quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A Arte como Lei



Paulistano de 1932, Nelson Leirner passou pela Ditadura Militar Brasileira e foi considerado um artista polêmico. Vem de uma família de artistas e viveu nos EUA por cinco anos. Em 1961, sua primeira mostra individual em São Paulo. Em 67, premiado na Bienal de Tóquio. Em 97, muda-se para o Rio de Janeiro para lecionar Arte. Uma de suas obras custa quase um milhão de reais. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus. Boa leitura!


Acima, Homenagem a Fontana II. Um jogo de bonecas russas, com uma coisa dentro da outra. É o fascínio que a Moda exerce, e temos aqui uma jaqueta complexa, com vários bolsos e zíperes, e podemos ouvir o som destes abrindo e fechando, no modo como o zíper trouxe uma revolução de praticidade ao modo ocidental de se vestir. Temos aqui cores deliciosas, de frutas, doces, numa obra que traz muita candura. Aqui, é como uma versão mondriânica de bolsos, num quadro que não está muito interessado em desenvolver clássica simetria. É uma peça útil, uma conveniência, com seus bolsos úteis, no modo como é feliz a pessoa que se sente útil ao Mundo, sentindo-se parte de algo, parte de um organismo maior. Os zíperes são o livre arbítrio, na sua prerrogativa de abrir e fechar, numa liberdade, no modo como os espíritos são feitos para serem livres, na metáfora das asas dos anjos, representando tal arbítrio, tais intenções que se desenvolvem à vontade, no modo como é agradável e confortável a sensação de liberdade, havendo na prisão, na repressão e no tolhimento ideológico um quadro de desconforto, de maldade, de coisa ruim – Amor e Liberdade são gêmeos siameses, e só o Amor pode trazer tal agradabilidade. Esta obra convida a uma interação, para que possamos abrir e fechar tais compartimentos, e sentimo-nos livres para guardar o que quisermos ali dentro, na magia ao redor do Vazio – só uma pessoa que se esvazia de egos e vaidades pode reinar como Tao, pois este nunca deixa que o ego se apodere de sua mente. Mas o Ser Humano tem uma ancestral tendência ao orgulho e à vaidade, sempre egoísta, sempre insensível, como num prefeito que pouco se importa com o sofrimento do próprio povo. O roxo aqui é uma cor sensual, com um perfume irresistível. É uma cor de feminilidade, de perfume, no encanto de uma mulher devidamente perfumada e trajada para um elegante momento de interação social. Os zíperes em si são negros, imprevisíveis, como um carvão, nas imensidões profundas do Cosmos, num Universo tão, mas tão vasto, impossível de ser compreendido completamente. É a fome de um buraco negro, nas ambições humanas, num Ser Humano obcecado em obter poder e influência, numa sociedade que traz o culto ao sucesso, e quem não atinge tal sucesso, sente-se uma nulidade desprezível, resultando, assim, em depressão – são as cruéis pressões do Mundo, exigindo que um ser humano não seja um ser humano, mas um deus. Aqui, temos um jogo complexo de bolsos, e esta obra parece que nunca está com um aspecto definitivo, no modo como tudo é fluidío processo, incessante processo, num interminável processo de aprendizado, no modo como só a Eternidade é capaz de nos mostrar o que é Tao, e estaremos para sempre tentando entender tal Pai, pois se não é infinito, não é Tao. Somos todos bebês, recém engatinhando. Somos fetos que sequer nasceram. Então, o Ser Humano, na sua enorme imaturidade, persegue riquezas mundanas, e quer acumular tesouros para, assim, obter vantagens em relação a seus irmãos, a seus companheiros de caminhada. E as pedras preciosas? São rochas, são matéria; não são pensamento. E só o pensamento é perene. Esta obra de Leirner pede constantemente para ser manuseada, convidando o espectador a uma interação, quando a maioria das obras de Arte exige ser observada a respeitosa distância. Talvez tenhamos aqui um NL prevendo a ascensão da Internet e da Tecnologia Digital. Esta peça nos convida para controlar o Caos, tentando impor ordem a um Mundo tão imprevisível e traiçoeiro.


