro ao imóvel e passivo óvulo, numa ação agressiva, de iniciativa, no modo como a força gravitacional atrai a água para os pontos mais baixos, formando lagoas, no poder da passividade, como numa moça fazendo simpatias, superstições para atrair o homem amado, na Loucura seduzindo a Razão, numa troca, numa dança de opostos, unificando o Universo em um só ser, um só lugar, no maravilhoso modo como estamos todos interligados, e não falo da Internet física mundana, mas da Internet psíquica, e é tudo muito simples para se conversar com alguém: fique sozinho num ambiente silencioso, feche os olhos e comece a falar com a pessoa que já morreu, pois se você estiver pensando de fato na pessoa, ela estará lá para lhe jogar energias de Contentamento e Paz, num contato mais rápido e barato do que qualquer forma mundana de Comunicação. Aqui vemos as partituras, que são a Disciplina, no modo como apenas a Disciplina do Trabalho é o que coloca em ordem a vida de uma pessoa, ao contrário de uma pessoa que vive ao sabor do vento, sem produzir – tudo o que o desencarnado tem a fazer para ser feliz é se manter produtivo. As golas elizabetanas são fartas, como num artista produtivo, remetendo à Era de Ouro do Teatro Ocidental, com o brilho de Shakespeare, o imortal até hoje altamente respeitado. As máscaras são a deliciosa sensação de se interpretar um personagem, na capacidade do grande ator em desaparecer perante o personagem, como numa genial Meryl Streep, a qual some perante o personagem, o qual, quando vemos, esquecemo-nos de que é a atriz quem está ali. Aqui são os trovadores medievais, no modo como a Música acompanha o Homo sapiens desde sempre, fazendo da Arte esta expressão universal de Inteligência, no equívoco descomunal que é crer que Arte é uma frivolidade de vagabundos. Aqui é um momento de revelação, como na revelação gigantesca de Susan Boyle num programa inglês de cantores calouros, emocionando todos ao redor do Mundo, revelando ser tão bela por dentro, na capacidade da pessoa em, ao ser subestimada, mostrar que o Mundo estava errado em tal subestima. Os músicos aqui estão com chapéus, elegantes, remetendo a uma época em que os chapéus eram regra entre os cavalheiros, numa época que findou. Os artistas aqui caminham em encontro ao Mundo, numa ironia metalinguística, pois é artista falando de artista.

 


Acima, O Quinteto. A inspiração aqui deve ser o Tango portenho, esta dança tão característica da Nação Argentina, remetendo-me a um show que vi em Buenos Aires, com dançarinos de uma técnica impecável. Podemos ouvir aqui o som sedutor do Tango, na cena de Al Pacino interpretando um cego que dança Tango com uma bela mulher, no modo como Evita gostava de dançar o ritmo, que é como o Samba para o Brasil, neste toque africano que traz os sedutores tambores, fazendo do Ritmo em geral esta equação matemática, unificando Emocional com Racional, na junção de opostos que forma o espírito independente, dotado de frieza racional e de cândido afeto, pois ninguém é ínfimo demais para desmerecer a integral atenção de Tao, o Pai que nos ensina que o que nos mantém unidos é somente o Amor, pois como pode existir uma família unida na qual os irmãos se odeiam? No fundo do quadro vemos a pujança urbana de Buenos Aires, numa cidade tão desenvolvida, tão rica, tão charmosa, com amplas vias, cafés, teatros, num lugar tão civilizado, apesar de tão distante da Mãe Europa. Aqui é a expressão de Cultura Popular, pois não se sabe exatamente como surgiu o Tango – este simplesmente surgiu das entranhas do povo argentino, permanecendo com este, na riqueza popular, dando tons únicos a cada grupo humano, numa riqueza, na capacidade humana de criar, inventar, conceber, fazendo da Arte o sangue que faz com que um organismo funcione. Aqui temos uma clara herança cubista, com suas linhas tensas, como pixels que formam quadros complexos. Os senhores aqui usam elegantes bigodes, numa moda que parece estar voltando, com rapazes cultivando o bigode. O bigode é o garbo civilizatório, no ritual de aprumação, num cavalheiro que só sai na rua se estiver devidamente aprumado para os olhos das damas. O bigode é a ordem sendo imposta no caos da barba que sempre cresce, como tomar banhos diários, fazendo com que nos pareçamos ao máximo com os garbosos desencarnados, seres de luz, perfume e cordialidade com noções de polidez que se opõem fortemente à sujeira grosseira do Umbral, as terras subterrâneas que abrigam aqueles que definitivamente esqueceram de que são especiais, pois como posso ser feliz sem autoestima, sem crer que há alguém que me ama muito? As bandas formam um só organismo, e aqui me remete aos músicos tocando Jazz e Blues no Festival Brasileiro de Música de Rua, na fábula da cigarra, a qual adquiriu dignidade ao entreter as formigas. Os senhores aqui estão vestidos com elegância, impecavelmente barbeados, no charme de um homem barbeado e de banho tomado, deixando no ar o fino olor de loção pós barba, arrumando-se para as moças, as quais não gostam de homens sujos – são regras implícitas de convívio social. Aqui, como em qualquer banda, cada integrante tem sua função, sua dignidade, como os órgãos do Aparelho Digestivo Humano. As bandas são um casamento sem relação sexual, e é de admirar as bandas que conseguem se manter coesas e unidas mesmo depois de décadas de carreira, como o respeitável U2 ou os célebres Rolling Stones. Aqui, personagem e prédios formam o mesmo apelo cubista, com linhas limpas, na simplicidade do caminho mais curto entre dois pontos, que é a reta. Pode-se dizer que o líder da banda é o senhor mais ao centro e acima, no poder de um vocalista, no modo como Axl Rose é o eterno líder dos Guns n’ Roses, na divertida canção de Eminem: “As meninas sabem sequer o nome de minha banda, só porque sou o vocalista da banda” – é um desafio a pessoa sobreviver ao Narcisismo. As partituras aqui são a Disciplina, num rígido professor de Música, exigindo muito do aluno, este gesto de competência dos grandes professores, os quais exigem que o aluno cresça, professores que valem cada centavo da mensalidade. Aqui é como as meninas dispostas bem em frente à banda, grudadas no palco, no poder de sedução que os músicos exercem sobre as meninas, dando ao artista esta inclinação de estar no palco, como vi no Theatro São Pedro a Maria Callas de Marília Pêra, esta dizendo: “Sou o centro do Universo!”.

