Longeva californiana, Betye
Saar nasceu em 1926. É reconhecida por suas assemblages, por sua politização e
pelo modo como traz a questão da mulher negra americana. Lenda da Arte Contemporânea.
Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!
Acima, A Janela da Garota Negra. A obra traz um pouco de Astrologia, nos
ciclos celestiais, com os ciclos lunares e solares fazendo amor, nas
constelações selando destinos, na magia dos signos, talvez numa Betye que adora
horóscopos e mapas astrais – não sou simpatizante de astrologia, mas respeito, pois
esta não deixa de ser fascinante. Temos, na base da obra, uma obra toda negra,
da cor do céu noturno, num breu profundo. É uma faxineira, negra, pobre, na
base da pirâmide social, numa posição social humilde e vulnerável, acostumada a
ser escrava de serviços subservientes, numa vida árdua, de mulher que acorda de
madrugada para ir à luta. A mulher abre as mãos, receptiva, querendo captar
algo, alguma energia, alguma força para sobreviver em um mundo tão duro, no
impiedoso despertador tocando, no momento de um sacrifício, no qual o pecadinho
da Preguiça tem que ser aniquilado pela Disciplina. Na moça negra, dois olhos
se destacam, como vivos olhos abertos em uma máscara mortuária egípcia, como
numa pessoa que tem a mais clara noção de que desencarnou, e de que precisa se
preparar para a Vida Metafísica, uma vida tão mais simples, tão mais
maravilhosa para aqueles que amam trabalhar e estudar. São como olhos
arrebatadores, claros, penetrantes, numa pessoa de alta sensibilidade, na
sensação de que estamos olhados por dentro, de forma penetrante, num olhar que
faz com que nos sintamos nus, expostos, como nos agudos olhos da Galadriel de
Tolkien, olhando fundo dentro da alma de um homem que secretamente deseja obter
poder e mais poder, na capacidade que as pessoas altamente sensíveis têm em
conversar telepaticamente. Aqui, os ritmos cósmicos se desdobram por
constelações, numa Via Láctea que não cessa de girar, numa dança cósmica de
sedução, no poder que os brujos têm
em nos conectar a tal totalidade, a tal organismo, a tal universalidade, no
modo como o Universo é sexy, muito sexy, sendo desbravado por supertelescópios,
no erotismo de se observar dentro da casa dos outros, no prazer voyeur em
invadir a privacidade alheia, numa tara, um desejo incontrolável de penetrar no
particular, no privado, no proibido. No topo desta obra, corpos celestes, como
estrelinhas doces, na inteligência binária da criança, para a qual se algo não é
do Bem, é então do Mal, e viceversa, sem a sofisticação do adulto no estranho,
no enigmático, em Tao, o ritmo sedutor que rege o Cosmos. É como na canção Smooth Operator, de Sade, num
telefonista de voz macia e sexy que nos conecta pelos cantos longínquos de um
Universo que, apesar de imenso, é um só, como na criancinha, que nasce nua, inocente,
sem as malícias mundanas, sem as serpentes que seduzem homens e corrompem
almas, no modo como se desdobram pelo mundo as bajulações, as massagens de Ego,
e isso não é Tao, pois Tao é inbajulável, incorruptível, pois é a excelência
moral dos espíritos superiores. Esta obra traz uma janela, com vários
compartimentos, como nas formas de Mondrian. Um compartimento traz um
esqueleto, no modo como a Morte não pode ser indefinidamente adiada, tendo que
ser encarada, cedo ou tarde, pois é fato que ninguém está no Mundo para sempre,
sendo este um mero lar de passagem, como num doente no hospital, esperando pelo
glorioso dia da “alta”. Noutro quadro vemos um lobo uivando à noite, à Lua, nos
sons selvagens da selva, num terreno perigoso, em que a pessoa tem que ficar
atenta e esperta, sempre aprendendo a se proteger do Mal. Vemos uma águia com a
palavra Amor escrita sobre si, no
modo como só o Amor liberta, pois se sei perdoar, posso libertar, e a Vida
Eterna é palco para todo e qualquer infindável perdão. Vemos duas criancinhas
abraçadas, na candura das desinteressadas amizades de Infância. Vemos uma
cabeça com um cérebro multicolorido, na criatividade. Vemos um ovo cinzento, um
camafeu, no poder da tradição, dando a impressão de que o Tempo não passa.