Acima, Mona. Uma imposição social de Feminilidade à Femealidade. A macaca está maquiada, enfeitada, arrumada, como se estivesse preparada para sair de casa e ter um momento de interação social, momento que exige que a pessoa esteja devidamente aprumada, para que, assim, esta pessoa demonstre respeitar as regras do convívio social, havendo severas punições aos que não demonstram tal respeito, como uma certa atriz hollywoodiana, a qual foi a Oscar sem um pingo de maquiagem. Aqui, é um quadro de identificação feminina, tanto na cor do batom quanto no fundo do quadro, numa harmonia cromática. Os cílios do animal estão maquiados, numa sociedade que exige beleza da mulher, fazendo com que tantas mulheres se achem feias e achem-se desprovidas de autoestima, como na ditadura da magreza, na crueldade dos padrões de beleza, originando tantas mulheres que, apesar de magérrimas, acham-se gordas. Aqui, temos uma imposição de Ordem, buscando banir o caos da Natureza, fazendo do Ser Humano o portavoz de tal sofisticação civilizatória, como no agressivo Homem Europeu, que entrou agressivamente nos domínios americanos e oprimiu ao máximos os ditos “incivilizados” – quem é o verdadeiro “animal” dessa história? Esta boca parece com a de uma Gal Costa, numa mulher feminina, que sequer pensa em sair de casa sem maquiagem, na construção de autoestima, como uma mãe levando a filha pela primeira vez a um salão de beleza, introduzindo a filha a tal ato de autorrespeito, depilando o buço e delineando as sobrancelhas, na imposição de Ordem e Beleza às profundidades da animalidade, sendo o Homem o único ser vivo que se arruma, fazendo do espelho o símbolo de tal delicada sofisticação. Esta macaca parece ter recém saído do salão de beleza, e os pelos em seu rosto estão controlados, no modo como tantas pessoas levam seus bichinhos à petshop, para que os bichos tomem banho, cortem a unhas e voltem cheirosos e arrumados para casa, na intenção humana em encontrar lógica em uma esfera tão caótica, tão suscetível às intempéries naturais, como terremotos ou furacões. A macaca esboça um sutil sorriso, mas está predominantemente séria. Aqui, é como uma Nefertiti símia, talvez remetendo ao quadro apocalíptico da franquia Planeta dos Macacos, na qual o Mundo é dominado por macacos e o Ser Humano é rebaixado à categoria de mero animal escravizado. São as raízes símias do Ser Humano, com animais evoluindo em inteligência, tentando entender o Mundo no qual tal Ser surgiu. A macaca nos avisa que, apesar de racionais, temos toda uma face animal, e isso é próprio da Encarnação, em que a pessoa se depara com esta luta dentro de si – Ordem vs. Caos. Esta macaca está comportada, estável, serena, e parece não mais sofrer as influências pesadas da Matéria, da Dimensão Material. Ela está atenta, de olhos abertos e ouvidos atentos, como se tivesse sensibilidade, como se estivesse frente à obra de algum contundente artista. A macaca aqui adquire consciência de si mesma, de sua própria existência, rechaçando a ignorância e abraçando o civilizatório Pensamento Racional, sendo este o único recurso que vai tirar o Homem da desordem e levar este ao campo das percepções espirituais e morais. É a tábua de Moisés trazendo parâmetros morais, tentando livrar o Ser Humano desses grilhões animais e caóticos. É a tentativa humana de entender um mundo cuja existência não pode ser cientificamente provada, cabendo à pessoa ter a Fé, mas nunca a garantia. É o desafio. Aqui, a harmonia simétrica traz todo o equilíbrio e toda a ponderação razoável. É o discreto sorriso de Nefertiti, numa alegria, digamos assim, domesticada, submetida às regras do Corpo Social, na missão humana em ser a única espécie dotada de sofisticação de pensamento. Então, pensa-se em tal elo perdido, sem sabermos o que foi que tirou o Ser Humano do Caos e trouxe aquele à Racionalidade, na universalidade das regras matemáticas, no pensamento retilíneo, da dignidade, do respeito. A macaca parece estar totalmente consciente de si mesma e do Mundo ao redor.