 


Acima, Os Caminhantes. As máscaras são o mistério, num romance policial, com o autor testando a inteligência do leitor. As máscaras são a fantasia, no modo como o Ser Humano constrói fantasias, talvez para escapar momentaneamente de um mundo tão duro e sério como o nosso. É o intervalo carnavalesco, com salões cheios de foliões alegres, num momento em que buscamos ter um pouco da alegria metafísica dos espíritos livres, numa eterna Primavera, num lugar onde tudo é processo e nada finda, na ilusão material do túmulo, a ilusão de que somos finitos e não infinitos – é um equívoco acreditar que o Pensamento está sujeito à finitude material, pois, como diz o Espiritismo, Pensamento é tudo; Matéria é nada. Os foliões tocam alegres seus instrumentos, na letra musical: “Quanto riso, oh, quanta alegria! Mais de mil palhaços no salão!”, no equívoco de uma pessoa que busca, em vão, viver num eterno Carnaval, encarando a Quarta Feira de Cinzas, com os bancos voltando a funcionar e a seriedade da Vida sendo retomada, no equilíbrio que deve haver entre Lazer e Trabalho. As máscaras querem ocultar algo, algum fato, algum segredo, no termo “enterrar a cabeça debaixo da terra”, numa pessoa que está fugindo da seriedade da Vida, evocando o hino: “Verás que filho teu não foge à luta”, ou seja, encarar a Vida e fazer algo de produtivo de seus dias na Terra, esta esfera que pode ser Céu; pode ser Inferno. Os senhores aqui têm um aspecto meio medieval, ou meio elizabetano, no poder das tradições, as quais existem para que não achemos que o Tempo passa, pois, a Nível Metafísico, não há Tempo, pois Tao, em sua imensidão imensurável, é eterno. Pettoruti traz aqui suas linhas tensas cubistas, como várias faces lapidadas de um diamante, no encanto de objetos brilhantes, com tanto luxo, tanto bem, tanto bem estar, tanta beleza, dando-nos uma ínfima amostrinha da glória metafísica que nos espera, fazendo com que reencontremos nossos queridos avós, todos jovens, belos e eternos, levando uma vida produtiva e alegre, na questão de que, para que seja alcançada tal glória, é tudo uma questão de Tempo, no modo como, na Vida, nada mais natural do que a Morte, ou seja, aguarde e confie, mas não leve uma vida improdutiva na Terra. A luminosidade deste quadro traz aquela enigmática luz etérea da Argentina, aquele Sol tão dourado, numa luz tão fina e dourada, no mistério de como a Argentina tem tal beleza, fazendo metáfora com os dourados cabelos de Evita Perón, a figura mais famosa, forte e controversa da História da Argentina. O fundo deste quadro é como uma decoração ao estilo Tudor, com suas paredes elegantemente forradas de placas de madeira, como barras de Chocolate ao leite, na revolução gastronômica que o Chocolate causou no Mundo. Aqui, a sanfona é a resiliência, a resistência às frustrações, numa pessoa que se frustrou muitas vezes, desembocando numa profunda decepção existencial, depressiva, desanimadora. É a resiliência de uma argola de borracha, a qual, mesmo sendo tão esticada, estressada e torturada, volta ao estado inicial, tendo que reconstruir tudo do zero, nesta força que a Vida tanto exige que tenhamos. As máscaras aqui são como binóculos, na capacidade visionária de pessoas excepcionais, de inteligência acima da média, como artistas geniais e visionários, que atiçam a sensibilidade do público, trazendo este para dentro de uma mente criativa e vibrante, divertida, excitante. Os foliões aqui são elegantes, impecavelmente aprumados, no ritual social de aprumação, que vai desde a entrada num banho até os retoques finais, como uma borrifada de perfume, na letra da canção: “Todo mundo espera alguma coisa de um Sábado à noite”. Aqui existe um duo, uma sociedade, um trato entre parceiros de profissão, numa banda coesa, harmoniosa, na qual tudo se organiza como a função de cada tecla num piano, num organismo saudável, que bem funciona, no modo como para que este “casamento” dure para sempre são necessárias doses cavalares de paciência. As golas dos cavalheiros são limpas e engomadas, no prazer de se sair de casa arrumado e perfumado, preparando-se para a interação social.