Acima, A Libertação da Tia Jemima. Lembram da cena em que Scarlet O’hara
surrava uma escrava negra com uma chibata? A libertação pode ser o dia da
alforria, ou o dia do Desencarne, como na redenção do último dia de aula do
ano, na entrada libertadora das férias, ou na deliciosa sensação de uma
sexta-feira, no atual termo “sextou”. A Escravidão é uma das maiores provas e
evidências da brutalidade e da crueldade humana, havendo entre EUA e Brasil uma
semelhança neste sentido, ambas nações que se fizeram da força escrava. Aqui, a
mulher negra sorri feliz, satisfeita. O lenço amarrado na cabeça denota o
serviço da casa, como cozinhar, passar, limpar e até amamentar os filhos
brancos da senhoria, no termo “mãe preta”. A mulher tem ar de matriarca, e é
forte o bastante para desempenhar uma rotina brutal de serviços de casa, numa
mulher que teve que se fazer forte para enfrentar tal vida subserviente. Em uma
das mãos, a vassoura, símbolo do labor doméstico, no objeto de limpeza, de
depuração, num espírito que cresceu muito em meio a tal árdua encarnação de
labor suado e sofrido. Noutra mão, uma carabina, que é a agressividade do
caçador, esforçando-se para trazer comida à mesa para as crianças, na
universalidade que relega aos homens o serviço da caça, deixando às mulheres os
trabalhos mais domésticos e menos agressivos, no termo machista nazista: “Crianças,
Cozinha e Igreja”. Uma moldura vermelha cerca a obra, no sangue de escravos
acorrentados e chicoteados, servindo de exemplo aos demais escravos da senzala:
Comporte-se ou será chibatado, na tradicional e ancestral estupidez humana em
impor as regras de força violenta e desumana – nada mais humano do que ser
desumano! A matriarca negra exibe um retrato, no qual sorri sustentando no colo
uma criança branca. A criança branca chora, e a mulher negra sorri, numa
inversão, como dizia Jesus: “Os últimos serão os primeiros”, ou seja, quem se
impôs de forma estúpida pagará o preço, enquanto o injustiçado será
recompensado. É como numa certa igreja colonial brasileira, na qual havia uma
parte para os brancos ricos e uma parte para os pretos pobres – a parte para os
ricos era cheia de detalhes dourados, complexos, carregados, excessivos; a dos
pobres era simples, branca, limpa, minimalista, taoista, maravilhosa, ou seja,
quanto mais a pessoa é apegada ao material, mais complicada será tal vida, e
mais complicado será o Desencarne. Beleza rima com limpeza, e quanto mais
simples sou, mais maravilhoso. A carabina é a agressividade num ringue, numa
vida sendo batalhada, numa pessoa que não nasceu rica, e que precisa acordar
cedo para a lida, sendo pobre a vida do rico que não trabalha, pois o trabalho
faz com que a pessoa, qualquer pessoa, fique com os pés no chão, ao contrário
de uma pessoa vazia, que vive ao sabor do vento e que nada produz. Produza! À
frente deste retrato, um vigoroso punho negro, que representa a luta pelos
direitos civis, no vigor de uma luta, de uma reivindicação, na luta pela
igualdade de direitos em
uma América um tanto complicada em relação à questão racial,
como no infame Apartheid, no patético modo humano de segregar as pessoas só por
causa de tolas questões raciais. Bem na base da obra, uma nuvem, que é o sonho
de um mundo melhor, de um mundo menos desigual, menos cruel, menos estúpido. É
a cidade espiritual, acima do Mundo Material. É o Plano Metafísico, no qual as
diferenças mundanas desaparecem, num plano em que tudo o que temos que fazer é
nos arrepender de ter agido com preconceito. Como é linda a âncora Maju
Coutinho, por exemplo. Como são lindos os negros. Como é fútil a segregação
racial, num Brasil tão miscigenado. O punho aqui tem unha vermelha, ou seja, é
de uma mulher, e representa tal força feminina, feminista, no modo como são uma
ilusão os gêneros, visto que os anjos, os seres superiores, não têm gênero. Na
estampa por trás desta obra, o clichê de uma negra sorridente, vitoriosa, como
numa Naomi Campbell, a modelo negra que foi barrada ao entrar na primeira
classe de um voo.
Acima, Capturar um Unicórnio. A Lua tem algo de místico, prateada,
misteriosa, com seus ciclos que desafiam a adimplência inabalável da luz solar.