Acima, O Retorno (67) - Você faz parte. Aqui, temos uma exceção, uma anomalia, um indivíduo que ousou pensar contra o sistema vigente, num Nelson que sentiu na carne as forças da censura estatal no Brasil. É como numa esteira de fábrica, com um produto “defeituoso”, numa pessoa que busca se diferenciar, buscando por uma identidade, uma particularidade, numa pessoa que simplesmente não suporta ser mais um medíocre e comum tijolo indistinto numa parede com tantos outros tijolos similares. É como um álbum de figurinhas, no qual falta só uma figura, numa constante sensação de incompleto, de uma coleção que está sempre quase pronta, no modo como é comum este sentimento na pessoa encarnada, pois há sempre algo a se buscar, numa saudável insatisfação, ou doente insatisfação, num Ser Humano que nunca está contente com o que tem, sempre querendo mais, sempre sendo uma vítima dos apelos da Sociedade de Consumo, da canibalesca indústria de coisas, de bens. Aqui, é como um rombo em uma parede, permitindo que vejamos o que há por trás, o que há além, proporcionando um respiro, uma pausa em meio a uma sociedade cruel, a qual faz com que a pessoa mal sucedida se sinta um lixo, uma ameba, uma insignificância. Estes estouros são como na embalagem do sabão Omo, tentando vender a ilusão de que um produto vai nos libertar. Temos aqui vários soldadinhos com suas fálicas espadas, e suas armaduras trazem uma cruz, num Ser Humano, que, dizendo agir em nome de Jesus, faz coisas que Ele jamais faria. É a luta pela Vida, na pessoa que sai todos os dias da cama para abraçar mais um dia de labor e empenho, de esforço. As espadas nos assustam e, se tivermos juízo, não daremos murros nessas pontas de faca. A armadura é a proteção, protegendo um coração frágil e exposto. A armadura é a capacidade de se dizer “não”, ou seja, não ser uma vítima que está sempre exposta às intempéries de outrem. Temos aqui um cenário de agressão, como se o quadro tivesse sido fuzilado por cruéis executores. Os estouros são como estrelas, e cada quadradinho aqui, cada subconjunto, é como um espaço para imagens em igrejas, e um desses santos é subversivo, num Nelson que tanta controvérsia causou, numa época em que a Guerra Fria ainda estava quente. Aqui, é como uma tábua de tiro ao alvo, e apenas um subconjunto foi fuzilado. Este vazio é o vazio de Tao, o sempre útil, na dignidade de um copo, o qual, em seu vazio, serve ao Mundo, abrigando água, sucos etc. É a Dignidade; a Honra. Esta anomalia é uma pessoa que se negou a embarcar num conflito, como um homem de Tao, um homem que sempre prima pela Paz, nunca se rendendo às raivas que fazem com que tantos corações sofram. Aqui, é uma lacuna, esperando para ser preenchida. É uma incógnita, uma dúvida, um vão. É um buraco pelo qual podemos respirar e viver, deixando o ar circular, trazendo Vida e fluidez a um cenário tão aguerrido e difícil, no modo como as guerras acontecem quando todos os polidos meios diplomáticos se esgotam. É como uma barra de chocolate com várias repartições, como uma posição vaga, numa empresa que precisa fazer uma contratação. É uma pessoa que busca pensar diferente, partindo em busca da individualidade, da diferenciação, na obrigação de um artista em ser criativo e inédito, desbravando caminhos, sendo, depois, imitado por artistas menores e amadores. É uma exceção, algo que não está submetido às regras gerais, algo que escapa do controle estatal. É uma ruptura que expõe a insanidade da limitação de pensamento, a insanidade do ditador que oprime o próprio povo, negando coisas simples e fáceis, como tolher um cidadão que quer pintar o próprio cabelo de azul, por exemplo. Aqui, temos muitos amadores e um só profissional, numa transgressão que traz comoção. É algo insano como um álbum de figurinhas ter sempre o mesmo elemento gráfico, como na loucura das páginas na novela de terror O Iluminado, num personagem que embarcou na intenção de preencher um só “álbum” com a mesma figurinha. E isso me remete ao eterno mestre Tatata Pimentel, o qual simplesmente desprezava os medíocres.