 


Acima, Pensativa. Este cubismo aqui é como pixels, como nas sugestivas manchas impressionistas, desafiando o espectador a observar além do óbvio, estimulando o uso da subjetividade, da sutileza. A moça está num momento de introspecção, refletindo sobre algo. Ela é bela. Seu decote é provocador; o decote é a beleza feminina, remetendo ao Outubro Rosa, que visa combater o Câncer de Mama, enchendo de iluminação cor de rosa tantos prédios Brasil afora. A moça está arrumada para a pose, pacientemente esperando para que o artista a pinte, num momento de sussurrante silêncio dentro do atelier, naquele silêncio em que podemos ouvir aquele zunidinho no ouvido, num silêncio sutilmente cortado pelo pacato som das pinceladas na tela, como na cena inicial do filmão A Rainha, com a protagonista posando para um paciente artista, o qual diz que a Tradição é uma das poucas coisas boas do Mundo. Esta moça é moderna, sofisticada, como numa Tarsila do Amaral, a qual, além de bela e formosa, tornou-se tal monstro modernista brasileiro. A moça aqui tem o frescor de um olor floral, como nas debutantes vestidas de branco, numa espécie de prenúncio de uma noiva de branco entrando na Igreja, na obrigação patriarcal que pressiona a mulher a ser passiva e obediente a um homem, sempre representada por este, nunca assumindo as rédeas da própria vida. Aqui é um tenso quebracabeça, como num complexo de barracos numa favela, num crescimento desordenado, numa prova clara dos abismos sociais brasileiros, num mundo estratificado ao redor de Poder, e não de Bondade, sendo esta tão subestimada pelo ambicioso Ser Humano. A gola está limpa e alinhada, e a moça parece estar num café elegante de Buenos Aires, uma cidade tão garbosa e elegante, causando “inveja” aos demais países da América Latina, numa terra que anteriormente passou pela tutela civilizatória inglesa, num passado que se chocou radicalmente à Guerra das Malvinas, na qual os antes aliados tornaram-se inimigos – não deixa de ser irônico. O fundo é preto, exatamente para realçar o colorido da moça. Seu chapéu é ousado, remetendo ao costume das mulheres inglesas de sair com seus chapéus ao dia e só retirá-los no início da noite. A moça senta pacientemente, esperando ser servida no café, remetendo ao célebre café portenho no qual havia uma ala exclusiva para frequentadores do sexo masculino, num Clube do Bolinha misógino, no doloroso fato de que, no frigir dos ovos, vivemos num mundo de homens. A segregação sexual é natural no Ser Humano, como no primevo modo de, ao inventar divindades, o Ser Humano criou deuses e deusas, havendo em Zeus, por exemplo, o rei dos deuses, uma figura patriarcal, no inevitável patriarcalismo do modo como imaginamos Deus – um patriarca de longas barbas brancas, como num Papai Noel, nos “pais” de um país. A moça está com os braços levemente cruzados, pudica, tímida, como se estivesse se sentindo violada pelo olho de Pettoruti. Sua gola faz um ziguezague, como num artesanato indígena, no ancestral modo humano de pintar e decorar objetos. O ziguezague são os altos e baixos da Vida, numa liquidiscência que leva ao topo e à depressão; de alfa ao fundo do poço. É o modo como ninguém está por cima o tempo todo, e páginas amargas mesclam-se com páginas doces, na bela roseira com seus espinhos... A moça mostra a beleza de seu peito, digna de Rainha da Festa da Uva. É um dia de clima ameno, não quente, na dádiva de um dia fresco de meia estação, nem frio, nem quente, no modo como Tao é esta eterna Primavera, com flores exuberantes caindo sobre calçadas elegantes. É a vitória de Beleza sobre o Mal; é a vitória infindável da Paz Metafísica, a vizinhança onde estamos cercados de amigos queridos. Podemos ouvir a sutil respiração da moça, com seu peito inflando e murchando, na força incessante da Vida, sempre fluindo, sempre produzindo, como Tao, o eterno artesão, sempre nos deslumbrando, como nas majestosas roupas que vestem as matas e florestas.

 

Referências bibliográficas:

 

Emilio Pettoruti. Disponível em: <www.en.wikipedia.org>. Acesso em: 7 out. 2020.

Emilio Pettoruti. Disponível em: <www.wikart.org>. Acesso em: 7 out. 2020.

Emilio Pettoruti Obras. Disponível em: <www.google.com>. Acesso em: 7 out. 2020.

 

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