A Lua traz sua luz enigmática, a qual, apesar de iluminar, nunca entrega o
jogo, no ritmo cíclico que faz com que sua gravidade afete todos na Terra. A
Lua é o símbolo dos namorados, identificando-se com o Feminino, com um jogo
cíclico de esconde & revela, impedindo que nós, na Terra, observemos sua
face nunca revelada, como no vestido de Bete Menetrier quando esta foi eleita
rainha da Festa da Uva, num traje com bolas prateadas, bem na época em que o
homem pisou na Lua pela primeira vez, no frenesi da obraprima 2001. Aqui, também temos a mística do
unicórnio, um ser mágico que povoa a imaginação de menininhas. O corno na testa
é o falo, como na agulha que espetou e enfeitiçou a Bela Adormecida. O corno é
uma grande pirâmide, uma grande Torre de Babel, com uma base sólida, feito de
Engenharia para suportar grandes cargas, na evolução arquitetônica da Humanidade,
na construção de torres cada vez mais altas, como numa competição para ver quem
tem o falo maior, como em qualquer competição, como numa corrida de Fórmula 1,
na tensão para vermos quem é mais competente. O unicórnio aqui é belo, na
inspiração de Tao ao inventar o cavalo, um dos animais mais nobres, majestosos
e belos da Criação, na prova da eterna sofisticação de Tao, o grande designer,
o designer que nunca para de elaborar. Mas quem predomina no palco é a mulher
nua, altamente formosa, voluptuosa, num corpo escultural, como na maravilhosa Playboy
de Marisa Orth, num ensaio de tão bom gosto, na distinção decisiva entre sexy e
vulgar. A mulher é uma miss, uma musa, uma deusa. Parece ser negra, como me
disse certa vem uma pessoa: “Para ficar olhando, gosto da Gisele; para transar,
prefiro a Naomi!”. A mulher negra aqui vai rebolando pela passarela, numa
modelo competente, que sabe desempenhar o papel de carregar, majestosamente,
peças de roupa, fazendo com que a roupa pareça ser tão, mas tão maravilhosa. O
cenário aqui é noturno, na capacidade de alguns seres em enxergar no escuro,
num animal que sai da toca só à noite, como um notívago, numa pessoa que troca
o dia pela noite, transitando na contramão, transitando contra o Senso Comum, o
qual define que a noite foi feita para descansar, como numa pessoa pragmática, que
vê a noite como um momento de descanso, ao contrário de uma pessoa mais
sensível, que contempla as estrelas e pergunta-se sobre os segredos do
Universo, ele lar tão, mas tão vasto, sendo inútil contar estrelas. O céu
noturno é de um azul del rey, marinho, discreto, como na cor dos oceanos da
Terra vistos pelo Google Earth, no poder das cores discretas, mistas, nunca
entregando o jogo por completo, sempre insinuando puxar mais para este ou mas
para aquele tom. Completamente nua, a mulher pisa com os pés na terra, como
numa dança tribal em alguma antiga tribo africana, numa Betye Saar expressando
a força da cultura afro em
uma América tão protestante, tão avessa a sofisticações como
um nu artístico, sendo este algo absolutamente inofensivo, na beleza do corpo
humano, uma prova da genialidade de Tao, o Pai Arquiteto. Aqui, a negra e o
unicórnio são íntimos um do outro, e formam um só organismo. Podemos ver a
mulher montando no bicho místico, como na alma do Negrinho do Pastoreio, o
qual, depois de ser condenado a uma morte cruel em um formigueiro, ressuscitou
abençoado por Nossa Senhora, cavalgando pelas terras noturnas do Rio Grande do
Sul. Realmente, não há no mapa o quanto a África e seus filhos sofreram com a
Escravidão. Vemos uma folhagem farfalhando à brisa da noite, na magia de uma
noite amena, gostosa, agradável, num momento ideal, no qual não temos calor ou
frio. Aqui, a luz lunar é suave, amena, acariciando. A negra tem semblante
muito tranquilo, plácido, como se fosse uma deusa indígena que fascina o Ser
Humano em relação ao corpo celeste que faz um infindável striptease, atiçando
os uivos dos lobos na noite solitária.