Acima, sem título. É como se Nelson quisesse denunciar o colonialismo cultural americano. Mickey Mouse e Minnie Mouse povoam o continente, inclusive a ilha comunista de Cuba. É claro que tal posicionamento tornou Leirner uma figura controversa, num artista com um pé na Política Internacional. Aqui, a bandeira americana se impõe soberanamente, predominantemente, aniquilando quaisquer particularidades culturais dos outros países. NL aqui faz uma espécie de denúncia do imperialismo americano, só que uma denúncia doce e bem humorada. Nesta espécie de foto de satélite, a meteorologia é perfeita, e nenhum sinal de nuvens cai sobre tais terras da Disney. O Mar é plácido e perfeito, sem revoltosas ondas, dando a impressão de que o Mundo está feliz em seguir os padrões culturais americanos. É claro que isto remete às minhas viagens à Disney, no estado americano da Flórida, e nessas aventuras eu pude presenciar o intenso talento americano em termos mercadológicos – tudo na América esta à venda, em capciosas manobras de Marketing, fazendo com que o consumidor se torne, na prática, uma vítima de tais apelos de consumo. Os americanos sabem como emocionar o espectador, com atrações nos parques, atrações que tocam fundo no emotivo do espectador, fazendo com que, por impulso, compremos coisas que, de cabeça fria, não compraríamos – tudo na América é descartável. Aqui, temos uma utopia de felicidade, como se a riqueza mundana, material, pudesse trazer preenchimento existencial ao indivíduo interpelado. O continente aqui está superlotado, e não cabem mais camundongos mágicos aqui. É a ideia de que o Consumo traz felicidade, e de que o Livre Mercado funciona por si próprio, sem necessitar de intervenções estatais. Todos aqui são ricos e felizes. Hoje mesmo, 1º de setembro de 2019, assisti na televisão as comemorações dos 70 anos de aniversário da Revolução Comunista na China, com pomposos desfiles e demonstrações de poderio militar, no outro lado da história, na oposição ao Capitalismo – na China, deseja-se passar a impressão de que um estado controlador e ditatorial é o que traz conforto e felicidade ao cidadão. Na verdade, comunistas ou capitalistas, estão todos entranhados na Dimensão Material, e o Ser Humano tem um infindável talento para se apegar ao Materialismo, rejeitando o fato de que a riqueza está no Pensamento, não na Matéria. Este oceano calmo, espelhado, traz a sensação falsa de que tudo está em Paz, de que tudo está bem, numa tentativa de se aproximar da enigmática Paz da Dimensão Metafísica, o lar para onde, graças a Deus, todos retornaremos – digo, todos que tiverem bom coração. Esses ratinhos são como pipoca estourando numa panela, numa superpopulação, num certo descontrole demográfico, e parece que, a qualquer momento, esta panela vai estourar, num estado prestes a se esgotar e entrar em colapso. É como uma infestação de ratos, algo fora de controle, num Ser Humano que, para se aliar à cadeia consumista, está obrigado a nunca estar feliz, a nunca estar satisfeito, e esta é a chave da Sociedade de Consumo – a constante insatisfação, pois se estou satisfeito, não vou consumir... A impositiva bandeira americana está aqui ladeando este continente feliz, como se fosse um controle estatal, numa contradição – a América se diz anticomunista, antiditaduras, mas a América é, de certo modo, um estado que busca controlar o indivíduo por meio do consumo, ou seja, ficamos entre a cruz e a espada, e não existe felicidade definitiva neste mundinho materialista no qual vivemos. Podemos aqui ouvir o som do hino americano, um país que se desenvolveu de forma pujante, principalmente na questão cultural, exportando seus filmes e músicas ao redor do globo, numa civilização que fez com que o idioma inglês se tornasse universal – em qualquer aeroporto do Mundo há placas em inglês. Então, Nelson Leirner parece querer denunciar tal imperialismo, só que de forma irreverente e doce. E os países mais sodidos, como o Brasil, têm que beijar as botas de quem está na posição mais elevada da hierarquia, como um menino que, sendo o dono do campinho, dita as regras do jogo.


Acima, sem título. Uma metalinguagem, pois é artista falando de artista, ou seja, Leirner falando de da Vinci. A passagem do trem é a passagem da vida de uma pessoa, ou a passagem de uma carreira, de um artista deixando um rastro de produtividade atrás de si, numa obra esmiuçada por críticos e espectadores. A locomotiva é a estrela da festa, pois é o que move; é o que importa, talvez num artista procurando na Vida aquilo que realmente importa. O resto, os outros vagões, vêm engatados, atrelados, e não têm movimento por si mesmos. O fundo aqui é bem negro e misterioso, pois a pessoa jamais pode ver claramente tudo o que lhe acontecerá até o óbito. É a discrição do luto, talvez de um artista discreto e reservado, o qual, apesar de ter uma obra provocante, opta por ser, no dia a dia, uma pessoa reservada. É claro que podemos ouvir aqui o som do apito do trem, e também o som das rodas sobre os trilhos. A chaminé, expelindo Monalisas, é o artista produzindo, fazendo Arte, fazendo coisas, numa produtividade, como uma aranha tecendo teias incessantemente. Aqui, são como produtos em uma loja de presentes de um museu, numa tentativa de angariar fundos para a instituição, num casamento entre Arte e Sociedade de Consumo, expondo obras únicas e, mesmo assim, produzindo bens de consumo, coisas comuns, produtos numa indistinta esteira industrial. É como se a Monalisa estivesse sendo clonada, com Leirner “copiando” o renascentista, como se da Vinci fosse um carimbo, uma matriz, uma base de xilogravura, gerando muitas cópias, no modo como tal matriz, nesse vazio, é o que traz dignidade a esta “mãe”, gerando cópias, filhos, uma ninhada, numa mãe sempre se colocando por último, sempre despercebida, humilde em seu vazio que produz tanta prole. Este trem é como um brinquedo de criança, na magia de uma noite de Natal, com a criança usando o brinquedo para sonhar, como se a criança tivesse quase uma memória, quase uma lembrança de um mundo não tão duro e cruel, mas um mundo inclusivo, carinhoso, no qual todos vivem em harmonia como irmãos. É uma certa dor de saudades. O trem é o trajeto existencial, passando por muitas coisas, por muitos lugares. É como se cada vagão fosse uma encarnação diferente da mesma pessoa, numa carreira encarnatória, havendo na locomotiva o espírito, a fonte, a matriz, com cada vagão sendo uma vida diferente, como uma cascavel com sua cauda que mostra várias etapas, cada momento, como um ator que interpretou vários filmes, colecionando uma filmografia, dando vida a vários personagens, assim como o espírito dá vida a vários contextos encarnatórios. O fogo que arde na caldeira frontal do trem é o ardor do espírito, sempre ardendo, sempre pulsando, inspirando ao máximo o artista, com cada etapa sendo povoada por desafios e percalços diferentes, sendo cada truncada dificuldade uma nova oportunidade de aprendizado e depuração psíquica, resultando em uma pessoa que se depurou moralmente, tornando-se uma pessoa melhor, uma pessoa menos fútil, como na evolução do personagem Oscar Schindler, de Spielberg, um personagem que começa como um playboyzinho fútil e acaba se tornando um grande homem, um homem compadecido com as misérias do Mundo. Esses broches, esses botões expelidos pela chaminé, são os bens de consumo numa esteira geradora, e a produtividade é intensa e incessante, num parque industrial que tem que obter mercado consumidor para que o mesmo parque sobreviva e prospere. É no fato como uma pessoa dá amostras de si mesma, o tempo todo, no fato de que as pessoas não mudam. Cada pessoa, o tempo todo, gera amostras, exemplos de si mesma, deixando um rastro de identidade, até chegar ao ponto de ser respeitada e levada a sério pelo Corpo Social, num trabalho de sedimentação e reconhecimento, pois o Mundo não é de quem é respeitado? A cor metálica do trem é a dureza da Vida, num espírito que teve que construir, ao redor de si, uma armadura para, assim, sofrer menos e ter mais força para persistir.