Acima, parte da mostra Betye Saar - Dançarina Inquieta. No
centro da composição, a luva de boxe é a luta de uma mulher negra querendo se
estabelecer num mundo de brancos machos alfa. É a lida pela Vida, numa pessoa
que se deu conta de que, apesar de precisar ter uma certa autossuficiência, tem
que obter alguma ajuda de outrem, no caminho da caridade, do amor que faço para
ajudar um irmão. É o termo “não se atirar nas cordas”, dito para mim por uma
certa espírita. Por toda esta obra de Saar, vemos miniaturas de matriarcas
negra, gordas, fortes, forjadas na rotina árdua de serviço doméstico, no modo
como é preciso ser macho para ser mulher! É uma escrava acorrentada aos
serviços do lar, tendo que se desdobrar em duas para dar conta de todo o labor,
num trabalho de “enxugar gelo”, pois, a cada dia, a sujeira tem que ser varrida
novamente, na rotina diária de serviços, uma rotina que dá à pessoa a sensação
de produtividade. Num dos quadros, vemos a questão do Racismo, numa menininha
negra montada em uma espiga de milho branco, com os dizeres: “Torne-se branco”,
como no incompreensível Apartheid, na ilusão de que os espíritos desencarnados
têm raça, sexo, classe social etc. Ou seja, o espírito tem que ser muito
corajoso para topar encarnar negro em um contexto tão opressor e
preconceituoso. Essas negras gordinhas aqui têm um lenço amarrado na cabeça, no
traje usual do dia a dia. O lenço é a disciplina, como cabelos arrumados,
disciplinados, numa pessoa que encara uma lida que exige alta disciplina do
indivíduo, como no momento de levantar da cama de manhã, mesmo em geladas
manhãs invernais, com meu pai dizendo, ao acordar minha irmã e eu: “É fogo!”.
Em outro setor da obra, vemos um globo, como o Globo da Morte num circo, com as
linhas de latitude e longitude formando uma jaula, uma prisão, com seres negros
presos ali, no modo como o Racismo é universal, infelizmente, e acontecem os
lamentáveis genocídios, com tantas vidas insanamente ceifadas na II Guerra
Mundial. É a prisão que é o corpo carnal, como um prisioneiro contando os
minutos para ser libertado e receber a “Carta de Alforria”. Este globo, da cor
vermelha derramada pelo sangue do escravo negro chibatado pelo senhor branco,
sustenta-se sobre uma cadeira, como uma cadeira escolar, no modo como, desde
criancinha, a pessoa se depara com a exigência em relação à Disciplina. Vemos
no conjunto uma pequena gaiola, com seres humanos sendo tratados de um modo com
o qual sequer se trata um cachorro. É a senzala, numa ironia cultural, pois o
prato mais saboroso e tradicional da Culinária Brasileira, a Feijoada, nasceu
da comida que era servida aos escravos, numa junção não criteriosa de carnes
aleatórias. Debaixo desta gaiolinha, um relógio, marcando as horas do dia, num
trabalhador contando os minutos para que o dia de labor termine, talvez numa
gloriosa e redentora sexta-feira. Do outro lado deste globo, vemos uma
matriarca negra em cima de uma balança de peso, no modo como os escravos eram
tratados como animais no mercado de venda de mão de obra do Brasil Colonial, no
incrível talento humano em oprimir quem é tão filho de Tao quando o senhor
branco é filho de Tao. No topo da composição de Saar, uma negra sorridente,
talvez contentada com uma vida tão árdua, no modo como, tanto para quem
trabalha, quanto para quem não trabalha, a Vida é dura, mas a dureza produtiva
tem mais sentido. Esta mulher mostra o dedo indicador, como num momento de
escolha, talvez na revolução que foi os EUA permitindo direito de voto para
cidadãos negros, nas boas intenções democráticas, buscando igualar um corpo
social tão desigual... Mais à esquerda na composição, uma caixa aberta, como
num coração aberto, de uma pessoa que decidiu viver de bem com o Mundo,
aceitando este, sabendo lidar com este, como se soubesse que o Mundo e as
pessoas não mudam. Vemos pedaços de algodão, nos inevitáveis calos de escravos
negros colhendo algodão no Sul dos EUA, encontrando na Arte, como nos Blues e
no Jazz, uma válvula de escape em meio a uma vida tão dura e subserviente.
Vemos um casal idoso negro, num país em que a miscigenação é exceção, num país
em que brancos têm filhos brancos e negros têm filhos negros.