Acima, sem título. Aqui, temos uma grade, talvez uma história em quadrinhos. Os homens aqui têm pênis absolutamente descomunais e desproporcionais, no termo chulo “colocar o pau na mesa”, na natural competitividade da Vida em Sociedade, num mundo em que todos medem entre si seus falos, para ver que é maior e mais poderoso. É o modo como a Sociedade cobra do Homem não só o desenvolvimento da Agressividade como também do Sucesso, do êxito, no termo “fodão”. Por outro lado, esta mesma Sociedade tolhe a agressividade da Mulher, relegando esta a um eterno papel passivo e coadjuvante, subserviente, ou seja, lavar, passar, ter filhos etc. No único quadrinho aqui com um fundo verde, vemos dois meninos, um sentado em cada bola de futebol, numa pausa, num recreio, e os rapazes estão de mãos dadas como irmãos, amigos, aliados – é um oásis de paz e concórdia em um mundo tão aguerrido, tenso e competitivo. As mãos dadas são a Paz, como dois vizinhos que respeitam o gramado um do outro, ao contrário de um rei tirano, o qual nuca está contente com o próprio gramado, querendo obter mais e mais gramados, anexando territórios, sempre agredindo e ofendendo o vizinho, sendo este uma pessoa a qual deveria ser tratada com toda a gentileza e amizade. Todos os outros quadrados aqui têm um fundo alaranjado, na cor de matéria orgânica em raios x de aeroporto, numa máquina desconfiada, sempre querendo saber o que está senso transportado, com infelizes traficantes, os “mulas”, sendo detectados, presos e impiedosamente punidos. Este fundo cor de carne me remete a um filme de Woody Allen, no qual o inferno é claustrofóbico, fechado, com paredes cor de carne e fogo que nunca cessa, como numa história, um sofrimento sem fim, sem propósito, sem sentido, pois o Mal é esta falta de sentido, uma falta detectada pelo “raio x” do pensamento racional. As subdivisões dessa “história em quadrinhos” produz um efeito de grade, de prisão, como num espírito tosco, o qual simplesmente não aceita o Desencarne, a perda do corpo físico, pois quanto mais desapegada for a pessoa, mais tranquila será a libertação. São como formas de cubinhos de gelo, como tijolos produzidos em série. Os falos aqui lutam para se expressar, querendo obter importância e notoriedade, no modo como um infeliz psicopata chega ao ponto de querer ser reconhecido como bandido, na mais completa loucura – um mais um é igual a três. Os falos aqui tentam violar os limites dos compartimentos, querendo transgredir os limites, talvez derrubando rançosos paradigmas, na questão da pessoa ter a coragem para viver e se expressar num mundo tão indiferente e insensível em relação ao que um artista tem para dar, fazendo da persistência um grande desafio, como uma pessoa que conheço, um ator que abandonou a carreira artística para se tornar advogado – todos têm o direito de buscar novos fôlegos para a própria vida. Na porção mais superior do quadro, um grande círculo verde. É a Flora exuberante da Terra, um planeta são ínfimo, anônimo, rico e único, com sua impressionante abundância e singularidade de Vida, trazendo-nos a uma época em que o discurso ecológico toma crescente força. É como uma remanescente reserva natural em meio a um cenário de devastação, de queimadas e de desmatamento, no modo como um artista pode se sentir tal força diminuída, num artista que sempre se sentiu subestimado, como foi com Elis Regina ou Lady Diana, mulheres que tiveram que morrer para serem completamente reconhecidas. Vemos aqui uma história sendo contada de forma confusa, conflituosa e tensa, quase sem sentido, com os falos lutando em nome do respeito e do reconhecimento. Então, as guerras acontecem nessa medição de falos, e o Ser Humano revela sua patética tendência para o desamor, pois o Amor é altamente subestimado. Os falos aqui tentam desafiar os limites, no poder renovador trazido pela transgressão, como na avalanche que foi o Modernismo Brasileiro, quando a jovialidade toma corpo e as teias de aranha perecem.

Referências bibliográficas:

Nelson Leirner. Disponível em <www.bolsadearte.com>. Acesso 25 set. 2019.
Nelson Leirner. Disponível em <www.catalogodasartes.com.br >. Acesso 25 set. 2019.
Nelson Leirner. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>. Acesso 25 set. 2019.

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