Acima, Qualidade Suprema. De novo a questão da mulher negra, como nos
abismos sociais brasileiros, moldados da Era Colonial. Aqui, a mulher está com
seu avental branco, pronta para mais um dia de labor árduo, cuidando da casa,
da comida e das roupas dos patrões brancos. A mesa de madeira, que sustenta
esta obra de Saar, são as pernas firmes de um proletário, condenado a habitar
as camadas mais humildes da pirâmide social, como num gari, o qual, apesar de
desempenhar a importante tarefa de limpeza pública, leva uma vida dura, fazendo
com que sua própria vida seja uma vassoura, varrendo indefinidamente as ruas de
uma cidade, tudo isto para ganhar um magro salário. A mesa é o sustentáculo, a
força para se encarar uma encarnação tão sofrida, num espírito que decidiu
encarnar mulher negra num mundo tão machista e tão racista – é preciso ter
coragem para programar tal encarnação. Vemos uma bacia, o instrumento de labor
doméstico, talvez numa era em que não havia sido inventada a maravilhosa
máquina de lavar, enxaguar e torcer roupa. A roupa aqui é lavada com força, com
vigor, numa mulher entalhada nas durezas de uma rotina de labor. Nasci e cresci
acostumado em ter empregadas em casa, e nunca vou me esquecer das palavras de
meu pai: “Essas mulheres que trabalham aqui, elas não vêm aqui por que gostam.
Elas trabalham aqui porque elas precisam de dinheiro para ajudar a sustentar as
respectivas famílias”. Aqui, a roupa branca está sendo lavada, na supremacia
branca, fazendo da Escravidão uma das maiores provas da rudeza e da violência
humana, nas mazelas humanas de filho de Tao explorando filho de Tao, num
pesadelo encarnatório, havendo, a nível metafísico, a morte de tais abismos
sociais, havendo, nesse nível, uma única hierarquia – a Depuração Moral, pois,
quem é mais elevado moralmente, rege o restante. No topo desta obra, vemos uma
tábua, que pode ser uma tábua de lavar roupa, num labor acentuado, como dizia
uma vizinha minha ao marido, em uma de suas brigas: “Eu me matando para manter
esta casa limpa e organizada!”. Não há muita diversão no labor aqui, numa série
repetitiva de movimentos, tediosa como puxar ferro em academia de musculação.
Neste momento, a mulher tem que empreender um esforço viril, como na pragmática
personagem Pierina de O Quatrilho,
uma mulher boa para o trabalho doméstico, esfregando com vigor o chão, mantendo
a casa na mais perfeita e disciplinada ordem, ao contrário da outra
protagonista, Teresa, uma frágil mulher sensível que sonhava com uma vida
urbana e sofisticada, longe da árdua vida de camponesa. Podemos ouvir o som do
labor de esfregar a roupa, no barulho da água espumosa, como disse certa vez
uma simpática senhora, dona de um programa televisivo de culinária: “Mão de
dona de casa está sempre limpinha”. Ou como dizia, brincando um professor meu
de Inglês: “Mulher tem que esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque!”.
Como é duro ser mulher! Aqui, a negra desempenha uma função sem a qual a casa
dos patrões não poderia funcionar, sempre subestimada, sempre mal paga, talvez
numa pessoa que nunca teve a oportunidade de estudar, podendo até ser
analfabetas essas mulheres negras oprimidas, num eterno papel coadjuvante,
havendo a libertação do Desencarne, quando a pessoa, finalmente, pode escolher
um trabalho não subserviente para fazer, pois os empregos metafísicos exigem da
cabeça da pessoa desencarnada. Aqui, vemos a espuma se formando, como ondas do
Mar, como no mar psicodélico de espuma da divertida comédia Um Convidado Trapalhão, com o ator
genial Peter Sellers. Aqui, sentimos o cheiro de sabão em pó, de água
sanitária, numa mulher batalhadora, que se acostumou a almoçar depois que os
patrões acabassem a refeição e retirassem-se da mesa. Talvez tenha sido um
espírito que, em uma vida anterior, tenha levado uma vida de privilégios fúteis
e auspiciosos, encarando uma nova vida de muito realismo.
Acima, sem título. O relógio
é a passagem do Tempo, numa vida que se desdobra, no modo como todos temos que
encontrar algo proveitoso para fazer com nossos dias na Terra, como dizia minha
querida avó Nelly: “Sem a Poesia, o que faria eu desta tarde brumosa?”. Podemos
ouvir o tictac numa sala silenciosa, com o austero badalar que anuncia a nova
hora, na poderosa convenção social de Tempo e Espaço, havendo no Umbral a perda
de tais noções norteadoras. Podemos ouvir o som do piano, numa pessoa estudando
ao ponto de se tornar íntima do instrumento, talvez num rígido e disciplinador
professor, o qual exige friamente do aluno, naqueles professores marcantes,
maravilhosos, que valem cada centavo da mensalidade, pois o talento didático
não é de todos os que ensinam... Temos aqui uma metalinguagem, pois é Arte
(Plástica) falando de Arte (Musical), abrindo uma metáfora, como se Saar fosse
tal pianista, tocando as teclas. Acima destas teclas vemos a silhueta de um
pássaro, que é o desejo de libertação, de recreio, de pausa, de descanso, como
na hora de se tomar um café no meio da tarde, papeando com colegas do trabalho,
num ambiente em que deve ser respeitada a norma de respeito e convivência, pois
como posso ser feliz em um trabalho no qual me sinto assediado moral ou
sexualmente? O pássaro é a liberdade dos espíritos que não são escravos da
Matéria, do mundano, em pessoas materialmente desapegadas, ao contrário das
obsessões mundanas e relação a Poder e Dinheiro. Nesta obra, vemos seis
máscaras de estilo claramente africano, na identidade do negro americano, para
o qual não há só séculos de escravidão, mas também toda uma herança afro de
Arte e Cultura do Continente Negro. É o orgulho afro, como nas vestes da
cantora negra Erika Badou, numa busca por identidade, por estilo, como nas
contundentes obras africanas nas galerias do Met, em Nova York. As máscaras são
mágicas, como em cerimoniais tribais. É como um ator encarnando um papel, usando
tal “máscara”, num divertido baile de carnaval, onde extravasamos nossas
fantasias psíquicas, assumindo formas, como no americano Halloween, quando as
pessoas se fantasiam do que quiserem, revelando paixões, como uma pessoa que se
fantasia de seu personagem predileto, numa ocasião em que as personalidade
públicas são imitadas, como a rainha da Inglaterra. As máscaras são encarnações
de deuses, de divindades afro, em rituais coletivos de purificação, ou de atos
de curandeiros. As máscaras são tentativas de retratar esses deuses, num
momento de incorporação, quando um líder tribal veste seus trajes cerimoniais,
havendo no ritualismo uma tendência tão humana. Nesta obra, há a contundente, a
incrível e a chocante imagem das costas de um escravo negro, cheias de
cicatrizes por conta de várias cruéis chibatadas, num momento em que o
castigado serve de exemplo a todos os outros negros: “Comporte-se ou acabará
deste jeito”. É uma pessoa que quis encarnar num contexto absolutamente cruel,
na insanidade que é irmão derramando sangue de seu sangue. Aqui, as cicatrizes
contam uma história, mas as cicatrizes são passageiras e transitórias, pois, na
beleza dos espíritos desencarnados e moralmente elevados, não há cicatrizes,
rugas ou espinhas... Difícil imaginar crueldade maior do que causar tais
cicatrizes. Como pode ser feliz assim uma pessoa que trata os outros assim?
Atrás desta foto contundente, vemos figurinhas que parecem ser negros em um
cruel navio negreiro, atravessando um oceano para desembocar nas plantações de
café, numa vida sem sentido, só com labor, pois é muito infeliz a pessoa
viciada em trabalho, como disse a atriz Jodie Foster, a qual proíbe a si mesma
de trabalhar nos fins de semana. É a redução de um ser humano a uma mercadoria,
num indivíduo, num filho de Tao, um filho que serve só como bateria alcalina para
alimentar um sistema cruel, como em Matrix,
trilogia na qual um cidadão é um escravo de um sistema disfuncional.
Referências bibliográficas:
Betye Saar. Disponível
em: <www.en.wikipedia.org>. Acesso em: 21 abr. 2020.
COTTER, Holland. It’s about time! Betye Saarr’s long climb to the
sumit. Disponível em:
<www.nytimes.com>. Acesso em: 21 abr. 2020.
OLLMAN, Leah. In the Studio Betye Saar. Disponível em: <www.artnews.com>. Acesso em: 21 abr.
2020.
ST. FÉLIX, Doreen. Moma’s heady
introduction to Betye Saar, “The Conscience of the Art World”. Disponível em: <www.newyorker.com>. Acesso em: 21
abr. 2020.
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